Participação política dos evangélicos no Brasil: da laicidade à liberdade religiosa

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1 Introdução

A discussão sobre a influência do poder religioso sobre a comunidade política faz parte da história e está incrustrada em um passado tão remoto, que compõe a experiência de vida da humanidade. No Brasil, esse é um tema emergente, que ganha mais relevância a cada nova eleição, suscitando debates acalorados no Direito, na Ciência Política e até mesmo na própria Ciência da Religião, devido especialmente ao crescimento da religião evangélica nas últimas décadas e a sua crescente presença em vários setores da sociedade, inclusive no debate político.

A cada novo pleito eleitoral, seja nas eleições majoritárias ou proporcionais, os fiéis das igrejas evangélicas passaram a ser peças-chave das disputas eleitorais, em virtude do declínio contínuo do número de católicos e da correlacionada difusão das igrejas evangélicas, nomeadamente as pentecostais e neopentecostais, a exemplo da eleição do bispo Marcelo Crivella (PRB), eleito, em 2016, prefeito do Rio de Janeiro.

A participação evangélica no campo político é hoje um fenômeno impregnado na realidade brasileira, em sintonia com o que ocorre em grande parte da América Latina. Tal participação vem acompanhada também de críticas e denúncias, que questionam, do ponto de vista jurídico, a legitimidade de esses grupos influírem no processo eleitoral, sob o argumento da laicidade do Estado e a natureza privatizada a religião.

Desse modo, à vista desse contexto, o presente artigo pretende iniciar a discussão sobre a legitimidade da participação política dos evangélicos no Brasil, tendo como referencial teórico Jónatas Machado e Michael Sandel. Enfatiza, ainda, o conceito de cidadania política, destacando o direito fundamental à liberdade religiosa e o modelo de laicidade adotado no país.

2 A não neutralidade axiológica da teoria liberal: análise de Jónatas Machado e Michael Sandel

O presente percurso crítico-avaliativo inicia com a lembrança que as pessoas, religiosas ou não, agem impulsionadas por algum tipo de pressuposto ideológico ou ético. A suposta neutralidade axiológica é uma ficção que não encontra respaldo na realidade, uma vez que o ser humano passa a assumir em algum momento da vida certos princípios, (des)crenças e valores que direcionam suas ações e decisões morais e políticas. Esse conjunto de premissas assumidas pelo indivíduo recebeu na literatura alemã o nome de weltanschauung, que significa “modo de olhar o mundo” (welt – mundo, schauen – olhar), cosmovisão ou simplesmente visão de mundo. Como afirmou Thomas Sowell, não há como “prescindir completamente de visões e lidar somente com a realidade” (SOWELL, 2012, p. 17), afinal a “realidade é muito complexa para ser compreendida por qualquer mente” (SOWELL, 2012, p. 17).

Por isso, “visões são como mapas que nos guiam através de um emaranhado de complexidades desconcertantes” (SOWELL, 2012, p. 17).  Elas modelam silenciosamente os nossos pensamentos e enquanto “ato cognitivo pré-analítico” é anterior a qualquer teoria, formando por isso sua base estruturante. Mais do que simples impulsos emocionais, as visões podem ser morais, políticas, econômicas religiosas ou sociais.1

Como recorda Jónatas Machado, nem mesmo as concepções seculares de neutralidade – que buscam uma fundamentação da neutralidade religiosa e mundividencial do Estado e tentam afastar a influência da religião da esfera política – são isentas de algum tipo de valor subjacente.

Uma das principais teorias liberais, a teoria da justiça, proposta por John Rawls, não consegue se colocar em situação de completa neutralidade axiológica. Rawls propôs uma teoria que buscou estabelecer o tratamento equânime entre as pessoas, por meio de uma “concepção da justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social”  (RAWS, 1997, p. 12), devendo “os homens decidir de antemão como devem regular suas reinvindicações mútuas e qual deve ser a carta constitucional de fundação de sua sociedade” (RAWS, 1997, p. 12).

