Ética cristã na pós-modernidade

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Vivendo a partir de um referencial absoluto em uma era de relativismo

O ser humano, ao lidar com as perguntas sobre a vida, questiona sobre o bem e o mal em termos de natureza, o certo e o errado, o sentido da vida humana, os fundamentos da obrigação e do dever e a consciência moral. Estas perguntas fazem parte do departamento da filosofia prática, a saber, a ética e seu estudo metafísico do conjunto de regras consideradas como universalmente válidas.1

A ética tem como fundamento a filosofia e o sistema de pensamento vigente. Hoje, os teóricos e pensadores salientam que os tempos atuais devem ser chamados de pós-modernidade (ou suas variantes, hiper-modernidade, modernidade líquida). Caracterizada pela subjetividade, a pós-modernidade advoga que “não existem absolutos”, portanto a verdade seria relativa e não absoluta.2

Este ensaio tem como objetivo responder a seguinte questão: se a pós-modernidade afirma o relativismo, como o cristão vive a partir de um referencial absoluto? Para responder essa questão, este ensaio aborda a guisa de introdução a mudança histórica da modernidade para a pós-modernidade como também uma introdução à ética cristã firmada em um referencial absoluto.

A transição da modernidade para a pós-modernidade

A modernidade foi marcada pela confiança excessiva na razão humana e na rejeição da transcendência, metafísica e sobrenaturalidade.3 Na cultura ocidental, antes da modernidade, a crença em Deus (ou deuses) moldava a sociedade, seja de forma plural como nos tempos gregos, seja por meio de uma centralização institucional como na Idade Média.

Com o advento do Iluminismo, a sociedade ocidental rejeita o legado da fé cristã e da Reforma Protestante do século XVI de que a natureza foi criada pelo Criador e é governada por leis absolutas e racionais. A razão autônoma de Deus passa a ser o critério para guiar a sociedade. Para o Iluminismo, o conhecimento é exato como também objetivo.4
 
À luz desta cosmovisão naturalista e racionalista gerando uma antropologia otimista, a sociedade ocidental testemunhou guerras e violência, o que gerou questionamento sobre esse “novo humano” que evoluiria gerando mais “ordem, progresso e amor”.5 

Para Veith, “o Iluminismo ascendeu a faísca do romantismo. O materialismo provocou a reação do existencialismo.”6  Para o pós-modernismo, o movimento iluminista erra por buscar a verdade objetiva com a razão, uma vez que esta verdade não pode ser achada, portanto cada um deve buscar a sua verdade pessoal, subjetiva ou comunitária.

O termo pós-modernidade foi usado pelo historiador sir Arnold Toynbee na década de 40, caracterizada por irracionalismo, desamparo e ansiedade, caracterizando o fim da sociedade ocidental.7  Para Veith, a pós-modernidade tem como fundamento epistemológico a desconstrução da verdade, o colapso da fé, a aparição de uma cultura global e uma nova polarização.8

Para Grenz, esse desconstrucionismo filosófico vem após o estruturalismo que salienta que a linguagem é uma construção social. O desconstrucionismo (pós-estruturalismo) afirma que o sentido vem do intérprete que dialoga com o texto. Para o filósofo Jacques Derrida, o conhecimento não resulta da transcendência, mas do “eu” que interpreta a realidade.
       
Já o filósofo Michael Foucault teve como ponto de partida de seu pensamento que todo conhecimento é resultado do uso do poder. Richard Rorty escreveu que se deve abandonar a busca pela verdade e se contentar com a interpretação.9 Essa mudança de paradigma gerou uma reação por parte de estudiosos modernistas na contemporaneidade como, por exemplo, o geógrafo europeu marxista David Harvey, associando a pós-modernidade ao neoliberalismo, escreveu:

“Dada à evaporação de todo sentido de continuidade e memória histórica, e a rejeição de metanarrativas, o único papel que resta ao historiador, por exemplo, é tornar-se, (…) um arqueólogo do passado, escavando seus vestígios (…) e colocando-os lado a lado, no museu do conhecimento moderno.”10 

Portanto, a transição da modernidade para a pós-modernidade resultou em uma nova ética e um novo pensar a respeito do dever.

Sobre a ética pós-moderna
       
Zyigmunt Bauman escreve sobre a ética na pós-modernidade refletindo a sociedade de consumo e a privatização e individualização da responsabilidade. Seguindo a mesma linha de David Harvey, conforme citado anteriormente, Bauman salienta sobre o neoliberalismo como práxis econômica da pós-modernidade.
       
