Vivendo na plenitude dos tempos: Agamben e Zizek leitores de Paulo

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Introdução
Existe contemporaneamente uma recuperação secularizada do pensamento do apóstolo Paulo por vários filósofos, juristas e pensadores não cristãos.1 Por esse motivo, uma série de pensadores hodiernos volta-se para os escritos de Paulo como fontes privilegiadas para se pensar a condição humana e a condição social contemporânea de uma forma muito frutífera – para além daquela visão tacanha da academia que tradicionalmente só conseguia enxergar a Bíblia como um livro mitológico sem importância para o pensamento. O que estes autores têm mostrado é que as Escrituras são uma fonte privilegiada na história dos sistemas de pensamento, bem como o pensamento de Paulo de importância fundamental.

Dentre estes pensadores, gostaríamos de chamar atenção de dois que se ocuparam da temática do tempo messiânico a partir de um olhar paulino. O esloveno Slavoj e o italiano Giorgio Agamben. O primeiro há muito tem escrito sobre teologia política e sobre o legado cristão para se pensar a contemporaneidade social. Contudo, para os nossos interesses imediatos, um livro recente se destaca: Vivendo no fim dos tempos (2010). Nele o filósofo desenvolve a tese de que estamos “em termos históricos, os ‘tempos interessantes’, [que sempre] foram períodos de inquietação, guerra e luta pelo poder em que milhões de inocentes sofrem as consequências” (, 2012, p. 291). Ou seja, estamos vivendo no fim dos tempos, de um ponto de vista histórico-social, em que se aproxima um ponto zero apocalíptico. Para o filósofo, “seus ‘quatro cavaleiros do Apocalipse’ são a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema”, isto é, “(problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matéria-prima, comida e água) e o crescimento explosivo das divisões e exclusões sociais” (2012, p. 11-12). Contudo, algo com que conclui seu texto a respeito de uma característica de viver em tempos assim, é que:

Nossa situação, portanto, é diametralmente oposta à dificuldades clássica do século XX, em que a esquerda sabia o que tinha de fazer (fundar a ditadura do proletariado, etc.), mas precisava esperar com paciência até que surgisse a oportunidade. Hoje, não sabemos o que fazer, mas temos de agora, porque as consequências da inação podem ser catastróficas. Temos de nos aventurar no abismo do novo em condições totalmente inadequadas; temos de reinventar aspectos do novo apenas para manter o que era bom no velho (educação, assistência médica, etc.). […] Em resumo, nossa época pode ser caracterizada do mesmo modo como Stalin caracterizou a bom atômica: não é para quem tem nervos fracos. O comunismo, hoje, não é o nome da solução, mas o nome do problema: o problema das áreas comuns em todas as suas dimensões. […] Seja qual for a solução, ela terá de resolver esse problema (2012, p. 362).

O que fica claro neste raciocínio de é que, embora a situação planetária não possa continuar como está, nenhuma das tradicionais áreas de ação política tem a menor e mais animadora proposta para desencadear algo de novo no mundo da vida. Comunismo já não é mais o nome da solução hoje, mas o nome daquilo que caracteriza a essência de todos os problemas que enfrentamos. Neste sentido, quem erguer para si a incumbência de responder as questões contemporâneas precisará dar conta de problemas desta natureza.

I. O tempo messiânico e o fim dos tempos

Justamente diante deste cenário de que estamos vivendo em um achatamento temporal característico do fim dos tempos, é que Giorgio Agamben identifica quem realmente precisa assumir um papel decisivo na contemporaneidade: a Igreja. Em uma conferência proferida à catedral de Notre-Dame, em Paris, em março de 2009 o filósofo nos diz o seguinte:

O tempo do Messias, como veremos, não é um período cronológico, mas sobretudo uma transformação qualitativa do tempo vivido. E, nesse tempo, algo como um atraso cronológico – como se diz de um trem que está atrasado – não é nem mesmo concebível. Exatamente como a experiência do tempo messiânico é tal que é impossível nela habitar, assim também algo como um atraso não pode se produzir. É isso que Paulo lembra ao tessalonicenses: “A respeito da época e do momento, não há necessidade, irmãos, de que vos escrevamos. Pois vós mesmos sabeis muito bem que o dia do Senhor vem como um ladrão de noite” (1Ts 5,1-2). “Vir (erchetai)” está no presente, justamente como o Messias é chamado nos Evangelhos o “ho erchomenos”, aquele que vem, que não cessa de vir. Um filósofo do século XX, que tinha ouvido a lição de Paulo, repete do seu modo: “Cada instante é a porta estreita através da qual o Messias pode passar” (W. Benjamin). É, portanto, da estrutura desse tempo, que é o tempo do Messias como Paulo o descreve, que eu gostaria de tratar. Um primeiro mal-entendido que é preciso evitar com relação a isso é o de confundir o tempo e a mensagem messiânicos com o tempo e a mensagem apocalípticos. A apocalíptica se situa no último dia, o dia da cólera: vê o fim dos tempos e descreve aquilo que vê. O tempo que o Apóstolo vê, pelo contrário, não é o fim dos tempos. Se quiséssemos expressar com uma fórmula a diferença entre o messiânico e o apocalíptico, deveríamos dizer que o messiânico não é o fim dos tempos, mas o tempo do fim. Messiânico não é o fim dos tempos, mas a relação de cada instante, de cada kairós, com o fim dos tempos e com a eternidade. Assim, aquilo que interessa a Paulo não é o último dia, o instante no qual o tempo termina, mas sim o tempo que se contrai e que começa a acabar. Ou, se preferirmos, o tempo que resta entre o tempo e o seu fim (AGAMBEN, 2013, s/p.).

Se esta conferência não tivesse sido proferida antes da publicação do livro de , poderíamos dizer sem medo de errar que Agamben está se dirigindo diretamente ao filósofo esloveno. Mas este não é o caso. O que o italiano faz aqui é corrigir uma tendência recorrente, dentro e fora do pensamento cristão, de encarar o tempo messiânico como o tempo apocalíptico, ou o fim dos tempos. Não é isso que está em questão nos escritos de Paulo nem na proposta filosófica de Agamben. “Como podemos representar esse tempo?”, pergunta o filósofo. Bem, a resposta é: “viver no ‘tempo que resta’ ou viver o ‘tempo do fim’ só pode significar uma transformação radical da experiência e também da representação habitual do tempo”. Isto significa dizer que “não é mais a linha homogênea e infinita do tempo cronológico profano (representável, mas vazio de qualquer experiência), nem o instante pontual e da mesma forma impensável do seu fim” (AGAMBEN, 2013, s/p.). Ou seja, trata-se de formular uma nova imagem do tempo que está para além “de todas as intervenções e mudanças histórico-redentoras anteriores na extensão do tempo” (RIDDERBOS, 2004, p. 88), isto é, o chronos e do kairos gregos. Neste sentido, trata-se de uma transformação radical da existência:

É um tempo que pulsa dentro do tempo cronológico, que o trabalha e o transforma a partir de dentro. É, de um lado, o tempo que o tempo emprega para terminar; de outro, o tempo que nos resta, o tempo do qual precisamos para fazer o tempo terminar, para atingir a meta, para nos libertarmos da nossa representação ordinária do tempo. Enquanto esta última, enquanto tempo dentro do qual acreditamos estar, nos separa daquilo que somos e nos transforma em espectadores impotentes de nós mesmos, o tempo do Messias, ao contrário, enquanto tempo operativo (kairós) no qual compreendemos pela primeira vez o tempo (o chronos), é o tempo que nós mesmos somos. É claro que esse tempo não é um outro tempo, que teria o seu lugar em algum outro lugar improvável e venturo. É, pelo contrário, o único tempo real, o único tempo que temos, e fazer experiência desse tempo implica em uma transformação integral de nós mesmos e do nosso modo de viver (AGAMBEN, 2013, s/p.).

Para justificar estas suas afirmações teológico-temporais, Agamben utiliza o texto bíblico de 1Coríntios 7.25-40 – que ele chama de: “uma passagem extraordinária, que é talvez a mais bela definição que ele deu da vida messiânica” (2013, s/p.). Segundo o filósofo, quando o apóstolo Paulo nos diz que “de agora em diante, aqueles que… vivam como se…” (v. 30-31), ele está explicando que “o sentido último da vocação messiânica é de ser a revogação de toda vocação.2   Justamente como o tempo messiânico transforma, a partir de dentro, o tempo cronológico, assim a vocação messiânica, graças ao ‘hos me’, ao ‘como se não’”, em outras palavras, “é a revogação de toda vocação, que muda e esvazia a partir de dentro toda experiência e toda condição factual para abri-la a um novo uso” (2013, s/p.).