O estabelecimento desses princípios, segundo Rawls, ocorreria através do retorno a uma situação hipotética de completa igualdade entre as pessoas, ao estado de natureza que corresponde à teoria tradicional do contrato social. Para chegar a esse estado mental, Rawls sugere a imagem de um “véu de ignorância”, isto é, uma situação imaginativa na qual os indivíduos não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular; não conhecem as circunstâncias de sua própria sociedade, a posição política ou econômica, situação na qual são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas considerações gerais, sem se deixar influenciar por fatores que prejudiquem o julgamento equânime.

Ao interpretar essa teoria,  Jónatas Machado sugere que o direito à liberdade religiosa e ideológica, considerando o princípio da neutralidade religiosa ou ideológica, seria a escolha mais razoável de pessoas iguais e razoáveis colocadas numa posição original em que ignorassem, se no mundo real, seria religiosos ou não, qual a religião a que pertenceriam ou se pertenceriam a uma religião maioritária ou minoritária, deduzindo assim uma estrita obrigação de não interferência na vida interna das confissões religiosas a par de uma proibição de discriminação entre confissões religiosas, nos limites do liberalismo político.

Para tanto, sustenta-se a edificação de uma razão pública alicerçada em princípios liberais e secularizados e racionalizados de justificação pública da atuação dos poderes político, legislativo, administrativo e judicial do Estado; de modo que a religião sempre seria aferida e filtrada pela razão pública, por meio de uma deliberação racional. Sendo assim, “a neutralidade religiosa e mundividencial da justificação da ação do Estado surge aqui como opção de distanciamento” (MACHADO, 2013, p. 128), que promove, por via de consequência, a deslegitimação da religião “no seio de uma sociedade bem ordenada, precludindo a identificação do Estado com qualquer confissão religiosa e a imposição autoritária de uma visão de mundo e do bem a toda comunidade” (MACHADO, 2013, p. 126).

Acrescenta, ainda, que essa teoria da justiça rejeita que uma cosmovisão de natureza religiosa, como qualquer outra, possa “ser relevante na discussão dos dados da história, da arqueologia, da filosofia e da ciência e muito menos que, aqui e agora, em conjunto com outras forças, ela possa conformar positivamente a política e o direito” (MACHADO, 2013, p. 127). 

Machado assegura, então, que o liberalismo constrói privilégios epistêmicos a favor das visões secularizadas do mundo, expulsando os valores e argumentos religiosos do espaço público e do processo democrático de formação da opinião pública e da vontade política, principalmente porque os valores defendidos pela religião são facilmente identificáveis pela sua expressão doutrinal, ritual e institucional, ao contrário de outras visões de mundo. Essa perspectiva, assinala Machado, “ignora que muitas das questões que a política e o direito enfrentam são essencialmente questões morais, cuja resolução remete para pressuposições e decisões de valor indissociáveis do debate em torno das várias visões de mundo” (MACHADO, 2013, p. 129). E acrescenta:

A ideia de que os argumentos religiosos não são racionalmente inteligíveis ou que se apresentem hostis ao compromisso é baseada numa visão limitada e até caricatural da religião, que ignora a estrutura racional e fundamentada de muitos dos argumentos religiosos, em nada distinta de outros argumentos baseados em visões de mundo e pressuposições não estritamente religiosos. (MACHADO, 2013, p. 129)

Insta destacar ainda que, o discurso religioso insere elementos de sacralidade e transcendência na esfera pública, especialmente em torno da vida, do homem, da justiça, da verdade e do bem, sem os quais “a política facilmente colapsa sob as mais variadas motivações egoístas e resvala para a simples luta entre os grupos de interesse” (MACHADO, 2013, p. 130). Desse modo, a exclusão do discurso religioso do debate político e interesse público, além de ser arbitrário, é impraticável, uma vez que o afastamento “entre o processo político e o debate moral e mundividencial é simplesmente impossível, como o é a adopção de uma posição de absoluta neutralidade axiológica e ética por parte da política e do direito” (MACHADO, 2013, p. 130).

