Iniciação cristã na igreja antiga e o desenvolvimento do catecumenato

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Franklin Ferreira salienta em uma palestra que a catequese é uma arte perdida e necessita ser recuperada no ministério pastoral. Em sua fala, afirmou que a catequese era muito usada pelos pais da igreja[1] para proteger a integridade doutrinária e a disciplina da igreja.[2]

Em seu texto, Flávio de Paula diz: “desde os primórdios, a igreja cristã faz uso do ensino catequético, ocasiões em que os convertidos eram instruídos nas doutrinas fundamentais da fé cristã antes mesmo do batismo.”[3] Na mesma perspectiva do tempo, porém aplicado a educação cristã, Matos escreve:

Desde o início os cristãos valorizavam a educação como meio de preservar e transmitir com fidelidade a herança cristã. Como ocorria entre os judeus, os principais recursos para esse fim eram os lares e as comunidades de fé. Com o passar do tempo, surgiram novas formas educacionais, a começar da catequese para os aspirantes ao batismo.[4]

O escopo deste trabalho visa o desenvolvimento da prática da catequese na Igreja Antiga, e, para tal, é necessária a definição dos conceitos antes da dissertação do fenômeno. Grenz, Guretzki e Nordling definem a catequese como “processo de ensino das crenças cristãs básicas e do conteúdo das Escrituras tanto para a criança criada na igreja como para o novo convertido ao cristianismo.”[5]

Erickson define o verbete “catecúmeno” como “aquele que recebe a instrução sobre a fé cristã antes do batismo.”[6] E em outro verbete, “catequista” como “aquele que dá instruções sobre a fé cristã.”[7] Quanto à origem do termo e sua relação com as Escrituras Sagradas, Siqueira escreve:

Os termos “catequese”, “catecumenato”, “catequista” e correlatos são derivados etimologicamente do verbo grego katechein, que significa “soar de cima”. Referia-se originalmente à voz do ator no teatro. Assumiu depois o significado de “dar notícia”, “informar”, “instruir”.[8]

No Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs, a catequese é definida:

Depois da proclamação do kerigma, a tarefa das comunidades cristãs foi a de preparar os futuros crentes através de uma instrução completa e essencial, visando ampliar e aprofundar ao mesmo tempo os elementos da Boa-Nova propriamente dita. Tais instruções foram denominadas “catequese” (Egéria, Peregr.) do verbo katecheo = ensinar a viva voz, onde, no entanto, o ensinamento não é outra coisa senão o eco de uma palavra que já foi pronunciada: A Palavra de Deus.[9]

Nessa perspectiva, pode-se considerar que a catequese ou o ato de catequizar é uma forma de transmissão das boas novas do evangelho do Senhor Jesus Cristo, como também o ensino da Escritura Sagrada: “Neste sentido, a catequese é em primeiro lugar o eco da Palavra de Deus através da voz do catequista.”[10]

Tendo vários mestres como expoentes e sendo registrada nos livros e manuais de história da igreja, o exercício da catequese é, por excelência, o meio pelo qual os iniciantes do cristianismo, neófitos, eram inseridos na igreja, a comunidade da fé cristã. “Hipólito fala de uma instrução que era ministrada aos catecúmenos por um mestre durante três anos (Trad. Ap. 17-18). Enquanto isso, Eusébio (HE V, 9) nos informa a respeito da atividade catequética que era desenvolvida em Alexandria.”[11]

Packer e Garrett chamam o catecumenato em desenvolvimento de “um tipo de escola da fé”[12] que acontecia “por vezes mais formal, por vezes menos — em que, durante os primeiros séculos do cristianismo novos crentes eram preparados para o batismo e, então, recebidos na vida plena da igreja.”[13]

Fazia-se necessário uma longa jornada de preparação para o batismo, com um tempo demorado de instrução. Esse fenômeno era contrário ao que é lido na narrativa inspirada do livro de Atos dos Apóstolos, pois “muitos dos convertidos que, na maioria dos casos, foram batizados quase que imediatamente após a sua profissão pública de fé.”[14]

O fenômeno de batismo rápido para uma instrução mais extensa ocorreu porque:

tornou-se cada vez mais comum que aqueles que vinham a crer em Jesus Cristo tivessem pouco conhecimento do Deus de Israel ou das Escrituras hebraicas e cristãs. Essas conversões eram jornadas verdadeiramente radicais que transformavam a vida e visão do mundo. Eram, portanto, experiências bem diferentes da maioria das conversões e dos batismos documentados pelo Novo Testamento.[15]

Para o novo convertido, o acolhimento das boas-novas era algo radicalmente diferente em sua vida e cosmovisão passada.