Diante de tudo isto, fica ainda mais claro toda a relação escatológica que o apóstolo Paulo infere de uma simples pergunta da igreja local a respeito do casamento, virgindade, noivado e viuvez. No interior de seu pensamento, ainda que todas estas particularidades possam ser encaradas como vocações de Deus para seus filhos – como casamento, o celibato, etc. – elas, de forma alguma, podem sobrepujar a importância da vocação única e principal de todo discípulo de Cristo: a vocação messiânica. Acima de tudo, das “esposas… choro… felicidade… compras… coisas do mundo…” (v. 30-31), precisamos compreender que a vocação de viver no tempo messiânico é a revogação de toda a vocação – ou em um sentido mais abrandado, é a relativização de toda a vocação e condição pessoal. Pois todas as outras condições pessoais que não a vocação messiânica, fazem parte da “forma presente deste mundo [que] está passando” (v. 31).3

Ou seja, quando o apóstolo descreve a postura da Igreja no mundo, ele nos fornece o paradigma das condições de existência de vivermos na plenitude dos tempos. Observe que não devemos confundir a plenitude dos tempos com o fim dos tempos, como sugeriu . Isto porque não estamos vivendo as últimas coisas, mas sim as penúltimas coisas. Conforme sugere Agamben:

É um ponto importante, já que nos permite pensar corretamente essa relação entre as coisas últimas e as coisas penúltimas, que define a condição messiânica. Pode um cristão viver apenas de coisas últimas? Um grande teólogo protestante, Dietrich Bonhoeffer, denunciou a falsa alternativa entre radicalismo e compromisso, que parte, em ambos os casos, da separação clara entre as realidades últimas e as realidades penúltimas, isto é, aquelas que definem a nossa condição social e humana de todos os dias. Ora, como o tempo messiânico não é um outro tempo, mas sim uma transformação do tempo cronológico, assim viver as coisas últimas é, antes de tudo, viver de outro modo as coisas penúltimas. A verdadeira escatologia talvez não seja outra coisa que a transformação da experiência das coisas penúltimas. Já que as realidades últimas têm primeiro lugar dentre as penúltimas, estas – contra toda radicalismo – não podem ser simplesmente rejeitadas; mas – pela mesma razão e contra toda possibilidade de compromisso – as coisas penúltimas não podem ser consideradas como últimas. É com o verbo “katargein” – que não quer dizer “destruir”, mas sim tornar inoperante, literalmente “des-operar” – que Paulo expressa a relação entre o que é último e o que não é. A realidade última desativa, suspende e transforma a realidade penúltima, mas é, porém, no seu interior que ela entra em jogo inteiramente. Isso permite compreender a situação própria do Reino em Paulo. Ao contrário da corrente representação escatológica, deve ser lembrado que, para ele, o tempo do Messias não pode ser um tempo futuro. A expressão com a qual ele indica esse tempo é sempre “ho nyn kairos”, o tempo do agora. Como escreve em 2Cor 6,2: “[Idou nyn] Agora é o tempo favorável, agora é o dia da salvação!”. “Paroikia” e “parousia”, estada do estrangeiro e presença do Messias, têm a mesma estrutura que é expressada em grego com a preposição ”para”: a de uma presença que distende o tempo, de um já que é também um não ainda, de um atraso que não é um adiamento para mais tarde, mas um descarte e uma disjunção dentro do presente, que nos permite compreender o tempo. Vê-se bem, portanto, que a experiência desse tempo não é algo que a Igreja possa escolher entre fazer ou não fazer. Não existe Igreja senão nesse tempo e por meio desse tempo (2013, s/p.).