Machado ainda expõe a autocontradição presente na teoria da justiça, pois pretendendo ser, desde o início, secularizada, racional e neutra, com o símbolo imagético do “véu da ignorância”, tal teoria não consegue estabelecer por si mesma uma fundamentação secularista, isenta, empírica e logicamente plausível, “para a existência da razão, da autonomia moral, da igual dignidade e da justiça” (MACHADO, 2013, p. 130), devendo buscar em outras cosmovisões, precisamente na cosmovisão teísta judaico-cristã, a base do seu ideal ético.2

Tal ocorre, porque, o próprio ideal liberal, assumido e buscado a priori, que parte em busca de um método para assegurar a equidade entre as pessoas, é em si “um valor, uma posição ética e uma perspectiva normativa sobre as condutas que é legítimo e ilegítimo o Estado adoptar” (MACHADO, 2013, p. 131). Significa dizer que a teoria da justiça busca a neutralidade a partir de pressupostos não plenamente neutros.

Não deixa de ser curioso que a fundamentação da neutralidade na teoria da justiça assenta na pressuposição de que os princípios de justiça têm que ser procurados num plano transcendental, anterior e superior à concreta experiência humana. Quase como se princípios eternos e sobrenaturais se tratasse. Nesse aspecto, mesmo sem querer, ela tem que pressupor a primazia da transcendência de determinados valores e princípios, destilando-os a partir do ambiente fortemente judaico-cristão em que foi formulada. Quer dizer, nem mesmo a teoria da justiça, pretensamente neutra, escapa à necessidade de escolher entre diferentes visões de mundo e valores morais. No entanto, ela tende a desconsiderar o modo como as convicções religiosas tendem a encarnar na cultura, na identidade e na vida política e jurídica dos Estados, dos povos, das comunidades religiosas e dos indivíduos. Esta contradição interna tem levado alguns a acusarem esta perspectiva de hipocrisia. (MACHADO, 2013, p. 131)

Sob outro enfoque, o filósofo norte-americano Michael J. Sandel também tece críticas à perspectiva secularizada de John Rawls. Segundo Sandel, muitas pessoas consideram estranha a ideia de que a política deve cultivar virtudes. Afinal, quem pode definir virtude? E se as pessoas não chegarem a um consenso? Assim:

Se a lei procura promover determinados ideais morais e religiosos, isso não estará abrindo caminho para a intolerância e para a coerção? Quando pensamos em Estados que tentam promover a virtude, não pensamos primeiramente na pólis de Atenas; pensamos no fundamentalismo religioso, passado e presente – em apedrejamento por adultério, no uso obrigatório de burcas, nos julgamentos das feiticeiras de Salém e assim por diante. (SANDEL, 2011, p. 267)

Assim como Kant, para Rawls as teorias de justiça que se baseiam em uma determinada concepção da vida boa, sejam elas religiosas ou seculares, entram em conflito com a liberdade. Conforme Sandel (2011, p. 270), “a noção de que a justiça deve manter-se neutra em relação às concepções da vida boa reflete um conceito das pessoas como seres dotados de livre escolha e sem amarras morais preexistentes”. Ocorre que “nem sempre é possível definir nossos direitos e deveres sem se aprofundar em alguns questionamentos morais; e mesmo quando isso é possível, pode não ser desejável” (SANDEL, 2011, p. 272).

O ponto fraco da concepção liberal de liberdade tem a ver exatamente com o que a torna atraente. Se nos considerarmos seres livres e independentes, sem as amarras morais de valores que não escolhemos, não terão sentido para nós as muitas obrigações morais e políticas que normalmente aceitamos e até mesmo valorizamos. Incluem-se aí as obrigações de solidariedade e lealdade, de memória histórica e crença religiosa – reinvindicações morais oriundas das comunidades e tradições que constroem nossa identidade. A não ser que nos vejamos como pessoas com um legado, sujeitas a ditames morais que não escolhemos, por nós, será difícil entender esses aspectos de nossa experiência moral e política. (SANDEL, 2011, p. 273).

