Imago Dei em confinamento: uma questão além da ciência

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“Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” – Gênesis 1.27

Quando Deus disse que não é bom que o homem esteja só, estava fazendo uma referência imediata à necessidade de criar para Adão uma companheira, uma mulher que lhe fosse idônea. Mas havia um propósito além. O amor, conhecido pelo ser humano em primeira mão no relacionamento com seu Criador, estaria agora para ser experimentado entre duas pessoas que, apesar de seus papéis biológicos distintos, foram criadas iguais em dignidade. A formação da mulher foi a pedra de toque da obra criadora, pois nesse ato o ser humano recebeu o lindo atributo que a Trindade goza eternamente entre si: tal qual o Deus Triúno, a espécie humana pôde também desfrutar do amor entre os seus semelhantes. A imago Dei estava finalmente completa. A partir da criação de Eva, o ser humano pôde se multiplicar e passou a ser um ser social, sem, contudo, ter perdido sua individualidade.  Desse modo, o fato de o homem ter sido feito à imagem e semelhança de Deus deve estar sempre no centro de toda e qualquer ação que possa de alguma maneira lhe afetar.

O ano de 2020 está marcado pela disseminação do novo coronavírus. E com ele veio a necessidade de ações enérgicas por parte das autoridades públicas para a proteção da população. A doença, que teve início na China no final do ano anterior, chegou aos cinco continentes numa velocidade impressionante e assustadora. O surto que se tornou em epidemia na cidade chinesa de Wuhan tomou forma de pandemia ao se espalhar por diversos países do planeta. Muitas nações do norte do globo, que passavam por rigoroso inverno, pouco tempo tiveram para reagir, e as vítimas dentre os mais vulneráveis começaram a ser contadas, especialmente entre as pessoas em idade avançada ou com algum tipo de comorbidade (duas ou mais doenças simultâneas no mesmo paciente). Enquanto este artigo é finalizado, no mundo todo já são contados mais de 900.000 óbitos relacionados à doença, sendo os Estado Unidos o país mais atingido em números absolutos, com aproximadamente 190.000 mortes, e no Brasil o número já passa de 120.000.[1]

Esse quadro pandêmico acabou trazendo à evidência o trabalho científico de médicos, epidemiologistas e instituições de saúde que apresentaram importantes estudos nos seus respectivos campos de atuação. E isso é bom, pois à medida que os dados são oferecidos, autoridades políticas possuem elementos mais seguros e concretos para tomada de decisões em meio à crise pública. Por isso, não se pode negar que o conhecimento da ciência é deveras muito importante, vez que representa uma esfera de contribuição única para a sociedade. Contudo, aqueles que tomam as decisões jamais podem perder de vista que estão lidando com seres humanos, sobre os quais dados científicos isoladamente nunca oferecerão uma leitura integral. Há uma dimensão ética inerente à humanidade portadora da Imago Dei que não pode ser menosprezada. Pessoas não são robôs. Negar-lhes a totalidade de sua natureza pode produzir um efeito reverso ao desejado, e até mesmo piorar um cenário de tragédia.

É preciso deixar claro que a intenção deste texto não é propor políticas públicas para o controle da pandemia, muito menos de negar a seriedade da doença, que deixa um rastro de sofrimento e morte, motivo pelo qual devemos muito lamentar – “chorar com os que choram”. O objetivo do artigo é, diante da atual crise de saúde pública, sublinhar as implicações desta doutrina tão cara ao cristianismo que diferencia o ser humano dos animais: a imagem de Deus, o ensino bíblico de que homem e mulher foram criados à imagem e semelhança de seu Criador. Pela fé, cremos que as melhores soluções sempre estarão ancoradas naquilo que a Bíblia ensina acerca de nossa formação – sem correr o mínimo risco de conflito com a ciência. O conhecimento científico é capaz de lidar com o que pode ser observado e comunicado na revelação geral, a natureza. As Escrituras Sagradas, todavia, são a revelação especial de um Criador para suas criaturas, e não só complementam o que podemos aprender ao observar e interpretar a criação, mas expõem a realidade integral da existência e da vida. O equilíbrio entre individualidade e coletividade não pode ser explicado pelas ciências naturais, que pouco conseguem fazer, frente à profunda complexidade da alma humana.