Ao passo que o evangelho se espalhava primariamente entre os povos gentios e pagãos, a igreja veio a considerar a conversão a Cristo como algo tão revolucionário que exigia um período significante de instrução e treinamento em outras atividades espirituais antes da concessão ao batismo a um novo convertido. O desenvolvimento do catecumenato refletia essa visão.[16]

O tempo de preparação para o batismo e a formatação da catequese variava e se desenvolvia com o passar dos séculos. No segundo século, início da catequese, as práticas não eram iguais em todos os lugares; diferente no quarto século que cessou a perseguição e oficializou o cristianismo como religião do Império Romano. Neste período, a estrutura e a formalização do ministério eram mais evidentes e a catequese foi influenciada.

Sobre este tema Matos escreve:

Em vários lugares surgiram classes para catecúmenos, cuja instrução podia se estender até por três anos. Era um período de treinamento e de teste antes da aceitação plena na igreja. Os candidatos deviam passar por três estágios: “ouvintes” (interessados), “ajoelhados” (aqueles que permaneciam para as orações depois que os ouvintes se retiravam) e “escolhidos” (candidatos efetivos ao batismo)”. Após o batismo, havia instrução adicional sobre os sacramentos e outros tópicos.[17]

Já no final do período da igreja antiga, conforme escrito anteriormente, com a organização e hierarquização do ministério pastoral e sua influência na catequese, a catequese era feita por um bispo ou pastor (presbítero), o que anteriormente acontecia com menos rigidez e mais informalidade.

“O líder […] então entrevistava os ‘buscadores’ para conhecer a sua condição espiritual e os seus motivos para juntarem-se à igreja. Os padrinhos davam testemunho sobre a sinceridade e convicção dos buscadores.”[18] Esses buscadores recebiam instruções sobre as doutrinas da fé, provavelmente também algum resumo das histórias redentoras da Bíblia, para posteriormente se tornarem catecúmenos. Eram os ouvintes da Palavra.[19]

Após a fase do aprendizado, o catecúmeno passava de ouvinte para agente da Palavra, crendo e vivenciando a fé cristã em todos os aspectos de sua peregrinação espiritual.

Nessa fase final da catequese, os candidatos ao batismo podiam ser chamados por vários nomes — electi, illuminati, competentes (“os qualificados”: nome comum no Ocidente) ou photizomenoi (“os iluminados”: nome comum no Oriente). Essa fase final era programada para corresponder ao período da Quaresma, uma época do ano marcada por reflexão e arrependimento em que os crentes se preparavam para as celebrações da Semana Santa […] os competentes muitas vezes eram separados da congregação.[20]

Antes do batismo e da Santa Ceia, os competentes recebiam instruções do Credo Apostólico e do Pai-Nosso para serem decorados em silêncio, recebendo o nome de disciplina arcani (disciplina do sigilo).

Entre a meditação “e o batismo, normalmente acontecia na ultima fase da catequese. Nesta, era incluída alguma instrução sobre os elementos do ritual do batismo que acontecia em poucos dias.”[21] Havia divergência entre os expoentes da catequese e os pais da igreja sobre o ensino em relação ao batismo antes ou depois do ritual. Crisóstomos e Agostinho preferiam a catequese sobre o batismo antecedendo ao rito, enquanto Cirilo de Jerusalém já optava pela catequese pós-batismo em perspectiva experimental do rito do sacramento (mistagogia).[22]

Porém, havia um consenso entre eles:

O batismo era o sacramento da iniciação da igreja. Os batizados, que na época, naturalmente, tinham sido adultos pagãos, confessavam a decisão de aceitar as implicações deste batismo. Eram, então, batizados em nome de Cristo. Mais tarde foram acrescentados os nomes de Deus Pai e do Espírito Santo. Como não havia ainda explicações paralelas, estava-se no domínio da fé e da liturgia e não da teologia.[23]

Naturalmente, o autor citado acerta quanto ao consenso sobre o batismo como sacramento de iniciação e o desenvolvimento da percepção trinitária para o ritual, porém equivocadamente exclui a teologia do chamado domínio litúrgico, contrariando o fenômeno exposto neste trabalho de catequese como exposição teológica paralela ao rito.

O conceito de iniciação, usado neste trabalho como sinônimo de catequese, vem do latim initiare, sendo um termo que não aparece em registro antes do século 2.[24] “Nos séculos 2 e 3, os apologistas cristãos criticam os interlocutores pagãos que comparam os ritos cristãos aos das religiões misteriosas.”[25]

“O vocábulo da iniciação entra na comunidade cristã com a catequese, a começar do catecumenato organizado, em que os catecúmenos são separados dos fiéis, não conhecem tudo o que sabem sobre os batizados, e observam a disciplina do arcano.”[26]  Portanto, é registrado que o verbete “iniciação cristã” coaduna com o desenvolvimento do catecumenato, por meio da catequese, na inserção dos neófitos nas comunidades cristãs.

