União estável como aliança matrimonial: o casamento pertence a Deus e não ao Estado

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Introdução

União estável é assim definida no Código Civil brasileiro, em seu art. 1.723:

Art. 1.723 — É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Quando ainda trabalhava como diretor do departamento de Direito Religioso em um importante escritório de advocacia em Porto Alegre especializado nessa área, incumbiu a mim elaborar um parecer encomendado por uma organização cristã internacional atuante no Brasil. A consulta buscava uma reposta em relação à possiblidade de realizar cerimônia religiosa de casamento para casais vivendo em união estável. Pretendia-se responder às seguintes perguntas: união estável e casamento são equiparados perante o ordenamento jurídico brasileiro ou são institutos distintos? Casais com declaração de união estável estariam aptos para serem recebidos na igreja como pessoas casadas através de uma cerimônia religiosa?

Pouco tempo depois, o parecer foi adaptado para ser publicado em forma de artigo pela Revista Teologia Brasileira,[1] chegando a alcançar mais de uma dezena de milhares de acessos, o que demonstra ser esta uma dúvida frequente em muitas igrejas e entre líderes eclesiásticos. O objetivo da publicação foi de orientar pastores e líderes cristãos acerca das nuances jurídicas que envolvem o assunto, oferecendo também uma reflexão bíblica, quer seja para contribuir com o ensino e discipulado dos seus membros, quer seja para a tomada de decisão em situações concretas com as quais pastores se deparam no exercício do ministério em relação ao status matrimonial de casais que se encontram vivendo em configurações familiares diversas.

A reposta do parecer mencionado, reproduzido no artigo publicado, foi no sentido de que “casamento e união estável não são equiparados no ordenamento jurídico brasileiro”, e “as pessoas que desejam buscar o religioso devem primeiro sanar o civil, a fim de não trazerem confusão para a comunidade, para a igreja e para eles mesmos”, pois “geraria grande incoerência um casal alegar ser ‘casado na igreja’ e viver em união estável, o que os coloca perante a sociedade em estado civil diverso — solteiro, divorciado ou viúvo”.

O referido parecer acertou em afirmar que os dois institutos não se equiparam perante a legislação, bem como em recomendar que havendo facilitação da lei para conversão de união estável em casamento, a igreja deve efetivá-la. Contudo, a afirmação de que a Bíblia os diferencia é que deve ser retificada, ou seja, corrigida, com o devido esclarecimento, pois, biblicamente, não é a nomenclatura da lei humana que define o vínculo conjugal de um casal, e sim a aliança estabelecida entre um homem e uma mulher para formação de uma nova família.

Logo, o que se pretende com este presente artigo é esclarecer que, à luz das Escrituras, aquilo que a legislação brasileira denomina de união estável, na verdade, forma uma aliança matrimonial, ainda que investida de informalidade, posto que cumpre os parâmetros do que a Bíblia chama de casamento: a aliança entre um homem e uma mulher que se unem, tanto fisicamente como espiritualmente, para formação de uma nova família.

A Palavra de Deus como definidora da aliança matrimonial

O casamento foi criado por Deus, e sua definição e estabelecimento são de atribuição da Lei divina, das Escrituras, não da legislação dos homens. Assim, a realidade espiritual da relação entre um homem e uma mulher deve ser confrontada e discernida pelos preceitos bíblicos. O matrimônio foi instituído por Deus em Gênesis, e nenhuma instituição humana, nem mesmo o Estado, pode determinar sua essência.

Apesar de o parecer acima citado ter acertado em termos legais e prática eclesiástica acerca da recomendação para que “as pessoas que desejam buscar o religioso devem primeiro sanar o civil”, restou equivocado ao interpretar a Bíblia a partir das definições jurídicas da nossa legislação. Ocorre que, mesmo diante do fato de nosso Direito Civil pátrio distinguir a união estável do instituto legal do casamento, o status de aliança matrimonial de um casal em coabitação familiar carrega em si a realidade espiritual de vida conjugal. Pouco importa a nomenclatura jurídica e a existência ou não de um rito de passagem que seja simbolizado por uma cerimônia religiosa ou pela assinatura de um contrato civil. O matrimônio é uma relação espiritual, estando subordinada à esfera da família em termos de instituições humanas, não à esfera do Estado.