Surtos, epidemias e pandemias são expressões de doenças altamente contagiosas em nível local, regional e global. Ironicamente, são situações nas quais o aspecto comunitário que sustenta a vida humana acaba se tornando a sua maior ameaça. Contágios ocorrem porque o ser humano é essencialmente social, em constante contato com seu próximo. Por mais óbvia que seja essa afirmação, há certos “óbvios” que não podem ser negligenciados em meio a circunstâncias que necessitam de decisões complexas, sob pena de deixarmos de lado o mais fundamental de todos os fatores: a humanidade de quem está sendo atingido. As pessoas que os governos tentam confinar em suas casas durante o surto do vírus são seres fundamentalmente sociais. Obstar o funcionamento da vida em comunidade é tão drástico quanto tratar uma doença pela amputação do membro enfermo. Por isso essa equação não pode ser simplista. Viver em sociedade é algo intrínseco à condição do ser humano, e praticar esse tipo de mutilação pensando que será o remédio menos doloroso para se combater uma praga não passa de exercício meramente irracional resultante de um provável desespero típico de quem está lidando com o desconhecido. A prudência é uma das mais importantes virtudes, e o desconhecido deveria nos fazer pensar duas vezes antes de tomar medidas drásticas, não as adotar de forma precipitada.

De qualquer modo, os governantes, em sua maioria, seguiram as orientações de especialistas, e o confinamento foi posto em prática em grande parte dos países como uma solução urgente para contenção do vírus.[2] Em termos de ação rápida, é natural pensar que o lockdown fosse a saída mais contundente e eficaz: os chamados serviços essenciais são mantidos e demais negócios são fechados, os transportes públicos circulam com limitações, aglomerações ficam restritas, e nem mesmo igrejas escapam, sendo impedidas de realizarem seus cultos públicos ou autorizadas com restrições.[3] Entretanto, o questionamento que paira e abre intenso debate é este: até onde pode e deve ir o isolamento imposto pelo Estado sem que os efeitos colaterais do remédio sejam piores do que a própria doença? Torna-se evidente a necessidade de um diálogo mais amplo com profissionais e autoridades das ciências sociais e humanas: economistas, juristas, psicólogos, teólogos e filósofos, entre outros. A pretensão de uma interação nesses termos pode soar ambiciosa, mas é preciso ser enfatizado que sozinhas as ciências duras não têm a capacidade de apontar a melhor solução. E isso pode ser percebido com as várias consequências desastrosas do confinamento que já vimos até aqui.

Entre as primeiras consequências imediatas do isolamento estão os efeitos emocionais e psicológicos. Um estudo realizado na última semana do mês de junho pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças do Departamento de Saúde do Estados Unidos constatou que 40% dos adultos norte-americanos relataram lutas com saúde mental ou uso de substâncias.[4] Ainda, 25,5% dos americanos entre 18 e 24 anos consideraram seriamente se suicidar nos últimos 30 dias; entre pessoas com idade entre 25 e 44, o percentual foi de 16%. No total dos que responderam à pesquisa, 11% considerou seriamente o suicídio. Para se ter uma ideia da gravidade da situação gerada pelo isolamento imposto durante a pandemia, “números anteriores, que consideravam um período significativamente maior (1 ano em vez de 30 dias), nunca haviam superado os 10% no caso de pessoas com idade entre 18 e 24 anos e ficavam sempre abaixo de 5% no caso daqueles na faixa etária dos 25 aos 44 anos de idade”.[5]

Um segundo desdobramento inevitável foi a corrosão econômica. Apenas nos EUA, que passava pelo melhor momento de empregabilidade de sua história, os pedidos de seguro desemprego bateram um recorde histórico com as políticas de distanciamento social e lockdown.[6] No Brasil a economia voltou ao patamar de 11 anos atrás, como o PIB tendo desabado 9,7% no segundo trimestre de 2020 em comparação aos três meses anteriores, “pior resultado da história devido à pandemia”.[7] Com a pandemia, apenas menos da metade das pessoas com idade para trabalhar em nosso país estão empregadas diante do encerramento de 7,8 milhões de postos de trabalho.[8] Segundo dados do IBGE, metade da população acabou sendo beneficiada pelo auxílio emergencial, que alcançou, direta ou indiretamente, 107,11 milhões de pessoas de um total de 211 milhões de habitantes.[9] Resta evidente, não há como controlar os efeitos colaterais de um confinamento em massa.