Assim, escreve sobre o desafio da escolha moral voltado para “o outro” sendo “uma condição do ser-para”. 11 Esse pressuposto tem implicações na antropologia quando, por exemplo, escreve:

“Essa proposição não significa enfatizar uma parte do debate antigo e infrutífero sobre “bondade essencial” ou “maldade essencial” do ser humano. “Ser moral” não significa “ser bom”, e sim o exercício da liberdade de autoria (como autor) e/ou atuação (como autor) na forma de uma escolha entre o bem e o mal.”12
       
Se, para Bauman, não há um fundamento absoluto para a antropologia, a religião não faz sentido pela consideração ao arrependimento e a redenção, pois não há pecado. Portanto não há como aceitar um sistema universal e único de Ética. Conforme o autor escreve:

“De modo ideal, a ética é um código de leis que prescreve o comportamento “universalmente” correto, isto é, para todas as pessoas em todos os momentos. Trata-se daquele comportamento que separa o bem do mal para todos, de uma vez por todas.”13
      
Nessa perspectiva, a ética acaba necessitando de peritos, autoridades, legisladores e pregadores. Se a modernidade afirma que não há nada (sobre Deus e transcendência) e a humanidade está à beira do abismo, a pós-modernidade tenta salientar que não há como descobrir isso. Se não há fundamento absoluto, segundo Bauman, “ a dispersão das nuvens éticas que envolvem firmemente e obscurecem a realidade do self moral e a responsabilidade moral.”14

Por uma Ética cristã
       
Para um cristão e para o cristianismo, enquanto grupo coletivo de cristãos representados por instituições que professam a fé se crê na existência do Deus Trino e que esse Deus se revela nas Escrituras Sagradas, então há nitidez, clareza e conclusão lógica que esse fundamento absoluto tem implicações éticas.
       
O professor Hans Ulrich Reifler salienta sobre a distinção no estudo da ética, a saber, a geral e a específica. A geral, influenciada pelas Escrituras, acolhe o mandamento de não furtar, independente da ideologia, da época e do lugar.15
       
A ética secular ou filosófica é diferente, segundo Reifler, da ética cristã em sua metodologia. A secular é uma ciência de costumes e hábitos sendo descritiva, salienta o autor, enquanto a cristã é normativa, pois “procura a verdade e o bem através do supremo bem e da vontade de Deus revelada na Bíblia.”16
       
Então, este autor define ética cristã como “o estudo sistemático e prático da vida moral do homem determinado por seu valor e sua norma cristã, como revelado nas Sagradas Escrituras.”17
      
Portanto, para Reifler, a “ética cristã é o ensino sistemático da conduta e atitude em relação à vida para a qual Jesus Cristo nos chamou e fez nascer de novo. Por isso, ela se preocupa com a vontade de Deus revelada em nossa vida.”18  Sendo uma ética normativa que parte da revelação de Deus para definição de princípios e valores. Como salienta o autor: “Só podemos fazer ética cristã na medida em que conhecemos a Deus.”19
      
Em sua metodologia, a ética cristã é teológica, pois está relacionada com o conhecimento do Deus vivo e verdadeiro. Seu conhecimento é guiado pela sua revelação, a saber, as Escrituras Sagradas. A ética cristã é teocêntrica, pois parte da vontade de Deus e sua prioridade para a direção do comportamento humano. É cristã porque está condicionada a Cristo, conteúdo central da revelação e recebido pela fé. A ética cristã “é a vontade de Deus em Cristo Jesus, como se encontra revelada nas Sagradas Escrituras.”20
       
Para Reifler, a ética cristã é moldada pelo decálogo, conhecido popularmente como “os dez mandamentos”.
       
Para o conhecido teólogo e mártir cristão, Dietrich Bonhoeffer, a ética tem como alvo a reflexão da noção do bem e do mal. A ética cristã já reconhece essa reflexão na origem. “A noção do bem e do mal constitui, portanto, a separação de Deus. Do bem e do mal o ser humano só pode saber contra Deus.”21
       
Nessa perspectiva do fazer a ética cristã, Bonhoeffer trabalha a interiorização da ética, da mesma forma que Reifler, conectando a ética cristã à teologia sistemática, mesmo que sejam disciplinas diferentes, estão ligadas de forma intercambiáveis, pois o crer e o agir responsável faz parte da vida do cristão.
       
Bonhoeffer escreve: “Pior do que a má ação é ser mau. Um mentiroso dizer a verdade é pior do que um amante da verdade mentir. Um misantropo praticar o amor fraterno é pior do que um filantropo sucumbir uma vez ao ódio”.22

“A ética cristã está além do formalismo e da casuística; enquanto formalismo e casuística partem da luta do bem com o real, a ética cristã pode partir da reconciliação já acontecida do mundo com Deus e com o ser humano Jesus Cristo, da aceitação do ser humano real por parte de Deus.”23

Também salienta que a ética cristã “só é possível com base na atual presença da forma de Jesus Cristo em sua Igreja. A Igreja é o lugar onde se proclama e acontece o processo em que Jesus Cristo toma forma. A ética cristã está a serviço desta proclamação e acontecimento.”24
       
Para Bonhoeffer, a ética cristã está baseada na encarnação e ressurreição do Senhor Jesus Cristo.25 Portanto, segue a mesma linha de raciocínio de Reifler, sobre a dialética entre a teologia sistemática (doutrina) e ética cristã (agir responsável, segundo Bonhoeffer).
      