Ainda que o Direito de Família no Brasil faça uma distinção da união estável em termos legais, chamando as partes de parceiros e não de cônjuges, o que pesa biblicamente para a configuração do vínculo conjugal são os termos de Gênesis 2.24: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne”.  De acordo com esse verso, há três requisitos para se discernir a existência da relação conjugal e a efetiva constituição familiar através do casamento:

  • o homem deixar pai e mãe, que significa a formação de um novo lar;
  • o homem unir-se à sua mulher, ou seja, essa união deve ser de duas pessoas de sexos distintos;
  • tornarem-se os dois uma só carne, o que aponta para a consumação da aliança com o ato sexual.

Vemos em Gênesis que, ainda que o primeiro casal da história da humanidade não tivesse pais biológicos aos quais pudesse deixar, bastou a intenção de formar uma família para estarem unidos em matrimônio, conforme ordem de Deus.  Não havia, tampouco, uma instituição humana, representada por um sacerdote religioso ou um juiz de paz, para declará-los marido e mulher. Adão e Eva possuíam um mandato cultural de multiplicar e encher a terra, tendo sido suficiente unirem-se um ao outro e tornarem-se ambos uma só carne.

Lembremos também a história de Isaque e Rebeca, em que todo arranjo de casamento foi feito entre as famílias, sem qualquer participação de uma autoridade civil ou religiosa. A consumação da aliança se deu com Rebeca sendo conduzida por Isaque à tenda de sua falecida mãe para se relacionarem intimamente, e ali tornaram-se marido e mulher. Esse casamento é assim narrado em Gênesis 24.63-67:

Saíra Isaque a meditar no campo, ao cair da tarde; erguendo os olhos, viu, e eis que vinham camelos. Também Rebeca levantou os olhos, e, vendo a Isaque, apeou do camelo, e perguntou ao servo: Quem é aquele homem que vem pelo campo ao nosso encontro? É o meu senhor, respondeu. Então, tomou ela o véu e se cobriu. O servo contou a Isaque todas as coisas que havia feito. Isaque conduziu-a até à tenda de Sara, mãe dele, e tomou a Rebeca, e esta lhe foi por mulher. Ele a amou; assim, foi Isaque consolado depois da morte de sua mãe.

A fim de se casarem, Isaque e Rebeca deixaram a casa de seus pais, uniram-se para a constituição de seu próprio lar, e tornaram-se uma só carne mediante consumação do ato conjugal. Isso bastou para entrarem em aliança matrimonial sem qualquer rito, contrato escrito ou cerimônia. João Calvino, ao dissertar em suas Institutas sobre por que o casamento não é um sacramento, aponta justamente para o fato de que não é necessária uma cerimônia para confirmar o pacto, ao que conclui com certa ironia acerca da obviedade do tema:

[…] para que haja sacramento, não somente se requer que seja obra de Deus, mas é necessário ainda que exista uma cerimônia externa, ordenada por Deus, para confirmar a promessa. Ora, até as crianças poderão julgar que não há nada semelhante no matrimônio.[2]

Vale salientar que o ordenamento jurídico brasileiro reconhece que na união estável estão presentes esses três pilares formadores do matrimônio conforme designado por Deus em Gênesis: o casal constitui um novo núcleo familiar (deixar pai e mãe), união de duas pessoas do sexo oposto (o homem unir-se à sua mulher), consumação pela coabitação em ato íntimo (tornam-se os dois uma só carne).

Comparando Gênesis 2.24 com o art. 1.723, do Código Civil brasileiro, teremos o quadro abaixo, relacionando a finalidade de cada passo na constituição de aliança matrimonial:

Gênesis 2.24 — Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.

Art. 1.723, Código Civil — É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família (grifo nosso).