Outro problema que se viu aumentar durante o isolamento foi a violência doméstica, na qual mulheres e crianças são as maiores vítimas ao ficarem mais tempo expostas aos seus agressores. As autoridades públicas estão atentas a isso. O Ministério Público de São Paulo reportou que até o início de abril os casos de violência contra mulher já haviam aumentado 30% desde o início da quarentena.[10] E de acordo com dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, quando o isolamento social imposto já durava mais de um mês, a quantidade de denúncias de violência contra a mulher recebidas no canal 180 cresceu quase 40% em relação ao mesmo mês de 2019. Constatou-se também que no início do isolamento, de fevereiro para março, as prisões em flagrante envolvendo agressores de mulheres aumentaram 51,4%.[11] Em Bauru, interior de São Paulo, casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes aumentam 53%, conforme a Secretaria de Bem-Estar Social daquele município, sendo que 90% dos abusos acontecem dentro de casa. “Acreditamos que o isolamento social tenha contribuído, porque as crianças ficam em casa, não vão para a escola. E a escola é um órgão importante para identificação destes casos“, disse a diretora de departamento da Secretaria.[12]

Todavia, os algozes infantis que se aproveitam do confinamento não são apenas os de casa. O aumento dramático de abuso virtual de menores acompanhou o crescimento de 600% do consumo de pornografia durante a pandemia.[13] O volume de conteúdo pornográfico infantil que circula pela internet e a multiplicação das atividades dos pedófilos virtuais nesse período é uma preocupação de autoridades do mundo todo. “Embora esse tipo de interação seja comum entre pedófilos, o que as autoridades espanholas puderam verificar é o notável aumento de suas atividades devido ao confinamento por conta da pandemia de coronavírus”, aponta reportagem veiculada pelo portal Época Negócios.[14] Uma autoridade ligada a um grupo de proteção a menores da Espanha afirmou que “uma das questões mais recorrentes desde o início do confinamento na Espanha é como os pedófilos podem tirar proveito dessa situação” De fato, os dados globais acerca de abuso infantil online são alarmantes no corrente ano.  A mesma reportagem explica que os provedores de serviços eletrônicos dos EUA e as empresas de tecnologia (Facebook, Twitter, Google, etc) são obrigadas por lei a denunciar se detectarem em qualquer lugar do mundo conteúdo de abuso infantil. O Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas (NCMEC, em inglês) analisa, então, esses relatórios e os compartilha com as autoridades policiais dos países onde o abuso ocorreu. “Em março deste ano, o NCMEC recebeu mais de 2 milhões de notificações deste tipo de material, mais que o dobro do número relatado no mesmo mês de 2019.

Os efeitos de um confinamento da população em grande escala são, assim, incomensuráveis. O resultado final de isolamento social nas proporções que vivemos em 2020 não é de fácil prognóstico. Não há ciência ou cálculo matemático que sejam capazes de o fazer. Com os fatos e dados acima citados, contudo, algumas consequências importantes já são conhecidas.

Ora, rebanhos de animais de campo podem ser confinados tendo seu instinto de sobrevivência satisfeito com ração em medida. Mas nós não somos gado, somos humanos, feitos à imagem e semelhança de Deus, seres sociais que tem em si o sopro do espírito da vida – que não é apenas biológica. A vida das pessoas vai além da mera sobrevivência. Pessoas trabalham, criam, produzem, brincam, riem e têm variadas necessidades que não são meramente físicas, mas são também psíquicas, sociais e espirituais. Não há como medir a integralidade humana em testes laboratoriais, e sua preservação não se dá por uma aplicação simplista de dados estatísticos científicos.