Com estas palavras Agamben fornece-nos lentes privilegiadas para compreendermos não só o texto supracitado de 1Coríntios 7, mas todo o pensamento do apóstolo Paulo que, segundo Herman Ridderbos, orbita em torno da concepção histórica do tempo escatológico da salvação iniciado pelo acontecimento-Cristo (cf. RIDDERBOS, 2004, p. 47). Para o apóstolo dos gentios, uma vez que o tempo messiânico é a transformação radical e qualitativa do tempo cronológico em que vivemos, viver o tempo que resta é viver de outro modo as coisas penúltimas, ou seja, todas as coisas que antecedem o verdadeiro fim dos tempos. A vida cristã em nossa condição social e humana de todos os dias, significa viver nosso casamento, comércio, utilização do mundo de um modo inoperante (cf. 1Co 7.25-40). Estas coisas já não estão em operação total, ou seja, não são nossa vocação principal, mas antes relativizam-se diante de nossa vocação messiânica de viver para a glória de Deus. Elas não são rejeitadas, como se não fossem importantes – como nos lembra Bonhoeffer falando a respeito dos radicalistas. Mas, antes, são vistas a luz de um novo compromisso: não um compromisso nosso simplesmente com elas, mas com o Messias, que transforma nossa maneira de viver no mundo. Além disso, Agamben também nos mostra que, por excelência, este modo de vida messiânico só pode ser vivido pela Igreja. Não existe Igreja sem esta vocação.

II. A Igreja agindo nas coisas penúltimas contemporaneamente
Após esta reconstrução da argumentação de Agamben, podemos nos voltar àquilo que falamos no começo, a saber: a concepção histórico-escatológica do apóstolo Paulo tem potencialidade criativa não só para o ambiente cristão, mas também de um pensamento teológico-político pungente. A demanda político-social que levantou em sua obra Vivendo no fim dos tempos, da necessidade de fornecermos uma resposta às demandas sociais mais urgentes que nos assolam contemporaneamente, só poderá originar-se em um pensamento que toma como pressupostos esta categorização paulina a respeito do tempo e da existência sob a vocação messiânica. Em síntese, um pensamento pungente para as questões hodiernas só poderá vir da vivência exaustiva da vocação das igrejas de Cristo. É da Igreja, e tão somente dela, que poderá vir as respostas honestas às questões honestas de nossa contemporaneidade. Como coloca mais uma vez Agamben:

O que há dessa experiência do tempo do Messias na Igreja de hoje? De fato, a referência às coisas últimas parece ter desaparecido do discurso da Igreja a tal ponto que se pôde dizer, não sem ironia, que a Igreja de Roma fechou o Escritório Escatológico. E é com ironia, sem dúvida ainda mais amarga, que um teólogo francês pôde escrever: “Esperava-se o Reino, e chegou a Igreja”. É uma imagem poderosa, sobre a qual devemos refletir. Considerando o que foi dito acima sobre a estrutura do tempo messiânico, é claro que não se trata de criticar a Igreja pelo seu compromisso em nome do radicalismo. Nem se trata, como fez o maior teólogo ortodoxo do século XIX, Fëdor Dostoevskyi, de apresentar a Igreja de Roma sob a figura do Grande Inquisidor. Trata-se de uma outra coisa, ou seja, da capacidade da Igreja de compreender o que Mateus 16,3 chama de sinais dos tempos, “ta semeia ton kairon”. Quais são esses sinais que o Evangelho opõe ao desejo vão de interpretar o aspecto do céu? Se a história é penúltima em referência ao Reino, este – viu-se acima – tem o seu lugar antes de tudo e acima tudo na história. Viver no tempo do Messias exige, portanto, a capacidade de ler os sinais da sua presença na história, de reconhecer no seu percurso o selo da economia da salvação. Aos olhos dos Padres – mas também para os filósofos que refletiram sobre a filosofia da história, que foi e continua sendo (também em Marx) uma disciplina essencialmente cristã –, a história se apresentava como um campo de tensões, percorrido por duas correntes opostas: a primeira – que Paulo, em uma célebre e enigmática passagem da Segunda Carta aos Tessalonicenses, chama de “to catechon” – que considera e diferencia sem parar o fim do mundo ao longo da linha do tempo cronológico, infinito e homogêneo; a outra que, colocando em tensão a origem e o fim, não cessa de interromper e levar o tempo a termo. Chamamos de lei ou de Estado a primeira polaridade, devotada à economia, ou seja, ao governo infinito do mundo; e chamamos de Messias ou de Igreja a segunda, cuja economia – a economia da salvação – é essencialmente finita. Uma comunidade humana não pode sobreviver se essas duas polaridades não estão copresentes, se não existe entre elas uma tensão e uma relação dialética. Ora, é exatamente essa tensão que hoje é despedaçada. Enquanto a percepção da economia da salvação no tempo histórico se ofusca na Igreja, vê-se a economia estender seu próprio domínio cego e derrisório sobre todos os aspectos da vida social (2013, s/p.).