Embora reconhecesse que as pessoas, em sua vida privada, tivessem afetos, devoções e lealdades dos quais elas acreditam que não poderiam, ou na verdade não deveriam afastar-se, movidas por convicções religiosas, filosóficas e morais, Rawls insiste que tal lealdade deveria ser a base de nossa identidade como cidadãos. Deveríamos, segundo Rawls, deixar de lado nossas convicções morais e religiosas e discutir com base em uma “concepção política do indivíduo” (SANDEL, 2011, p. 309), a fim de respeitar o “pluralismo sensato” sobre a vida boa que prevalece no mundo moderno.

Segundo esse argumento, a neutralidade flui da tolerância – no que se refere às diferentes concepções morais e religiosas, de maneira que, para manter a imparcialidade entre doutrinas morais e religiosas divergentes, o liberalismo político “não aborda os tópicos morais que são pontos de divergência nessas doutrinas” (SANDEL, 2011, p. 309). Não somente o Estado não pode abraçar uma concepção individual do bem; os cidadãos, igualmente, não devem injetar na esfera pública suas convicções morais e religiosas no debate público, por que, se o fizerem, e seus argumentos prevalecerem, “eles estarão na verdade impondo a seus compatriotas uma lei fundamentada em uma determinada doutrina moral ou religiosa” (SANDEL, 2011, p. 309, 310); o que, segundo Rawls, não pode ser aceito.

Para Sandel, embora seja aparentemente uma medida de tolerância “pedir aos cidadãos democráticos que abandonem suas convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública” (SANDEL, 2011, p. 297), evidencia, contrariamente, uma falsa neutralidade na discussão de questões públicas, cuja ausência de comprometimento moral substancial “resulta em uma vida cívica pobre”, agindo como “um convite aberto a moralismo limitados e intolerantes” (SANDEL, 2011, p. 297). Sandel (2011, p. 309) aduz então que “se nossas discussões sobre justiça invariavelmente nos enredam em questões morais substanciais, resta-nos perguntar como esses debates podem continuar.

Com base nessas premissas, Sandel sugere (2011, p. 323) que uma sociedade justa “requer um raciocínio conjunto sobre a vida boa”, cujo “desafio é imaginar uma política que leve a sério as questões morais e espirituais, mas que as aplique a interesses econômicos e cívicos e não apenas, a sexo e aborto” (2011, p. 323). Entre suas proposições, Sandel sugere uma política com comprometimento moral.

Em vez de evitar as convicções morais e religiosas que nossos concidadãos levam para a vida pública, deveríamos nos dedicar a elas mais diretamente – às vezes desafiando-as e contestando-as, às vezes ouvindo-as e aprendendo com elas. Não há garantias de que a deliberação pública sobre questões morais complexas possam levar, em qualquer situação, a um acordo – ou mesmo à apreciação das concepções morais e religiosas dos demais indivíduos. É sempre possível que aprender mais sobre uma doutrina moral ou religiosa nos leve a gostar menos dela. Mas não saberemos enquanto não tentarmos.
Uma política de engajamento moral não é apenas um ideal inspirador do que uma política de esquiva do debate. Ela é também uma base mais promissora para uma sociedade justa. (SANDEL, 2011, p. 330).

Para Sandel, portanto, a política precisa estar aberta às convicções morais dos cidadãos, não importando as suas origens. Alguns cidadãos extraem convicções morais de sua fé, enquanto outros são inspirados por fontes não religiosas. O que importa para ele é que o debate seja conduzido com respeito mútuo.

3 A legitimidade da participação evangélica no processo eleitoral brasileiro

As exposições de Jónatas Machado e Michael Sandel apontam para a legítima participação das igrejas evangélicas e seus respectivos atores no processo político-eleitoral brasileiro, como forma de influência na formatação política do Estado. O discurso religioso, ainda que conservador, não é menos válido dentro do ambiente das discussões de natureza cívica, estando, ontologicamente, em condições de igualdade com o suposto discurso secularista, científico e não religioso. O descarte apriorístico da opinião religiosa no mercado das ideias e na praça pública, longe de ser uma postura de tolerância e respeito às diversidades, revela-se preconceituosa e excludente, como método de privilégio epistêmico e distanciamento social de um determinado grupo: os religiosos.