Talvez, justamente por terem uma visão ampla do ser humano e não se limitarem intelectualmente ao reducionismo científico, é que pastores e líderes cristãos têm sido atacados e rotulados nesses dias de “negacionistas”, “anti-ciência”, “ideólogos radicais”, e até “conspiracionistas”. Já há até mesmo quem tenha apontado o evangelicalismo como “bode expiatório” da pandemia, jogando sobre os crentes a culpa pela disseminação do Covid-19 por conta de uma suposta cultura de desconfiança em relação à ciência.[15] Essas acusações são, no mínimo, injustas, para não se dizer outra coisa, e, quando partem também de outros líderes cristãos, estes fazem um grande desfavor à própria igreja.

Mas não se deve lamentar. Esse é o preço que os verdadeiros cristãos comprometidos com uma cosmovisão bíblica pagam por não aceitar o racionalismo reducionista do naturalismo científico. A igreja por muitas vezes foi e ainda é perseguida e marginalizada por se opor a ideologias de governos autoritários, ensinando que existe limite de obediência a autoridades civis quando estas extrapolam a autonomia de sua esfera. Não deveria surpreender a hostilidade aos cristãos que têm se levantado para falar abertamente dos limites da ciência. Esta não tem o encargo de definir políticas sociais, senão de ser mais uma voz a auxiliar as autoridades públicas em sua árdua tarefa de tomar deliberações que afetam a vida das pessoas.

Em outras palavras, o princípio de que a igreja deve ser a consciência do Estado precisa ser estendido à ciência. Da mesma maneira que o cristão na política atua para colocar freios nos governos, o cristão na ciência deve redimi-la, resgatando-a do naturalismo filosófico, que a tomou de sequestro, que ignora a essência holística do ser humano físico e espiritual, que não alcança o entendimento de sua dimensão coletiva e individual, e, ainda assim, pretende reger a totalidade da existência humana. O crente em Jesus Cristo não se dobra à idolatria do Estado e tampouco irá aceitar que se faça o mesmo em relação à ciência.

A doutrina da soberania das esferas sociais apresenta a ideia de que elas devem ter sua autonomia respeitada, mas não podem atuar isoladamente e devem operar em colaboração umas com as outras. Nenhuma delas pode se tornar arbitrária e totalitária, pois cada uma representa um campo de conhecimento distinto e de atuação específica que refletem parcialmente os vários aspectos da vida humana em sociedade. No entanto, no momento em que se ergue a ciência a um pedestal intocável na tomada de decisões relacionadas à pandemia, perde-se de vista essa concepção.  É preciso reconhecer isso, a fim de impedir que uma determinada esfera venha a coagir as demais.

Destarte, a dimensão ética das políticas públicas de saúde não pode ser ocultada ou ignorada, conforme é destacado no artigo A More Political Science, em que Peter Leithart escreve que: “os experts da saúde pública somente ganharão confiança se reconhecerem a dimensão política e moral do que eles estão fazendo”. O autor também afirma que:

As práticas e instintos do establishment da saúde pública geram desconfiança, mas essa desconfiança é piorada porque o moralismo paternalista é apresentado sob o disfarce de ciência neutra. Decisões políticas e morais devem ser feitas, mas elas não estão sendo apresentadas como decisões políticas e morais, mas como decisões da própria racionalidade.[16]