Se algo fica claro em todas estas palavras, é que a filosofia continental contemporânea parece ter descoberto algo que o apóstolo Paulo passou o fim de seus dias pregando aqui na terra: a Igreja de Cristo materializa uma vocação histórica tão importante que extrapola até mesmo os seus domínios particulares e privados das igrejas locais. O pensamento de fora das igrejas compreendeu algo que é a base da existência da Igreja: existe uma vocação messiânica da Igreja de Cristo em polarizar e se contrapor a uma tensão constituinte do governo infinito da Lei, do Estado e da economia. Enquanto estas instituições e dinâmicas sociais buscam empreender um governo infinito do mundo, era a Igreja de Cristo que tinha o papel público de estar proclamando constantemente: o tempo que nos resta é pouco! Não se entreguem totalmente as demandas da Lei, do Estado e da economia, não vivam como se toda a existência de vocês estivesse alicerçada naquilo que promete uma infinitude que não pode oferecer. O tempo que nos resta é pouco! Precisamos viver “como se…” (1Co 7.30-31) não estivéssemos inseridos nestas dinâmicas sociais.

O que Agamben está nos sugerindo, contudo, é que essa vocação de ser uma comunidade de contracultura e de proclamação em tensão a todas as outras instituições sociais “hoje é despedaçada”. E mais do que isso, ele nos mostra acima que “enquanto a percepção da economia da salvação no tempo histórico se ofusca na Igreja, vê-se a economia estender seu próprio domínio cego e derrisório sobre todos os aspectos da vida social”. Ou seja, se estamos vivendo dias difíceis na política mundial – algo que os filósofos contemporâneos chamam de era pós-política, biopolítica ou simplesmente de eclipse político – uma das causas é o ausentar da Igreja de sua tarefa pública. Por se ausentar de proclamar todas as implicações da experiência do tempo messiânico, tal como Paulo expõe aqui na epístola aos Coríntios, a Igreja colabora para os dias difíceis que estamos enfrentando. A contemporaneidade é marcada, portanto, “não apenas a crise do direito e dos Estados, mas também e, sobretudo, a da Igreja”.

Conclusão
Diante de tudo isto, torna-se muito mais claro o fenômeno de multiplicação vertiginosa dos discursos filosóficos, sociológicos e ideológicos “que parecem competir para profetizar em todos os campos das catástrofes irreversíveis” – tal como faz em seu livro Vivendo no fim dos tempos, por exemplo. Todos estes autores estão apenas tentando ocupar, de forma equivocada e secularizada, um lugar que é por excelência da Igreja. Estão tentando recuperar este clamor escatológico que parece não estar mais presente em lugar nenhum:

O estado de crise e de emergência permanente que os governos do mundo proclamam hoje é justamente a paródia secularizada da perpétua atualização do juízo último na história da Igreja. Ao eclipse da experiência messiânica do cumprimento da lei e do tempo, corresponde uma hipertrofia inaudita do direito, que pretende legislar sobre tudo, mas que trai com um excesso de legalidade a perda de toda legitimidade verdadeira. Afirmo, aqui e agora, medindo as palavras: hoje, sobre a terra, não há mais nenhum poder legítimo, e os próprios poderosos do mundo são todos reis de ilegitimidade. A jurisdização e a economização integral das relações humanas, a confusão entre aquilo em que podemos crer, esperar, amar, e aquilo que somos levados a fazer ou a não fazer, a dizer ou a não dizer, marca não apenas a crise do direito e dos Estados, mas também e sobretudo a da Igreja, pois a Igreja não pode viver senão se mantendo – enquanto instituição – em relação imediata com o fim da Igreja. E – não devemos esquecer –, na teologia cristã, há uma única instituição que não conhecerá seu fim e sua dissolução: é o inferno. Aqui se vê bem – me parece – que o modelo da política de hoje – que aspira a uma economia infinita do mundo – é propriamente infernal. E, se a Igreja despedaça a sua relação original com a “paroikia”, ela só pode se perder no tempo. Eis porque a pergunta que eu coloco, certamente sem ter nenhuma autoridade para fazê-la senão a de um hábito obstinado de ler os sinais dos tempos, se resume nesta: a Igreja se decidirá a aproveitar a sua ocasião histórica e a retomar a sua vocação messiânica? Pois o risco é que ela mesma seja arrastada para a ruína que ameaça todos os governos e todas as instituições da terra (2013, s/p.).

