A correta distinção entre a lei e o evangelho

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Milhares de pessoas pelo mundo, especialmente do classificado grupo de risco, tem sucumbido diante da pandemia do novo coronavírus. Descoberto no final do ano de 2019, em março de 2020 já são mais de quatrocentos e cinquenta mil casos diagnosticados com o Covid-19.[1] A busca agora é por medicamentos que possam combater os efeitos do vírus e consecutivamente reduzir sua gravidade e mortalidade.

Mas o que o coronavírus tem a ver com a lei e o evangelho? Pode ser que nada. Contudo, assim como este vírus tem trazido pânico ao mundo e ceifado, prematuramente, milhares de vidas, o pecado também possui este efeito. Cientistas do mundo inteiro buscam por soluções farmacológicas para combater o Covid-19 e tratar aquele que foi diagnosticado com o vírus. Queremos aqui fazer uma analogia com o pecado: Como podemos combatê-lo? Como tratar o pecador?

Além da hipótese do novo coronavírus, sabemos que para o tratamento e a cura de qualquer doença é fundamental que as ações médica e farmacêutica sejam realizadas em sua devida ordem. Como, por exemplo, para tratar uma pneumonia é necessário, primeiro o diagnóstico, por meio das devidas ações médicas de prescrição de exames clínicos, laboratoriais e de imagem, posteriormente o tratamento medicamentoso, além dos cuidados de resguardo, para, então, alcançar a cura. Ainda, mesmo com a cura, permanece os efeitos pedagógicos do pós-tratamento, os quais induzem a pessoa a ter cuidados para que não se depare com a pneumonia novamente.

O pecado original que se estendeu por todo o gênero humano, depravando-o, é um mal hereditário, oriundo de Adão, que até as crianças no ventre de suas mães contamina,[2] é a raiz que produz no homem todo tipo de pecado.[3] Vejamos o que diz o capítulo 6 da Confissão de Fé Batista:

Por esse pecado, nosso primeiros pais decaíram de sua condição original de retidão e comunhão com Deus. No pecado deles nós também pecamos, e por isso a morte veio sobre todos; todos se tornaram mortos no pecado e totalmente corrompidos, em todas as faculdades e partes do corpo e da alma.

Apesar do homem ter trazido sobre si a maldição da lei, somos salvos e justificados por meio do Evangelho de Jesus Cristo. “Por essa razão, as mesmas promessas que se nos ofereciam na Lei seriam ineficazes e sem poder algum se não nos socorresse a bondade de Deus pelo Evangelho”.[4] Vejamos o capítulo 7 da Confissão de Fé Batista:

Tendo o homem trazido sobre si mesmo a maldição da lei, por causa de sua queda no pecado, o Senhor teve por bem estabelecer o pacto da graça. Neste pacto Deus oferece gratuitamente, a pecadores, vida e salvação por Jesus Cristo, requerendo-lhes fé nEle para que sejam salvos, e prometendo dar o Espírito Santo a todos os que estão destinados para a vida eterna, para lhes dar a vontade e a capacidade para crerem.

Dito isto, vamos pensar na lei e no evangelho como um remédio contra a doença chamada pecado. O primeiro efeito que podemos refletir sobre este “composto medicamentoso” denominado Lei e Evangelho é a compreensão adequada do “paciente” acerca do poder devastador do pecado. A partir da pregação da Palavra, temos a compreensão exata sobre o pecado, o que nos permitirá distinguir entre lei e evangelho. Quando somos tratados pela Palavra do Senhor, deixamos de ser governados pela doença que estava alojada em nossa alma: pecado. Deixando de ser a regência da nossa vida, o pecado também deixa de ser consuetudinário. Reconhecemos que somos pecadores, regidos pelo Senhorio de Cristo, redimido pela graça, não mais perdidos e condenados.

Todavia o afastamento da influência do pecado, não implica na ausência de sua presença. A pessoa que foi devidamente medicada, voltará a ser exposta diariamente ao agente hospedeiro da doença,  contudo com uma grande diferença: sabemos o que precisamos fazer para vencê-lo. Cada um de nós possui determinadas inclinações pecaminosas que devemos vencer todos os dias, e mesmo que ocorram momentos de deslize, uma nova aplicação do “remédio” resolverá o problema.