O século XX já mostrou o resultado trágico de entregar a sociedade ao controle de uma única esfera social, quando tornou o Estado em um ente totalitário (do qual, aliás, ainda precisamos constantemente nos defender). Pode ser que o século XXI esteja colocando diante desta geração o amargo desafio de ter de lutar contra a ideia daquilo que se poderia chamar de ciência totalitária, uma ciência que atrai para si o controle de toda a sociedade ao tentar se impor verticalmente, de cima para baixo, na qual os detentores do conhecimento científico decretam como devem viver os “leigos”, negando-lhes até mesmo seus direitos fundamentais em nome daquilo que dizem ser cientificamente necessário. Se outrora opor-se ao Estado significou posicionar-se contra o progresso, agora opor-se à ciência pode configurar crime contra a humanidade. O lema (consciente ou inconsciente) passa a ser este: se a ciência pôr, ninguém pode se opor. Resta a sensação de que questionar qualquer explicação cientificamente apresentada levará a pessoa a ser rotulada de irracional e inimiga da polis. O julgamento de Sócrates se repete cinicamente e ciclicamente na história. A considerada “melhor ciência” não tolera a liberdade de expressão, pois dela duvidar é prova de ignorância. “A ciência virou uma arma política”, e qualquer pessoa “ganha uma alavanca poderosa quando consegue marcar oponentes da política X como inimigos da razão”.[17] Talvez os especialistas, sacerdotes dessa nova religião disfarçada de agente neutro, são ainda desconhecedores da ameaça do poder que está em suas mãos, mas ela se torna mais real à medida que o discurso politicamente correto avança também sobre a ciência.

Em artigo publicado pela Embo Reports sobre o engajamento da Max Planck Society de vir a termos sobre o seu passado, intitulado In the name of Science: The role of biologists in Nazi atrocities: lessons for today’s scientists, o autor faz a seguinte observação:

Judeus, ciganos, homossexuais e pessoas com doenças hereditárias eram privados de seus direitos humanos, aglomeradas como gado em campos de concentração, usadas para experimentos científicos e assassinadas. E os cientistas que forneciam a base científica eram professores respeitados de universidades ou pesquisadores da Kaiser Willhelm Society (KWS), antecessora da Max Planck Society. Muitos deles permaneceram em posições de renome mesmo após 1945, influentes o suficiente para atrasar uma confrontação histórica não tendenciosa[18].

O século passado realmente representou uma era que deveria ter nos ensinado não somente acerca dos riscos de regimes totalitários, mas também que a ciência é amoral e pode se tornar serviçal de qualquer tipo de tirania. Mais perigoso do que o processo de deificação do conhecimento científico, ou mais ameaçador ainda do que governos ditatoriais, é o Estado unido à concepção de uma ciência inerrante. Não está a se afirmar que o confinamento para contenção do coronavírus ao redor do mundo se iguale às atrocidades da União Soviética de Josef Stálin, da Revolução chinesa de Mao Tsé-Tung, ou do nacional-socialismo de Adolf Hitler. Mas esse filme já foi visto antes, afinal, foi gente com PhD que inventou campos de extermínio. Não chegamos a tal ponto, é verdade, mas é demasiadamente preocupante ver um pequeno negociante preso por estar dentro de seu estabelecimento comercial, ou cultos religiosos online sendo encerrados, ou, então, mulheres e idosos sendo desrespeitados e levados por policiais pelo simples fato de estarem sentados em uma praça ou caminhando ao ar livre a fim de tomar um pouco de sol. Esse tipo de agressão à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais deveria, ao menos, nos fazer levantar uma sobrancelha, ainda mais quando são o resultado prático de decretos que refletem a preocupação das autoridades públicas em satisfazer as orientações de cientistas e especialistas da área de saúde.

A verdade é que a ciência não pode gozar do status de infalibilidade e de obediência incondicional. Como percebido acima, ela pode estar sujeita a interpretações eivadas de pressupostos  subjetivos ou ideológicos, posto que cientista nenhum está livre das influências de sua própria visão de mundo, ou, então, o que é mais grave, como a história já provou, poderá estar fortemente comprometida pela imposição de interesses políticos escusos e desumanos. Ressalte-se, ainda, por uma ótica mais otimista, que cientistas também erram com a intenção de acertar, ou, simplesmente aprimoram suas descobertas e mudam de parecer. Isso não é novidade. Qualquer pessoa adulta já viu a ciência mudar em torno de vários temas, bem como já ouviu da falta de concordância entre cientistas acerca de determinados temas ou pesquisas. Aliás, quem invoca suposto consenso científico para justificar decisões políticas é desconhecedor do que está falando ou meramente mal intencionado.