Relevante destacar que a religião tem marcado presença na política e na vida do Estado desde os primórdios da civilização humana, com maior ou menor intensidade. Até mesmo no período da religião da sociedade civil, no surgimento do Estado moderno, a religião é uma realidade da sociedade civil publicamente relevante, embora distinta do Estado. A partir de John Locke, “a laicização do Estado significa a democratização política e religiosa por meio de uma participação igualitária de todos os indivíduos na formação da vontade política e da doutrina religiosa” (MACHADO, 2013, p. 22), em que a religião pode ocupar, de forma legítima, o seu espaço público, não de forma impositiva das autoridades políticas e religiosas, mas por meio da autonomia individual e o autogoverno democrático das comunidades.

A tolerância, dentro dessa perspectiva, fornece um panorama adequado para equacionar as tensões sociais que emanam em um ambiente culturalmente conflituoso, em que as ideias se chocam e se repelem. A tolerância propugnada por Locke, que serviu de princípio basilar de separação entre Igreja e Estado, é um postulado de respeito mútuo e ativo3 entre o religioso e o secular, entre o sagrado e o profano, e não uma justificativa para o afastamento dos religiosos aos limites da privacidade.

De acordo com Carson (2013, p. 32) “as melhores formas de tolerância, em uma sociedade livre e aberta, são as receptivas e tolerantes com as pessoas, mesmo quando há grande desacordo acerca das ideias delas”. Entretanto, hoje, a tolerância, em muitas sociedades ocidentais, foca cada vez mais as ideias, não as pessoas. O resultado de adotar essa nova tendência de tolerância.

[…] é haver menos discussão dos méritos das ideias conflitantes – e menos civilidade. Discute-se menos porque a tolerância às ideias distintas exige que evitemos criticar a opinião dos outros; além disso, quase não se discute em que ponto as ideias em questão são do tipo religioso que alegam ser válidas para todos em todo lugar: esse tipo de noção está fora da “estrutura [moderna] de plausibilidade” (para usar o termo de Peter Berger) e tem de ser descartada. Há menos civilidade porque não há exigência inerente a essa nova prática de tolerância, ser tolerante com as pessoas, e é especialmente difícil ser tolerante com aquelas pessoas cuja percepção está tão distante das “estruturas de plausibilidade” aceitas que elas acham confusa (sic) esse tipo de tendência à tolerância. (CARSON, 2013, p. 32).

Desse modo, a crescente presença da religião evangélica no processo político-eleitoral brasileiro, além da naturalidade sociocultural em virtude da expansão desse segmento no Brasil, é um ingrediente indispensável para o debate e amadurecimento das ideias que emergem durante a campanha política, período esse idealizado com o objetivo dos candidatos exporem à sociedade – via propaganda eleitoral – tanto seus projetos de governo quanto os princípios de natureza ética que embasam suas visões de mundo.

Projetos de governo e propostas de políticas públicas não advêm de um vácuo axiológico, mas partem de premissas éticas subjacentes que fornecem as diretrizes de agir do candidato e do seu partido político, o que torna natural o questionamento, a busca de informações e, até mesmo, o enfretamento por parte dos eleitores em relação às ideias dos candidatos.

A propósito, Ortiz assinala que “o debate sobre democracia num mundo globalizado, independentemente de sua orientação (direitos humanos, ecologia, violência, FMI etc.), implica a constatação de que a soberania nacional é insuficiente para equacionar os temas da ação política” (ORTIZ, 2001, p. 65). Em razão disso, a separação total entre religião e Estado – ensejada pelo secularismo – precisa ser revista. A ideia de que a religião deve ficar adstrita eminentemente à esfera privada há de ser repensada, pois alguns dos valores e princípios propugnados pelas religiões são basilares para o fortalecimento do Estado e a criação de uma sociedade mais justa e solidária, inserindo-se no domínio público e na ação política. (ORTIZ, 2001, p. 65).