 

Casamento segundo a Bíblia – Gn 2.24 União estável no Art. 1.723 — Código Civil brasileiro Finalidade
Deixa o homem pai e mãe… Com o objetivo de constituição de família Deixar o lar dos pais para formar sua própria família
e [o homem] se une à sua mulher… Entidade familiar entre homem e mulher A união é entre duas pessoas de sexos distintos
tornando-se os dois uma só carne. Convivência (compreendendo que se trata do conhecimento público que há coabitação íntima do casal) Consumação da aliança pela existência de ato conjugal

 

O casamento civil no Brasil e sua gradual deterioração

Até o fim do Estado confessional no Brasil, o casamento era oficiado simplesmente através da realização da cerimônia religiosa mediante sacerdote da igreja católica, que guardava uma certidão em seus arquivos para eventual necessidade de comprovação do matrimônio para fins civis. É interessante observar que, ainda hoje, a igreja de Roma celebra casamento no Brasil sem a necessidade de habilitação civil, inclusive aceitando a união estável como efetiva aliança matrimonial perante a sociedade. Isso se justifica pela existência de seu próprio Direito Canônico.

A proclamação da República inaugurou a era do Estado laico em nosso país, fazendo-se necessário desligar a realização do casamento da instituição eclesiástica para fins civis. Foi, então, a partir do Decreto 181 que o casamento civil no Brasil passou a existir. Entrou em vigor em 24 de janeiro de 1890, assinado pelo então Chefe do Governo Provisório Marechal Deodoro da Fonseca. Em seu artigo 1º assim declarava:

Art. 1º As pessoas, que pretenderem casar-se, devem habilitar-se perante o official do registro civil.[3]

Pelo decreto 181, o divórcio só poderia ocorrer por motivo de adultério, abandono, violência ou injúria grave. De qualquer maneira, não dissolvia o vínculo conjugal, apenas autorizava separação indefinida e cessava o regime de bens, “como se o casamento fosse dissolvido”. O Código Civil de 1916 instituiu o desquite, que ainda não se diferenciava da forma de divórcio estabelecida pelo Decreto 181, pois finalizava a sociedade conjugal sem diluir o vínculo matrimonial. Em 1977, foi permitido o divórcio como instrumento de dissolução da aliança matrimonial (o que possibilitou o segundo casamento), se o casal estivesse há mais de 5 anos separado judicialmente ou mais 7 anos de fato. Esse tempo foi diminuído pela Constituição de 1988, para um ano de separação judicial ou dois anos de fato. Em 2010, a Emenda Constitucional 66 retirou tal exigência, permitindo a possibilidade de divórcio direto. Foi também a Constituição de 1988 que estabeleceu a união estável como modalidade de vínculo familiar, ao ponto que antes a relação entre os amasiados era considerado concubinato. Enfim, o código Civil de 2002 definiu que “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato” (art. 1.727).[4] Isso significa que somente relações contínuas (não eventuais) entre duas pessoas sem impedimento de casar podem constituir união estável, visto que configura a formação de uma nova família monogâmica.

Em 2013, aproveitando-se de uma decisão judicial acerca do reconhecimento de união estável homoafetiva, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) inovou ao obrigar os cartórios a celebrarem a união entre homossexuais. A resolução 175, de 2013, manda que os cartórios civis celebrem o casamento civil ou convertam a união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, conforme seu artigo 1o: “É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo”.[5]

Importante perceber que a quebra do laço exclusivamente religioso do casamento, transferindo-o da esfera familiar e eclesiástica para a autoridade do Estado, possibilitou que se abrissem as portas para a flexibilização do fim do vínculo conjugal e para a deturpação do conceito de casamento. Inclusive, de um ponto de vista ideologicamente progressista, é comum encontrar matérias exaltando a “evolução” do casamento civil, desde a permissão do divórcio, do segundo casamento e, mais recentemente, com o reconhecimento da união estável homoafetiva como uma espécie de contrato conjugal.[6]

É fato que essas mudanças fizeram parte de um processo mais complexo de secularização da sociedade. Porém, nota-se que a estatização do matrimônio teve um papel importante na deterioração da ideia de casamento.[7] Em que pese a igreja católica romana ter um entendimento diferente da doutrina protestante sobre o matrimônio, pois considera ser este um santo sacramento, é imperioso reconhecer que foi uma boa guardiã dos valores bíblicos da família até que teve de dividir a sua regulação com o poder estatal.