Foi dito com frequência durante esta pandemia que os países deveriam subscrever às recomendações de lockdown. Entretanto, os próprios epidemiologistas divergiam entre si sobre a eficácia de tais medidas drásticas.[19] A própria OMS chegou a se manifestar no sentido de que a Suécia, que evitou o lockdown, deveria servir de modelo.[20] Tudo isso demonstra que a ciência, seja através de especialistas ou de instituições que a representam, jamais deveria ser usada como parâmetro único em deliberações que concernem a vida das pessoas. A ciência é dinâmica, além de ser falha e limitada, haja vista ser exercida, administrada e interpretada por homens e mulheres que são falhos e limitados.21

Concluindo. Isso tudo nos remete ao título deste artigo: imago Dei em isolamento é um problema que ultrapassa o que se convencionou chamar de ciência. A dignidade do homem e da mulher é refletida na imagem de um Deus que se expressa no respeito da individualidade e no desempenho do convívio social. Com esse propósito o Criador declarou que não é bom que esteja só o homem. Logo, não há método científico capaz de prever e controlar as consequências de se amputar essa singularidade humana. Não se está aqui rejeitando o pensamento científico, pois isso seria o mesmo que desprezar um dom dado por Deus que nos ajuda a compreender, governar e utilizar bem da sua criação – e até mesmo auxilia a resolver da melhor maneira possível problemas da vida em sociedade, como este que agora enfrentamos. Afinal, o ser humano foi feito com inteligência, sendo-lhe atribuído um mandato cultural que implica em conhecer a ordem criada.  Contudo, fazer da ciência a solução última para algum bem da humanidade é reducionismo, é diminuir o ser humano a um objeto de pesquisa, é enxergar a raça humana como um rebanho de animais a ser gerenciado por dados metodológicos ou por interesses de quem controla a porteira do estudo empírico.

A desconfiança ao conhecimento científico não é, portanto, fruto de ignorância; muito pelo contrário, é um exercício de pensar a sociedade a partir da integralidade do ser humano. Os cientistas também são pessoas afetadas pela queda, e, por isso, erram, ou involuntariamente, ou a partir de pressupostos equivocados de suas cosmovisões, ou intencionalmente, por interesses diversos, subordinação, ou determinações alheias. Ainda, a ciência possui limites próprios intrínsecos à sua área de atuação. Desse modo, aos teólogos e à igreja como instituição deve ser oportunizado o papel de contribuir com o debate público, trazendo o aspecto transcendental da vida em sociedade e cooperando com as demais esferas sociais que têm o seu foco no imanente, tal qual a própria ciência e a comunidade científica.

Por todo o exposto, pode-se afirmar seguramente que as implicações de confinar portadores da imago Dei em isolamento, mesmo a fim de tentar solucionar uma crise humanitária de saúde, é uma questão que está além da ciência, uma equação na qual ela é parte da soma, mas não pode e nem deveria tentar resolver sozinha.

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[1]  Mapa atualizado de contagem disponível neste link: https://www.worldometers.info/coronavirus. Acesso em 08  de setembro de 2020.

[2] A declaração do governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite em sua conta do Twitter é um claro exemplo da influência da ciência sobre a determinação de políticas públicas: “Com base em evidências científicas e na evolução do contágio por coronavírus, determinei agora à noite o fechamento do comércio em todo o território estadual até o dia 15 de abril”. Disponível em: https://twitter.com/EduardoLeite_/status/1245156030214033409. Acesso em 01 de abril de 2020. Também digna de citação a manchete do portal de notícias Terra sobre a permanência do Ministro da Saúde no cargo: “Mandetta diz que fica, mas sobe o tom e clama por “ciência””. Disponível em: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude/mandetta-diz-que-fica-mas-sobe-o-tom-e-clama-por-ciencia,fcebb973f68cb4c1a00eb68c595c323ezuitx4kf.html. Acesso em: 06 de abril de 2020.