A crise jurídica que experimentamos que “corresponde uma hipertrofia inaudita do direito, que pretende legislar sobre tudo”, nada mais é do que um resultado do eclipse da experiência messiânica do cumprimento da lei e do tempo. Era a igreja, enquanto comunidade dentro da comunidade social, que tinha o papel na história de denunciar este excesso jurídico-político sobre todos os aspectos da vida – a chamada biopolítica – comportando-se de uma forma diferente. Como o próprio apóstolo Paulo escreve a respeito deste assunto: “digo isso para envergonhá-los. Acaso não há entre vocês alguém suficientemente sábio para julgar uma causa entre irmãos? Mas, ao invés disso, um irmão vai ao tribunal contra outro irmão, e isso diante de descrentes! O fato de haver litígios entre vocês já significa uma completa derrota. Por que não preferem sofrer a injustiça? Por que não preferem sofrer o prejuízo? Em vez disso vocês mesmos causam injustiças e prejuízos, e isso contra irmãos!” (1Co 6.5-8). O simples fato da Igreja de Cristo buscar as estruturas jurídicas existentes para resolver seus problemas é uma vergonha e sinal de completa derrota do propósito ao qual foram chamados. Isto porque a Igreja é, por definição, aquela que confronta e tenciona esta forma de vida no mundo, regida pela Lei, pelo Estado e pela economia. A Igreja é a comunidade que polariza estas dinâmicas sociais lembrando a cada um de seus cidadãos: o tempo que nos resta é pouco! Vivam como se não estivem entregues a lei, ao Estado e a economia. Viva como se não comprasse, como se não usasse as coisas do mundo. Vivam a vida do Messias no tempo messiânico que já nos é presente, mesmo que ainda não em plenitude.

Frente a tudo isto que concluímos este ponto subscrevendo o apelo do comentarista David Prior quando nos diz: “talvez seja mais do que tempo de os cristãos se lançarem indagações que exijam respostas ainda mais radicais, com base nos ensinamentos de Paulo apresentados neste capítulo [1Co 7]” (PRIOR, 2011, p. 142). A Igreja precisa recuperar sua vocação messiânica urgentemente. Falando da igreja Católica Romana, mas podendo expandir esta crítica a toda cristandade hodierna, Agamben diz que estamos vivendo como se tivéssemos fechado nosso Escritório Escatológico. Isto porque desapareceu do discurso da Igreja a referência às coisas últimas e, por conseguinte, a necessidade de se viver as coisas penúltimas. Acreditamos que isto se deu pela igreja ter se tornado uma instituição forte, socialmente quase inabalável e culturalmente absorvida. Contudo, o chamado bíblico para a Igreja nunca foi este. Esta estabilidade que dá a falsa sensação de infinitude e ausência de um tempo do fim nunca foi algo que a Igreja deveria ter adquirido. Em uma crítica com humor teológico muito refinado, Agamben nos diz que: “não devemos esquecer na teologia cristã, há uma única instituição que não conhecerá seu fim e sua dissolução: é o inferno” (2013, s/p.). É por isso que ele conclui que “o modelo da política de hoje – que aspira a uma economia infinita do mundo – é propriamente infernal” (2013, s/p.). Bem, à luz deste raciocínio, toda igreja local que se esquiva de sua responsabilidade de anuncio escatológico está subscrevendo uma postura infernal de almejar uma existência infinita e bem estabilizada.

A pergunta que nos resta é a mesma com que Agamben termina sua conferência na Catedral de Notre-Dame: “a Igreja se decidirá a aproveitar a sua ocasião histórica e a retomar a sua vocação messiânica? Pois o risco é que ela mesma seja arrastada para a ruína que ameaça todos os governos e todas as instituições da terra” (2013, s/p.). Precisamos rejeitar, como tentação infernal, toda e qualquer oportunidade de nos esquivarmos de uma pregação escatológica sobre a plenitude do tempo messiânico. Não podemos nos deleitar em qualquer estabilidade econômica, política e cultural que nossas igrejas locais adquiriram. Precisamos sempre apontar para além de nós e além desta falsa sensação de estabilidade. Precisamos anunciar a lição do apóstolo Paulo no texto bíblico de 1Co 7.25-40: o tempo que resta antes do fim requer uma forma de vida diferente, seja em relação a nossa condição sentimental pessoal, seja econômica, profissional etc. Caso não seja esta nossa postura, corremos o risco de desaparecer, enquanto igrejas locais, para a mesma ruína que ameaça todos os governos e instituições da face da terra que não calcaram em Cristo sua estabilidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Cristianismo como religião: vocação messiânica. Trad. Moisés Sbardelotto. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br. Acessado em: 09 de setembro de 2013.
_________. El tiempo que resta: comentario a la carta a los Romanos. Trad. Antonio Piñero. Madrid: Editorial Trotta, 2006.
BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. Trad. Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2009.
BÍBLIA. Bíblia sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2000.
PRIOR, 1Coríntios: a vida na igreja local. Trad. Yolanda M. Krievin. 2.ed. São Paulo: ABU Editora, 2001.
RIDDERBOS, Herman. A teologia do apóstolo Paulo: a obra definitiva sobre o pensamento do apóstolo dos gentios. Trad. Suzana Klassen. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004.
, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012.