O Cônego Abílio Soares de Vasconcelos, doutor em Direito Canônico pela Universidade Gregoriana de Roma, em sua obra “Casamento Sacramento do Matrimônio”,[8] escreveu sobre as competências dos Direitos Divino, Canônico e Civil no campo do casamento e família. Sua posição em relação à regulação da família na sociedade em muito se assemelha ao entendimento neo-calvinista da soberania das esferas e, até mesmo, mostra-se compatível com o modelo de laicidade colaborativa brasileira, posto que o autor sugere uma cooperação entre Religião e Estado nessa área:

No que se refere a bens materiais, a competência é do Estado, portanto os católicos devem seguir o Direito Civil (cân. 1672).Igreja e Estado devem caminhar juntos na proteção à família e unir suas competências para manter uma sociedade saudável de corpo e alma. A briga de competências enfraquece o Estado e obscurece a face de justiça da igreja.Resultado do bom entendimento entre igreja e Estado, o Direito canônico assumiu a competência relativa ao “bem das almas” (cân. 1752), e o Direito Civil assumiu a competência relativa aos assuntos referentes aos bens do corpo, os bens materiais (cân. 22).

Para o doutrinador católico, deve haver o complemento para fins de colaboração entre Estado e igreja no tocante ao instituto do casamento, sendo bem delineado que a competência do “bem das almas” pertence às normas da Religião, restando à autoridade civil a proteção do “bem do corpo e dos bens materiais”. Aplicando-se a doutrina da soberania das esferas, de igual modo, haveria uma solução similar e salutar a fim de se evitar a intromissão do Estado na questão matrimonial. Se fosse atribuída somente à igreja o papel de definir o que é casamento, bem como a declaração de quais casais são casados, bastaria ao Estado cuidar das questões patrimoniais relativas à essa relação.

Contudo, essa divisão não existe de forma clara no Brasil, e o Estado, através de seus poderes Legislativo e Judicial, tomou para si a prerrogativa de legitimar o casamento a partir da conveniência social. Desse modo, foi a partir da deturpação do conceito de vínculo conjugal pelo Estado que se começou a chamar de casamento o que não é casamento, tal qual a união homoafetiva, e a deixar de chamar de casamento aquilo que o é, tal qual a união estável. Ora, a união estável é a união de duas pessoas do sexo oposto para fins de formação de um núcleo familiar através de uma aliança consumada pelo ato conjugal — isso é casamento segundo a Bíblia.

Curiosamente, conforme já exposto anteriormente, mesmo distinguindo a união estável do casamento, o ordenamento jurídico brasileiro não deixou de reconhecer a mesma essência entre os dois institutos.  O Código Civil, no art. 1.511, dispõe que “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. O que isso diferencia da união estável, posto que esta é composta com o objetivo de constituição da família? O que pode ser mais plena comunhão de vida do que a vida familiar? Tanto o é que o art. 1724 coloca acerca da união estável que “as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos”. Teria sido mais coerente denominar a união estável de casamento de fato.[9]

Ao criar o instituto da união estável, fica evidente a confusão que a Constituição de 1988 trouxe acerca da aliança matrimonial. Casais em união estável possuem um vínculo conjugal de fato, sem, no entanto, terem o seu estado civil alterado — permanecendo solteiros, divorciados ou viúvos, de acordo com o que se encontravam antes de instituir sua presente família. Essa configuração pode encorajar que as partes neguem suas responsabilidades conjugais perante a pessoa com quem vivem e com quem são, de fato, casadas. Ainda, pode fazer com que o casal perceba-se em uma situação facilitada para quebrar sua aliança sem maiores consequências aparentes, principalmente quando ainda não têm filhos envolvidos. Contudo, o vínculo espiritual de um casal em relação matrimonial não pode ser quebrado.

 

Conclusão: a igreja deve ajudar cada casal a discernir sua condição

Nas últimas décadas, a coabitação tornou-se prática comum de início da vida conjugal em nossa sociedade. Desse modo, sem um marco público e distinto, seja através de uma cerimônia religiosa ou da realização do casamento civil, muitas vezes pode ser tarefa difícil traçar a linha entre a relação sexual entre solteiros (biblicamente, fornicação) e a formação de um novo lar ou uma nova família (biblicamente, casamento).