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Referências bibliográficas

Berardino, Angelo Di, org. Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs (Petrópolis: Vozes, 2002). Tradução de: Cristina Andrade.

Erickson, Millard. Dicionário popular de teologia (São Paulo: Mundo Cristão, 2011).  Tradução de: Emirson Justino.

Ferreira, Franklin, org. A glória da graça de Deus: ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. por ocasião dos 58 anos de ministério no Brasil (São José dos Campos: Fiel, 2010).

_________. A igreja cristã na história: das origens aos dias atuais (São Paulo: Vida Nova, 2013).

_________. O exemplo dos heróis da fé — vocação, formação e serviço. Palestra ministrada na Semana Teológica Água da Vida em Niterói (RJ) entre os dias 25 a 30 de maio de 2015. Veja em: https://www.youtube.com/watch?v=wUe4XLiXboQ

Grenz, Stanley J; Guretzki, David; Nordling, Cherith Fee. Dicionário de teologia: mais de 300 conceitos teológicos definidos de forma clara e concisa (São Paulo: Vida, 2000). Tradução de: Josué Ribeiro.

Lelo, Antonio Francisco. A iniciação cristã: catecumenato, dinâmica sacramental e testemunho (São Paulo: Paulinas, 2005).

Matos, Alderi Souza de. Breve história da educação cristã. Fides Reformata XIII, 2 (2008): 9-24.

Oliveira, Flávio de Paula. Catequese: o uso de catecismos na instrução da igreja (Curitiba: Faculdade Batista do Paraná, 2016). Trabalho não publicado.

Packer, J.I.; Parrett, Gary A. Firmados no evangelho (São Paulo: Cultura Cristã, 2012).

Tillich, Paul. História do pensamento cristão (São Paulo: ASTE, 2007).

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[1]“Nos primórdios da igreja cristã, os responsáveis por conduzi-la na ortodoxia ficaram conhecidos como pais da igreja.” Franklin Ferreira, A igreja cristã na história: das origens aos dias atuais [publicado por Vida Nova], p. 33.

[2]Veja a palestra de Franklin Ferreira: O exemplo dos heróis da fé — vocação, formação e serviço. A palestra foi ministrada na Semana Teológica Água da Vida em Niterói (RJ) entre os dias 25 a 30 de maio de 2015. Veja em: https://www.youtube.com/watch?v=wUe4XLiXboQ. Acesso em: 02/07/2018.

[3]Flávio de Paula Oliveira, Catequese: o uso de catecismos na instrução da igreja (Curitiba: Faculdade Batista do Paraná, 2016), p. 12. Trabalho não publicado.

[4]Alderi Souza de Matos, Breve história da educação cristã. Fides Reformata XIII, 2 (2008): 9-24.

[5]Stanley J. Grenz, David Guretzki, Cherith Fee Nordling, Dicionário de teologia: mais de 300 conceitos teológicos definidos de forma clara e concisa [publicado por Vida], p. 23.

[6]Millard Erickson, Dicionário popular de teologia [publicado por Mundo Cristão], p. 31.

[7]Ibidem.

[8]Juan de Paula Santos Siqueira, O ministério pastoral e a catequese nas igrejas confessionais. In. A glória da graça de Deus: ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. por ocasião dos 58 anos de ministério no Brasil [publicado por Fiel], p. 452. Cf. Lc 1.4 e Gl 6.6.

[9]Angelo Di Berardino, org., Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs [publicado por Vozes], p. 273.

[10]Ibidem.

[11]Ibidem, p. 274.

[12]J.I. Packer, Gary A. Parrett, Firmados no evangelho [publicado por Cultura Cristã], p. 58.

[13]Ibidem.

[14]Ibidem.

[15]Ibidem.

[16]Ibidem, p. 59.

[17]Alderi Souza de Matos, Breve história da educação cristã. Fides Reformata XIII, 2 (2008): 14.

[18]J.I. Packer, Gary A. Parrett, Firmados no evangelho, p. 59.

[19]Ibidem.

[20]Ibidem, p. 60.

[21]Ibidem, p. 62.

[22]Ibidem.

[23]Paul Tillich, História do pensamento cristão [publicado por ASTE], p. 39.

[24]Antonio Francisco Lelo, A iniciação cristã: catecumenato, dinâmica sacramental e testemunho [publicado por Paulinas], p. 28.

[25]Ibidem, p. 29.

[26]Ibidem.

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