Dentro desse ambiente complexo e democrático os evangélicos também dialogam, cobram posturas e insurgem contra projetos que, segundo seus valores espirituais, contrariam tópicos morais essenciais da vida humana. Cabe lembrar que o processo político-eleitoral é possivelmente o período mais decisivo de um Estado, seja nos níveis municipal, estadual ou federal, pois é exatamente esse período que vai definir os governantes dessas esferas. Esperar ou exigir, portanto, que os religiosos se afastem dos embates inerentes a essa época equivale a restringir o princípio democrático, obstando a participação de um determinando seguimento da sociedade.

Desse modo, as “narrativas pastorais fundamentalistas” e “discursos religiosos carregados de conotação bíblica”, alinhamento da igreja com determinados candidatos, nada mais são que expressões legítimas de uma visão de mundo religiosa, com total equivalência de oportunidade argumentativa no processo de escolha de candidatos.

O processo político-eleitoral é também o momento decisivo de efetivação de cidadania, mais especificamente a cidadania política, pelo qual o cidadão tem o direito de influir nos rumos políticos do seu Estado, podendo votar e também ser votado. Sinner, destaca que o “conceito de cidadania deve ser mais amplo do que somente indicar os direitos – e deveres – previstos pela lei (nacional)” (SINNER, 2007, p. 53), mas deve envolver a real possibilidade de acesso a esses direitos e “a consciência dos deveres da pessoa, bem como a atitude frente ao estado constitucional como tal, e também a constante formação e extensão da participação dos cidadãos na cidade social e política de seu país” (SINNER, 2007, p. 53).

A cidadania política não se reduz à instrumentalização do voto na urna; mais que isso, abrange o direito de mobilização, participação associativa, direito à informação, entre outros elementos. Nesse sentido, Manuel Villaverde Cabral enfatiza:

(…) numa teoria democrática que valorize a dinâmica interativa e ressocializadora da participação, a propensão dos indivíduos para se associarem voluntariamente com vistas à promoção de valores e interesses comuns constitui não só o indicador mais aproximado para quantificar esse processo de participação explicitamente socializada e publicitada, como também uma medida do exercício efetivo dos direitos de cidadania política. (CABRAL, 2003, p. 35).

Nesse mesmo sentido, o cientista da religião, Oneide Bobsin, em entrevista concedida ao IHU-Online assinalou que “a participação dos evangélicos na vida política desprivatiza as igrejas. A religião passa a ocupar um espaço público. Isso faz avançar a democracia nos marcos de uma república, politizando a religião” (BOBSIN, 2012).  Por isso, Bobsin também enxerga a aproximação entre candidatos e igrejas como um processo normal na busca de apoio do eleitor. “Quem mais se compromete nesse processo e corre mais risco é a liderança pastoral quando fecha com algum candidato” (BOBSIN, 2012). Com efeito, do ponto de vista social e político, o pesquisador vislumbra na aproximação entre candidatos e igrejas o fortalecimento do processo democrático, promovendo, como afirma, a “politização da religião” e a “desprivatização das igrejas”. Tal ponderação contraria a ideia da religião com fenômeno íntimo e privatista, que deve se manter recluso ao mundo da individualidade e das subjetivas humanas. Afinal, “as igrejas têm uma tarefa crítico-construtiva frente ao Estado e podem, com seu acesso privilegiado a grande parte da população, fazer diferença importante na construção da cidadania” (BOBSIN, 2012) e no fortalecimento da democracia.

4 Princípio da laicidade e liberdade religiosa

De uma ótica eminentemente jurídica, a participação evangélica no processo político deve considerar dois vetores constitucionais: o princípio da laicidade e o direito fundamental à liberdade de religião.