É perfeitamente compreensível, entretanto, que o ato sexual em si não estabelece uma aliança, pois fora do casamento configura pecado de fornicação e prostituição, tal qual Paulo alertou, em 1Coríntios 6.15-16, no tocante à santidade do corpo:

Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? E eu, porventura, tomaria os membros de Cristo e os faria membros de meretriz? Absolutamente, não. Ou não sabeis que o homem que se une à prostituta forma um só corpo com ela? Porque, como se diz, serão os dois uma só carne.

Por isso, em cada situação concreta é necessário ajudar o casal a discernir a realidade espiritual de sua coabitação. Não se trata de análise subjetiva, pois os critérios bíblicos para a constatação de uma aliança matrimonial são claramente objetivos: o objetivo de formação de um novo lar (deixar pai e mãe), composto por duas pessoas do sexo oposto (o homem une-se à sua mulher), que se relacionam sexualmente (tornando-se os dois uma só carne). O casal nessa condição irá precisar do auxílio e acompanhamento pastoral para compreender a natureza de sua união e de uma eventual relação conjugal, ainda que a lei humana não denomine de casamento esse relacionamento, e chame de parceiro (não de cônjuge) aquele com quem vive.

Se for recomendada a separação de um casal em união estável que se uniu para constituição familiar, o pastor estará, na prática, encorajando o pecado do divórcio —  mesmo que inexistente uma certidão civil que assim o declare. E se uma das partes vier a casar de novo ou coabitar em união estável com outra pessoa, estará em segundo casamento. O que deve ser feito nesses casos, em que o casal já constitui família através da união estável, é o arranjo para o casamento civil e a devida cerimônia religiosa, ainda que por meio de uma simples benção pastoral.

Faz-se importante deixar claro que o propósito deste artigo é o de orientar pastores, líderes eclesiásticos ou discipuladores sobre como avaliar a relação de um casal que já vive em coabitação, a fim de que sanem sua condição civil de acordo com o que já é de fato no âmbito familiar e espiritual.  Não se pretende aqui desestimular o casamento civil àqueles que estão planejando o início de sua vida matrimonial. Pelo contrário, deve-se orientar aos que desejam se casar na igreja a buscarem conformar seu estado civil como tal, pois para o bom testemunho cristão, devemos respeitar o Estado e seguir as leis humanas quando estas não contrariam a Lei de Deus.

No princípio, Deus criou o casamento com a paradoxal simplicidade e profundidade da relação entre um homem e uma mulher, e assim deve ser discernido e obedecido. Quando um homem e uma mulher coabitam, constituem um novo lar e se fazem uma só carne, estão unidos pelos laços inquebráveis do matrimônio. Isso é poderosíssimo, tendo graves consequências negar a condição espiritual dessa relação. Como Paulo ensina em Ef 5.32-33, o casamento é a instituição humana que reflete a união de Cristo com a igreja: “Eis por que deixará o homem a seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e se tornarão os dois uma só carne. Grande é este mistério, mas eu me refiro a Cristo e à igreja”.

Sem dúvida que o desarranjo atual da família moderna é, sobretudo, fruto do declínio ético da sociedade e do abandono dos valores judaico-cristãos. Todavia, o Estado recebeu uma atribuição que não lhe incumbe, de regular o matrimônio e a vida familiar, cavando ainda mais fundo o buraco moral em que se encontra a instituição do casamento em nossos dias. Portanto, cabe à igreja de Cristo trazer a clareza necessária acerca desse tema e orientar seus membros a fim de resgatar os conceitos e valores bíblicos acerca da aliança matrimonial. Por fim, a igreja deve também manifestar-se e cumprir o seu papel profético perante toda a sociedade, não se deixando moldar pelas concepções mundanas de família. O casamento pertence a Deus, que o define em sua Palavra, e não ao Estado e suas leis.

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Referência bibliográficas:

[1]Sugiro a leitura do referido artigo para uma melhor compreensão das diferenças entre casamento e união estável no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: https://teologiabrasileira.com.br/diferencas-entre-casamento-e-uniao-estavel/. Acesso em 13 de março de 2023.