O conhecido professor de apologética, Norman Geisler, também compreende a ética cristã como absoluta para os cristãos. Ele escreve: “Enquanto a ética considera o que é moralmente certo ou errado, a ética cristã considera o que é moralmente certo ou errado para os cristãos.”26
       
Para Geisler, a ética cristã baseia-se na vontade de Deus, sendo um mandamento divino como forma, tendo como fundamento o caráter moral de Deus que não muda (Ml 3.6; Tg 1.17), baseando-se na revelação de Deus sendo deontológica, ou seja, centrada no dever e não nos meios e nos fins (teleológica).
       
Geisler salienta que a ética cristã é absoluta em detrimento do antinomismo (não há lei), do situacionismo (há lei, mas esta é condicionada) e do generalismo (a obrigatoriedade é geral, mas há exceções). Porém, dentro do absolutismo, há uma divisão de categorias como o absolutismo não qualificado (o conflito moral é apenas aparente), absolutismo conflitante (o conflito moral é existente, portanto haverá culpa de qualquer forma) e o absolutismo graduado (no conflito moral há a escolha do bem maior e mal menor).27
     
Na mesma linha, o professor de Antigo Testamento, Walter Kaiser Jr, salienta que a “ética não é um padrão de conduta caracteristicamente cristão, pois Paulo argumenta que até mesmo os pagãos, que não revelam um claro conhecimento da Lei, demonstram que a obra da Lei está escrita no coração deles (Rm 2.14,15).”28
       
Portanto a ética cristã tem como base a “perspectiva de nosso Senhor apresentada nas Escrituras Sagradas.”29  Sendo assim, mesmo no relativismo pós-moderno, o cristão e a comunidade cristã são chamados a responder a partir da revelação bíblica temas que estão sendo relativizados como o aborto, a homossexualidade, genocídio, pobreza e riqueza, moral individual, dentre outros.
      
O artigo salientou o relativismo como fundamento da ética pós-moderna, sendo até mesmo criticado por não cristãos, porém o crente tem um referencial absoluto que é a Palavra de Deus revelada. A ética é absoluta porque o referencial é absoluto, o próprio Deus em sua revelação. “Quando os fundamentos são destruídos, que pode fazer o justo?” (Salmo 11:3 Almeida 21).

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1JAPIASSÚ, Hilton. MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. P. 93.
2VEITH JR. Gene Edward. Tempos Pós-Modernos: Uma avaliação cristã do pensamento e da cultura da nossa época. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999. P. 10.
3Ibid. P. 21.
4GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. Tradução  de Antivan Guimarães Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2008. P. 15.
5Lema do pensamento chamado positivismo, um dos filhos do movimento iluminista, presente na bandeira brasileira omitindo apenas o termo “amor” e sendo a fundamentação epistemológica do pensamento brasileiro em sua formação moderna. Cf. SILVA, Wilson Santana. As Matizes do Pensamento Brasileiro: Comte e Marx. São Paulo: Fides Reformata volume XVII, 2012. P. 61-77.
6VEITH JR. Op. Cit. P. 29.
7Ibid. P. 37-38.
8Ibid. P.41.
9GRENZ. Op. Cit. P. 18-19.
10HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa Sobre as Origens da Mudança Cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2012. P. 58.
11BAUMAN, Zyigmunt. Vida em Fragmento: sobre a ética pós-moderna. Tradução de Alexandre Werneck. – Rio de Janeiro: Zahar, 2011. P. 9.
12Ibid. P. 10.
13Ibid. P. 22
14Ibid. P. 65.
15REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos Dez Mandamentos: Um Modelo para os Nossos Dias. São Paulo: Vida Nova, 1992. P. 15.
16Ibid. P. 16.
17Ibid. P. 17.
18Ibid. P. 18
19Ibid. P. 19.
20Ibid. P. 20.
21BONHOEFFER, Dietrich. Ética. Tradução de Helberto Michel. São Leopoldo, Sinodal. 2002. P.15.
22Ibid. P. 41.
23Ibid. P. 53.
24Ibid. P. 54.
25Ibid. P. 76.
26GEISLER, Norman L. Ética Cristã: Opções e Alternativas Contemporâneas. Tradução de Alexandre Meimaridis, Djair Dias Filho. São Paulo: Vida Nova, 2010. P. 16.
27Ibid. P. 16-22.
28KAISER JR. Walter. O Cristão e as questões éticas da atualidade: Um guia bíblico para pregação e ensino. Tradução de Haroldo Janzen e Ingrid Neufeld de Lima. São Paulo, Vida Nova, 2015. P. 9.
29Ibid. P. 10.

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