O art. 19, inciso I, da CF/88, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Extrai-se desse dispositivo o modelo de relacionamento entre o Estado brasileiro e a religião, consistente no princípio da separação. Para ser mais exato, conforme preleciona Santos Junior, o princípio da separação, consagrado neste artigo, “refere-se mais especificamente à relação entre o Estado-pessoa Jurídica e as organizações religiosas e não à relação entre o Estado-ordenamento e o fenômeno religioso”. (SANTOS JUNIOR, 2013, p. 199, 200).

Assim, pode-se dizer, sem sombra de dúvida, que há um regime de separação entre o Estado brasileiro e as organizações religiosas, excepcionado apenas nos casos de colaboração em prol do interesse público, na forma da lei, como preconizado pelo dispositivo constitucional em foco. Todavia, é inexato dizer que a Constituição adota um regime de separação entre o Estado e o fenômeno religioso, na medida em que a mensagem ideológica extraída do seu texto é a de que se trata de um valor a ser preservado pelo Poder Público. (SANTOS JUNIOR, 2013, p. 200).

Nesse sentido, prossegue Santos Junior para afirmar que o modelo adotado no Brasil, a par dos dispositivos que regem a matéria religiosa na Constituição Federal, “não se limitam a apenar preservar a autonomia individual dos crentes ou a autodeterminação dos grupos religiosos”, pretender preservar, mais que isso, “a manifestação do fenômeno religioso em si mesmo”, como é possível comprovar na isenção dos templos de qualquer culto e a previsão da assistência religiosa (SANTOS JUNIOR, 2013, p. 200). Acrescente-se ainda a referência a Deus no preâmbulo, o ensino religioso nas escolas públicas e os efeitos civis do casamento religioso.

Diferentemente do laicismo, que busca o retraimento ou desaparecimento da religião enquanto tal, o modelo de laicidade adotado no Brasil não veda a participação dos religiosos na esfera pública, visto que a Constituição Federal do Brasil, além de explicitar a possibilidade de colaboração de interesse público com as entidades religiosas,  prevê a garantia da liberdade religiosa; um direito fundamental, uma liberdade pública ou, se se preferir, uma prerrogativa individual, em face do poder estatal.

Nesse sentido, Machado (2013, p. 16) defende que o princípio da laicidade ou da neutralidade do Estado “não pode ser usado por parte das autoridades públicas e dos tribunais como escapatória para o não envolvimento em questões religiosas, ideológicas ou morais”. Machado diz que o princípio da neutralidade religiosa e ideológica do Estado Constitucional é incompatível com a consideração da religião unicamente como um fenômeno irracional, privado, individual, íntimo, ultrapassado, estranho e extrassocial. Muito menos será compatível com qualquer estratégia deliberada de remoção da religião da esfera de discurso público. (MACHADO, 2013, p. 16).

O outro vetor constitucional que informa a legitimidade da participação da religião no processo político é a liberdade religiosa. Considerando que a religião é imanente à condição humana, presente em toda a história mundial, resguardar as várias formas de expressão dessa religiosidade é uma questão de essência existencial, como meio de salvaguarda da identidade e da dignidade humana. Embora não seja suficiente para representar toda a extensão desse direito tão inato ao ser humano, afirma-se que a liberdade religiosa é um direito fundamental de primeira grandeza. Retirar-lhe, pois, esse direito, equivale a retirar-lhe o coração.

No plano jurídico, a liberdade religiosa é um dos elementos estruturantes do moderno Estado constitucional, desenvolvido como reação ao autoritarismo teológico-político da cristandade medieval por um lado e contra o absolutismo monarca do Estado moderno por outro (MACHADO, 2009, p. 113).