O pecado sempre tentará retomar sua condição de regente em nossas vidas, assim, devemos tratar a doutrina do pecado de forma séria e consciente. É o que ensina Pless: “Se a lei e evangelho devem ser corretamente distinguidos, é essencial que a doutrina bíblica do pecado seja estabelecida de maneira também correta”.[5] Em outras palavras, podemos tratar o pecado como um sintoma normal, ou desdenhá-lo, como se ele deixasse de ser uma ameaça, como se existisse uma garantia de que a pessoa não cairá, ou que o ato pecaminoso, quando praticado, será imediatamente absolvido. Em ambos os casos, haverá uma subestimação do pecado, perigosa por si mesma, representando que a pregação da Lei e do Evangelho não foram ministradas corretamente.

A Lei e o Evangelho destroem o reino do pecado e possibilitam que o “paciente” resista a qualquer tentativa de retorno do domínio proveniente da transgressão. Aquele que foi salvo por intermédio da Fé, também conseguirá perceber quando uma doutrina oferece um paradigma diverso daquele inserto na carta paulina de Romanos 6:12-14.

A resistência ao pecado não é algo automático, até porque se fosse, a lei seria desnecessária. A lei existe para regular comportamentos e para promover resolução do litígio: se o crente estivesse tomado por um “propulsor natural”, que não mais o fizesse pecar, a lei tornar-se-ia inútil. Este fato contraria não apenas a vida real, mas também as sagradas escrituras. Martinho Lutero reconhece que “a natureza humana é tão má, que mesmo as pessoas que são dotadas do Espírito de Deus, não somente falham em fazer o que é direito, como até mesmo lutam contra isso”.[6] Evidentemente que não é por intermédio da nossa luta angustiada que chegamos a Cristo e muito menos vencemos os pecados todos os dias – isto caracteriza um movimento denominado pietismo.

Dando continuidade a caminhada cristã, além do reconhecimento do pecado, precisamos ter a capacidade de articular lei e evangelho, pois esta articulação reflete em nossas vidas e tem o poder de influenciar os outros. A confissão de Fé de Augsburgo enfatiza, em seu artigo 7º, a pregação do evangelho como um dos instrumentos essenciais de identificação da verdadeira igreja, juntamente com a administração dos sacramentos ou ordenanças, dependendo da tradição. Enfatizamos dois pontos indispensáveis: primeiro, o crente continua tendo vivo em sua mente qual o propósito da Lei em sua vida: “conhecer o pecado e ao que ele nos conduz – a morte, ao inferno e à ira de Deus”.[7] Segundo, entende a misericórdia que flui do Evangelho, assimilando que “[…] como um cristão, agrado a Deus, não por causa daquilo que faço, mas por causa de sua graça. Se trabalho muito pouco ou errado demais, Ele, graciosamente, me perdoará e me fará melhorar. Essa é a glória de todo cristão”.[8] Tais premissas, ensinadas por Lutero, são responsáveis pela formação das sinapses mais fortes na mente do cristão, assim como o pensamento, a criatividade a resposta emocional, a escolha dos afetos, as preferências, e a produção intelectual provém de neurônios bem desenvolvidos no cérebro de alguém.

Também podemos passear pelos artigos 9º e 10º da confissão de fé de Augsburgo que prescreve sobre os sacramentos, onde verificamos que a natureza destes também possui um caráter pedagógico de suma importância para o aprendizado saudável na vida do crente e para o fortalecimento da Igreja do Senhor, afastando qualquer ultra exaltação ou esvaziamento de significado. É a compreensão do Evangelho pregado e dos sacramentos ou ordenanças administrados de acordo com a palavra de Deus que constituem a verdadeira Igreja.[9] É por isso que perceber como termos articulado a lei e o evangelho em nossas vidas é essencial para o acompanhamento da Igreja, uma vez que precisamos compreender os sacramentos e/ou ordenanças como sinais visíveis e exteriores da graça e testemunhos da vontade divina para conosco.

O batismo é um meio de graça. O batismo deve fazer parte da nossa compreensão primária. Nas palavras de Nelson Kilpp, tratando da compreensão luterana do Batismo e da Ceia do Senhor,[10] o Batismo pode ser descrito como “regeneração”, conforme disposição de Tito 3:5 e João 3:15. Além disso, também podemos entendê-lo como um “renascimento”. Deste modo, tais palavras demonstram os efeitos do remédio na vida do [que antes era] doente. O Catecismo menor de Lutero ao responder sobre o significado do batismo com água, faz uma descrição precisa da necessidade de arrependimento diário, e nos ensina que no batismo a velha pessoa morre afogada com todos os pecados e desejos (Catecismo Menor IV, 12).