[2]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã. vol. 1. [publicado em português por Ed. UNESP]. .

[3]Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d181.htm. Acesso em 13 de março de 2023.

[4]O objetivo deste artigo não é entrar nos detalhes do concubinato, mas vale destacar que a atual legislação brasileira não equivale aos conceitos culturais dos tempos bíblicos, em que a concubina era uma espécie de esposa de segunda classe, sem, contudo, todos direitos das esposas principais.

[5]Até então, na América Latina somente Uruguai e Argentina permitiam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Disponível em: https://reuters-brasil.jusbrasil.com.br/noticias/100512787/cnj-obriga-cartorios-a-reconhecer-uniao-de-pessoas-do-mesmo-sexo. Acesso em 13 de março de 2023.

[6]Globo Cidadania: A história do Casamento Civil no Brasil. Disponível em: http://redeglobo.globo.com/globocidadania/noticia/2013/01/historia-do-casamento-civil-no-brasil-acompanha-mudancas-da-familia.html. Acesso em 13 de março de 2023.

[7]Devemos reconhecer também que não é fácil pensar uma solução dentro do Estado laico em que o instituto do matrimônio não ficasse sob o domínio da autoridade de legisladores e de juízes. Pagamos hoje, todavia, o preço da deterioração dos valores familiares na sociedade por atribuir ao Estado algo que não deveria pertencer à sua esfera, qual seja, o papel de definir o que é casamento.

[8]Abílio Soares de Vasconcelos, Casamento — sacramento do matrimônio, p. 30-1 [publicado em português por Tolle Lege].

[9]O que a legislação brasileira denomina de união estável é reconhecida como “common-law marriage” em alguns estados norte-americanos — literalmente “casamento consuetudinário”, do direito anglo-saxão baseado nos costumes. Em português, uma tradução coerente ou equivalente poderia ser “casamento de fato”. Ver site: https://www.findlaw.com/family/marriage/common-law-marriage.html. Acesso em 13 de março de 2023.

1 COMENTÁRIO

  1. Obrigado pelo artigo.
    Relembremos que tudo feito por Deus foi simples e a coabitação era a consumação do ‘casamento’. Lembremos do princípio bíblico da primeira menção…o qual condiciona as leituras subsequentes sobre o tema.
    Hoje, ao contrário, exige-se isso, aquilo e mais aquilo para constituir uma família e esquecem que o que importa não é o externo, mas o interno, dentro dos pré-requisitos bíblicos.
    Frise-se que há casamentos com separação total de bens…uma prova clara que o objetivo principal não é a constituição da família, mas regular e preservar o meu e o seu, como se permanecessem duas carnes independentes e que vivem para si.
    Para ilustrar o que digo, o ‘contrato de troca’, bastava que duas pessoas entregassem seus objetos. Com o tempo passou-se a exigir testemunhas, passou mais um pouco, contrato escrito, mais um pouco, reconhecimento de firma, mais um pouco, reconhecimento de firma por autenticidade, mais um pouco, garantias contratuais pessoais … mais um pouco … garantias reais … quando o que deveria haver é simplesmente a verdade da palavra empenhada. Quanto mais longe está o homem da verdade da palavra empenhada, mais requisitos tem que ser acrescentados.
    E disse Deus … e se fez. O homem deveria agir ‘como’ Deus, dai a advertência da Palavra dizer ‘sim, sim, não não’ e assim ser também. Uniu-se, está unido, trocou, está trocado…
    Acredito que poucos líderes religiosos entenderão o sentido expresso no texto ora comentado, eles querem de toda forma tentar fazer que o direito regule relações como uma ‘lei’, a qual não teve o condão de salvar ninguém desde sempre, mas apenas funcionou como um tutor a nos conduzir a Cristo e à verdade da Palavra, e nunca terá o poder de instituir um casamento verdadeiro.
    Se a observância de casar no civil tivesse algum poder o número de divórcios não poderia ser grande como é.
    Por fim, nada impede de casarmos, para obedecer a lei dos homens, pois temos que dar testemunho de cumprir as leis humanas (dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus).
    Shalom Adonai

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