Em nossos dias, especialmente no mundo ocidental, em um contexto de Estado Democrático de Direito, a liberdade religiosa é uma garantia jurídica básica. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em seu artigo 18 diz:

Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

A par do reconhecimento internacional do direito à liberdade religiosa, no plano nacional, a liberdade religiosa é um direito constitucional, insculpido na Carta Magna. Na Constituição Federal de 1988, que adotou uma vertente teísta (reconhecendo Deus em seu preâmbulo) e ao mesmo tempo não confessional/laica, a liberdade religiosa foi alçada à categoria de garantia fundamental. Os incisos VI e VII do artigo 5o. estabelecem:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Em geral, a literatura sugere que a garantia da liberdade religiosa se desenvolve ou se estrutura em três aspectos: liberdade de crença, culto e organização religiosa.

A liberdade de crença possui uma dimensão subjetiva referente à interioridade do indivíduo, ao direito de acreditar, não acreditar ou deixar de acreditar em alguma coisa. Diz respeito, portanto, a garantia de ser religioso e de aderir a qualquer religião de sua escolha, seja ela organizada ou não; assim como o direito de ser irreligioso, ateu ou agnóstico, ou seja, de não acreditar ou aderir a uma crença religiosa.

A liberdade de culto possui uma dimensão objetiva referindo-se ao direito de exteriorização da crença para realizar cultos, liturgias, cerimônias, cânticos e outros atos próprios da fé. A fim de resguardar esse direito, o artigo 208 prevê o crime contra o sentimento religioso, assim tipificado: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.

Por fim, a liberdade de organização religiosa diz respeito ao direito de autodeterminação dos grupos religiosos para poderem se organizar. Engloba o direito de criação, estruturação, autorregulamentação e funcionamento da entidade religiosa (SANTOS JUNIOR, 2013, p. 128), sem a intromissão do Poder Público, ressalvadas as previsões legais.
Assim, o direito à liberdade de religião abarca não apenas o direito subjetivo de crer ou não crer em alguma coisa, doutrina ou confissão, mas também de expressar essa doutrina no ambiente público. Segundo Jonas Moreno, a liberdade religiosa nasce da necessidade de publicização da fé, como “meio de transformação do homem, de sua realidade interior, que gera consequências exteriores, dentre as quais, a de tornar pública a sua fé para que outros tenham a oportunidade de verem as suas vidas transformadas” (SANTANA, U.; MORENO, J.; TAMBELINI, 2014, p.11).

Logo, no ambiente da disputa política, em que há um acirrado debate pela conquista do voto, respeitados os limites legais postos, de maneira prévia e objetiva, e os princípios que regem o Direito Eleitoral, os candidatos podem se valer de argumentos os mais variados para sagrarem-se vencedores, ainda que fundado em tema religioso.

5 Conclusão

À guisa de conclusão, é possível afirmar que a participação política evangélica no Brasil se apoia em fundamentos de natureza política e jurídica. Como foi possível perceber em nosso referencial teórico que  o jurista Jónatas Machado e o filósofo Michael Sandel apontam para a legítima participação das igrejas evangélicas e seus respectivos atores no processo político-eleitoral brasileiro como forma de influenciar a formatação política do Estado, na medida em que o discurso religioso, ainda que baseado em uma ética transcendental, não é menos válido dentro do ambiente das discussões de natureza cívica, estando, ontologicamente, em condições de igualdade com o suposto discurso secularista, científico e não religioso.

O descarte apriorístico da opinião religiosa no mercado das ideias e na praça pública, longe de ser uma postura de tolerância e respeito às diversidades, revela-se preconceituosa e excludente, como método de privilégio epistêmico e distanciamento social de um determinado grupo: os religiosos.

Além disso, do ponto de vista jurídico, a participação da comunidade de matiz evangélica leva em consideração a correta compreensão do princípio da laicidade dentro do modelo brasileiro, modelo este que busca preservar a manifestação do fenômeno religioso em si mesmo, admitindo, inclusive, a cooperação com o Poder Público; diferentemente do laicismo, que por seu turno visa ao afastamento do fenômeno religioso da praça pública. Igualmente, o direito à liberdade religiosa serve como um vetor importante para a fundamentação da participação política desse grupo religioso, pois, enquanto direito fundamental, garante não somente a crença subjetiva em seus dogmas, mas também a manifestação pública de suas convicções.

Referências bibliográficas

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