[3] O isolamento social em meio a epidemias já ocorreu em outros momentos da história, tendo sido, inclusive, defendida por pastores e teólogos reformados. Disponível em: https://coalizaopeloevangelho.org/article/teologos-reformados-historicos-sobre-a-igreja-em-quarentena-e-o-distanciamento-social. Acesso em 01 de abril de 2020.

[4] Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/69/wr/mm6932a1.htm?s_cid=mm6932a1_x. Acesso em 08 de setembro de 2020.

[5] Disponível em: “https://twitter.com/filgmartin/status/1294247142773620738?s=20. Acesso em 08 de setembro de 2020.

[6] Disponível em: https://www.washingtonpost.com/business/2020/04/02/jobless-march-coronavirus. Acesso em: 06 de abril de 2020.

[7] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2020/09/4872685-queda-de-9-7–e-a-pior-da-historia-do-pib.html. Acesso em: 08 de setembro de 2020.

[8] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/desemprego-chega-a-129-em-meio-a-pandemia-da-covid-19.shtml. Acesso em 08 de setembro de 2020.

[9] Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/08/20/aumenta-parcela-de-domicilios-brasileiros-que-recebem-auxilio-emergencial.ghtml ou as ferramentas oferecidas na página. Acesso em: 08 de setembro de 2020.

[10] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/13/casos-de-violencia-contra-mulher-aumentam-30percent-durante-a-quarentena-em-sp-diz-mp.ghtml. Acesso em 04 de maio de 2020.

[11] Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/violencia-contra-a-mulher-aumenta-em-meio-a-pandemia-denuncias-ao-180-sobem-40/. Acesso em 08 de setembro de 2020.

[12] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2020/05/23/casos-de-abuso-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-aumentam-53percent-na-quarentena-em-bauru.ghtml. Acesso em 08 de setembro de 2020.

[13] Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2020/08/acesso-a-sites-pornos-cresce-600percent-em-periodo-de-home-office-diz-pesquisa.ghtml. Acesso em: 08 de setembro de 2020.

[14] Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2020/04/coronavirus-o-dramatico-aumento-da-atividade-dos-pedofilos-virtuais-com-o-isolamento.html. Acesso em: 08 de setembro de 2020.

[15] Tal qual o fez um articulista do jornal norte-americano New York Times. Disponível em: https://www.washingtonexaminer.com/opinion/new-york-times-op-ed-blames-coronavirus-on-conservative-christians. Acesso em 31 de março de 2020.

[16] Disponível em: https://theopolisinstitute.com/leithart_post/political-science/?fbclid=IwAR3_ENkQA6JoFPSDSQ774WzJsRWmpEE92W9MBj9kmKG0L9ejgBfT3LZQchM. Acesso em 04 de maio de 2020. Tradução minha.

[17] Idem

[18] In the name of Science: The role of biologists in Nazi atrocities: lessons for today’s scientists. EMBO Rep. 2001 Oct 15; 2(10): 871–875. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1084095. Acesso em: 06 de abril de 2020. Tradução minha.

[19] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/epidemiologistas-divergem-sobre-eficacia-de-medidas-drasticas-contra-o-virus.shtml. Acesso em 08 de setembro de 2020.

[20] Disponível em: https://www.foxnews.com/world/who-sweden-which-avoided-mass-coronavirus-lockdowns-should-be-model-for-the-world. Acesso em 04 de maio de 2020. Vale destacar a seguinte linha da reportagem: “O que foi feito diferentemente é que se confiou muito na sua relação com a cidadania e habilidade e disponibilidade dos cidadãos de implementar distanciamento físico e de se autorregularem” (tradução minha). Em outras palavras, na prática, o governo sueco entendeu que seus cidadãos querem o melhor para si e para o próximo, e confiou na individualidade para o bem da coletividade.

21 Vale a leitura do artigo “What a massive database of retracted papers reveals about science publishing’s ‘death penalty’”, publicado pela American Association for the Advancement of Science, que apresenta dados acerca de retratações em artigos científicos. Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2018/10/what-massive-database-retracted-papers-reveals-about-science-publishing-s-death-penalty. Acesso em 19 de setembro de 2020.

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