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1Quem parece sintetizar bem esta tendência contemporânea é o filósofo Alain Badiou quando diz: “Paulo não é, para mim, um apóstolo ou um santo. Eu não tenho a menor necessidade da Nova que ele declara ou do culto que lhe foi consagrado. Mas ele é uma figura subjetiva de importância fundamental”, isto porque, “para mim Paulo é um pensador-poeta do acontecimento e, ao mesmo tempo, aquele que pratica e enuncia atos constantes característicos do que se pode denominar a figura militante” (BADIOU, 2009, p. 7-8).
2Todas as vezes que o conceito “vocação messiânica” aparece no presente texto, ele se refere à nova condição existência e transformação particular das circunstâncias pessoais de todo aquele que foi chamado pelo Messias para viver em novidade de vida. Giorgio Agamben desenvolve exaustivamente este conceito em seu livro El tiempo que resta: comentario a la carta a los Romanos (2006). A partir do termo grego kletós (literalmente: “chamar”, “vocacionar”), o autor sustenta que: “a ekklesía, a comunidade messiânica, é para Paulo literalmente o conjunto das kleseis, das vocações messiânicas” (2006, p. 32).
3Por tudo isso, podemos parafrasear as palavras do apóstolo Paulo da seguinte forma: “de agora em diante todos aqueles que são discípulos do Messias relativizem a importância de sua condição pessoal e do seu chamado particular no mundo. Aqueles que estão casados, envolvidos em negócios, utilizando as coisas desse mundo, vivam como se não estivessem ligados a estas coisas, pois todas estas dinâmicas, processos e condições existências fazem parte de uma forma de vida que está passando e chegando ao seu fim”.

4 COMENTÁRIOS

  1. Interessante irmão Pedro, obrigado pelas informaçäes e reflexäes sobre a verdadeira experiencia cristã do tempo. Por favor, quais alternativas pr ticas o irmão sugere … igreja?

  2. Caro Lucas Louback, obrigado pelo coment rio! A ideia era precisamente esta, trazer uma contribuição para pensarmos uma teologia bíblica do tempo – que não subscreve a tese de que a história acabou com Cristo (como defendia Bultmann) e que a escatologia foi criada para responder a demora da segunda vinda do Messias, mas antes j  consegue enxergar nos primeiros documentos cristãos uma concepção de temporalidade em tensão (o distinto “j /ainda não” de Oscar Cullmann).

  3. Caro Fábio de Oliveira, obrigado pelo coment rio! Quanto a sua questão, podemos dizer que Paulo quando Paulo cita v rios exemplos em seus respectivos condicionais “aqueles que… vivam como se…” (v. 30-31), ele tem uma única lição a nos dar: uma forma vida no tempo que resta ‚ aquela que antecipa um novo mundo que est  a caminho. Isto pode ser sinalizado de v rias formas: desde o desenvolvimento de um uso dos bens que não seja entendido a partir da posse, mas da distribuição “segundo a necessidade” (At 2.45) (o que se tornar  contemporaneamente o paradigma de todo terceiro setor), at‚ mesmo a desarticulação do aparato jurídico por parte dos discípulos de Cristo que não mais se valem do direito para resolver suas questäes (1Co 6.1ss) (que ser  também uma das chaves de inteligibilidade de formas alternativas de resolução de conflitos sociais). Neste sentido, a igreja, através de posturas bem pontuais, pode mostrar, como que em uma avant-premiŠre, quais serão as dinâmicas do Reino .

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