A fim de sanar qualquer dúvida, já que estamos falando de um cristão governado por Cristo, mas que luta diariamente contra os pecados, Kilpp nos explica a natureza do brocardo simul iusti et peccatores: os crentes são ao mesmo tempo justificados e pecadores. O motivo, é que o batismo é uma ação contínua de Deus, indo muito mais além de um rito isolado. É por isso que Martinho Lutero arremata a questão dizendo que na vida cristã o batismo é diário (Catecismo Maior IV, 65), não porque o ato do batismo vai se repetir várias vezes, mas porque o seu significado é reafirmado sempre que houver arrependimento após o que biblicamente é identificado como primeiro amor – Apocalipse 2:4-5.

É neste sentido que devemos estabelecer nossos objetivos de fé e vida: andando e desfrutando de tudo aquilo que de adequa no conjunto denominado tradicionalmente como estado de graça. Buscar em Cristo para não ser governado pelo pecado. Aqui, avocamos o tema da ordenança/sacramento da ceia do Senhor. O cristão que recebeu o “remédio”, agora também pode manter-se no caminho de santificação, por meio do recebimento do corpo e sangue de Cristo, a manifestação mais sublime de redenção dos pecados, justificador do porquê os sacramentos/ordenanças são efetivos e válidos.

Mais uma vez as palavras de Lutero são indispensáveis para explicar a figura de linguagem do remédio, no qual “tomarmo-nos filhos de Deus através da operação de Deus, e não por qualquer atuação do “livre-arbítrio” em nós”.[11]  Na etimologia médica, o uso da palavra operação é sinônimo de cirurgia, que significa “trabalho feito com as mãos”. Uma das partes que estão presentes na complexidade deste “processo cirúrgico” é o evangelismo e acompanhamento dos irmãos dentro da Comunidade de Fé – quando somos alcançados pelo poder das mãos do médico Jesus, queremos propagar esta cura para as outras pessoas, ato este que também é resultado da obra soberana de Deus, uma vez que estamos tratando de uma ação estritamente vinculada às ordenanças de Cristo de:  1) pregarmos o evangelho a toda criatura (Mateus 16:15) e 2) não sermos causa de tropeço para o nosso irmão (1João 2:10) e que nos purificarmos pela obediência à verdade, visando o amor fraternal e sincero (1Pedro 1:22).

O cristão cumpre precisamente Lei e Evangelho quando estuda o conteúdo das Escrituras Sagradas, acompanhado de Catecismos e Confissões de Fé que estejam devidamente alinhados com a ideia da mente cativa a Cristo e em seguida coloca em prática tudo o que aprendeu por meio do devocional, do combate a pensamentos distorcidos e sentimentos errados e do exercício da sabedoria em todas as atividades que realiza: no seio da nossa família, no trabalho, na criação dos filhos, no lazer e assim por diante, conforme a Palavra de Deus ensina em Romanos 13: 8-10:

A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei. Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o amor.

Quando amamos o nosso próximo, regra de ouro tomista e a grande lei natural, colocando em prática aquilo que está descrito na Lei do Senhor, estamos cumprindo a lei. Paulo elenca estes pontos porque se trata daquilo que constitui o princípio básico da consagração cristã: o amor ao próximo. Não é possível realizar tais atos de amor ao próximo sem a regeneração promovida por Cristo, além de ser uma hipocrisia realizar ações externas sem uma vida de santificação e observância desses pontos por intermédio da nossa obediência à palavra de Deus.

Um exemplo prático acontece na Igreja Batista Filadélfia de Canoas, que possui em sua estrutura, além dos cultos semanais no templo, a realização de cultos domésticos denominados de grupos de crescimento. Trata-se de uma reunião semanal, onde os participantes estudam a bíblia e promovem a comunhão através 1) do cuidado uns aos outros e 2) compartilhamento de suas experiências na vida diária, em que precisam falar e/ou aplicar 2.1) questões referentes ao cumprimento e/ou exposição da Lei e 2.2) a manifestação e/ou vivência do Evangelho de Cristo.

Quando Igreja consegue distinguir bem as vocações, selecionar dentre os seus membros aqueles que são vocacionados para o ensino, para que assim eles sejam preparados para ensinar os outros, temos um exemplo de boa articulação da Lei e Evangelho a serviço dos irmãos da Igreja.

Lutero faz menção ao processo de justificação pela fé como procedimento que apenas é possível pela Graça de Deus, apresentada logo após a Lei do Senhor. Somos agradecidos em ter recebido de Deus algo que agora é nosso. Quem deu foi o Senhor, mas agora pertence a nós. A salvação foi dada por Cristo, e agora ela pertence ao justificado pela fé, que agora tem o conhecimento do seu pecado e arrependimento  pela graça – estes atributos são pertencentes a Deus, porque são dons Dele. Assim, consideramos que a santidade cristã é oposta a dissolução, conforme lição de Efésios 4:17-19 que demonstra a diferença entre o coração endurecido em relação aquele que aprendeu verdadeiramente sobre Cristo.

Há um belo equilíbrio entre os sentimentos dentro da essência cristã: a princípio, com a apresentação da lei, o ouvinte se entristece porque conhece a realidade da sua condição (Eclesiastes 1:18), contudo, Paulo demonstra a continuidade deste processo em 2 Coríntios 7:10 falando a respeito da natureza da tristeza no plano salvífico, e como ela opera arrependimento para a salvação. Em seguida, no momento em que a tristeza alcança seu fim último, que é o quebrantamento, o doente é apresentado a alegria do medicamento, i.e, redenção, conhecendo o evangelho de Cristo. Após isso, a graça do Senhor continua a manifestar-se no ato de recebimento do batismo pela fé, já que é uma oferta de graça, lembrando daquilo que Lutero preleciona no Catecismo Maior IV, 29: “Deus ligou graciosamente sua ação salvadora à água”. No mesmo sentido a Santa Ceia, uma vez que as ordenanças são meios de graça, que garantem e comunicam a graça de Deus.

Referências bibliográficas:

CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã – Vol. II, Rio de Janeiro: Unesp, 2007.

KILPP, Nelson. “O Batismo e a Ceia do Senhor na Tradição Luterana e no diálogo presente.” Estudos Teológicos, v. 38, nº 1, p. 15-33, 1998.

LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. 1525.

PLESS, John T. Manejando bem a palavra de Deus – Lei e Evangelho na Igreja Hoje. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2018.

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[1] Dados em: https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6 . Acesso em 23.mar.2020.

[2] “Eu nasci em pecado, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl. 51.5).

[3] Adaptação do artigo 15 da Confissão Belga.

[4] CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã – Vol. II, Rio de Janeiro: Unesp, 2007, p. 265.

[5] PLESS, John T. Manejando bem a Palavra de Deus – Lei e Evangelho na Igreja hoje. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2018, p. 98.

[6] “Argumento 17: O poder da carne, mesmo em verdadeiros crentes, mostra a falsidade do ‘livre-arbítrio’” – LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. 1525. p. 39.

[7]  “Argumento 4: A lei tem o propósito de conduzir os homens a Cristo, dando-lhes o conhecimento do pecado”. LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. 1525. p. 25

[8] “Argumento 18: Saber que a salvação não depende do “livre-arbítrio” pode ser muito reconfortante”. LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. 1525. p.39

[9] Artigo 13: Do Uso dos Sacramentos. Confissão de Augsburgo.

[10] KILPP, Nelson. “O Batismo e a Ceia do Senhor na Tradição Luterana e no diálogo presente”. Estudos Teológicos, v. 38, nº 1, p. 15-33, 1998.

[11] “Argumento 16: A soberania de Deus não anula a nossa responsabilidade”. LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. 1525. p. 65

"Direito Religioso" aborda questões teóricas profundas sem perder o olhar prático da experiência profissional dos autores, Thiago Vieira e Jean Regina, advogados especializados no atendimento a inúmeras igrejas e entidades confessionais no país.

Nosso desejo, ao publicar esta obra — agora em sua terceira edição revisada e ampliada —, é que ela seja uma ferramenta prática para pastores, presbíteros e demais líderes religiosos, auxiliando-os especialmente nas questões jurídicas diárias da igreja.

Publicado por Vida Nova

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