Cumpro a lei para ter virtude ou, por buscar a virtude, a lei é cumprida?

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A carta aos romanos escrita pelo apóstolo São Paulo é, conforme consenso de teólogos das mais distintas tradições cristãs, a carta com o maior legado teológico dentre todas as presentes no Novo Testamento. Escrita por volta dos anos 55 a 57 depois de Cristo, provavelmente na cidade de Corinto[1], foi direcionada aos cristãos da igreja romana, e poderia ser dividida em duas partes: a primeira, de conteúdo extremamente teológico, se resume a justificação pela fé: o modo que se opera, seus frutos e a posição dos judeus perante esta justificação. A segunda parte, podemos dizer que é o trecho moral da carta, tratando sobre os deveres dos cristãos. É exatamente nesta segunda sessão, que pretendo deitar as raízes da minha reflexão.

Roma era o grande centro mundial daquela época. Era o lugar para onde convergiam os negócios e toda a fortuna arrecadada nas conquistas do Império Romano. O mundo ocidental era governado por Roma e para Roma. Em uma cidade com mais de um milhão de habitantes entre romanos e estrangeiros, o sincretismo religioso era uma realidade, somado ao fato de a luta pelo poder, sexo e dinheiro serem desenfreados. Por outro lado, grande parte do mundo ocidental herdou, desta mesma grande cidade, todo um sistema de leis incrivelmente organizado, mas que não impedia a imoralidade que a permeava.

Neste contexto, Paulo escreveu Romanos. Dentre os milhares de ensinos que são retirados desta carta, podemos extrair, também, que não é o cumprimento da lei que nos torna bons. Na verdade, a lei como meta se torna uma máscara que esconde o que realmente somos. Quando voltamos nossa atenção ao cumprimento rígido da lei (dura lex sed lex), tiramos nossos olhos do que realmente importa para cuidarmos apenas do nosso umbigo. Explico melhor.

Segundo o reformador Martinho Lutero, o fim último da lei é mostrar tudo aquilo que nós não podemos fazer. Tendo em vista que o ser humano não nasce naturalmente bom, a lei traz um conjunto de determinações que o ser humano pecaminoso não consegue cumprir. Por esse motivo, o agir conforme a lei possui uma natureza milagrosa, a saber, a redenção de Jesus Cristo é o que nos possibilita andar conforme a lei.

Em um tempo de ondas conservadoras, encontraremos muitas figuras se auto vangloriando pelo fato de portarem consigo a melhor cosmovisão política a respeito de vida moral e bons costumes – trata-se de um “escorregão” perigoso, já que não é por portar determinadas ideias que nos tornamos bons. Na verdade, só conseguiremos cumprir a lei através da ação de Jesus Cristo em nós, fato este que deve nos conduzir à uma postura de humildade intelectual.

A lei se tornará uma máscara quando acreditarmos que seu mero cumprimento é o suficiente para tornar alguém bom. Na verdade, a lei serve para demonstrar que a nossa humanidade, naturalmente depravada, é incapaz de cumprir tais requisitos para uma boa vida em comunidade. A partir do momento em que compreendo o objetivo central da lei, e reconheço que é pelo primeiro pecado que devo analisar minha condição inicial, percebo uma premissa verdadeira dissertada pelo Apóstolo Paulo: “pela ofensa de um só, morreram muitos” (Romanos 5: 15).

Importante, também salientar, que a lei temporal, aquela que conhecemos no Código Civil, Código Penal ou na Constituição brasileira, tem inspiração na lei eterna. Não é à toa que Santo Tomás de Aquino arremata o assunto com precisão, defendendo que “[…] todas as leis, na medida em que participam da razão reta. E por isso Agostinho diz: Nada há de justo e legítimo, nas leis temporais, que os homens não tivessem para si ido buscar na lei eterna[2].

Ou seja, mesmo havendo a diferença entre a lei terrena e a lei eterna, ambas são frutos da sabedoria Divina, e por isso, somente por meio da mão do autor da lei, é que somos capazes de cumpri-la e entender o verdadeiro teor da lei: ordenar, proibir, permitir e punir[3]. O que precede a lei, segundo Santo Tomás, é a prática das virtudes e dos bons hábitos, sabendo disso, recordamos que a humildade é uma característica daquele que observa a lei corretamente. Respondendo a pergunta tema do nosso texto: “Nem sempre obedecemos à lei pela bondade de uma virtude perfeita; mas umas vezes, pelo temor da pena, outras, pelo só ditame da razão, que é um princípio de virtude, como já estabelecemos.”[4] É porque buscamos a virtude, que a lei será cumprida: é uma cadeia consequencial. A ordem desses fatores é o foco de preleção de Santo Tomás:

Pois, diz Damasceno: As virtudes são naturais e existem igualmente em todos. E Antonio: Se a vontade mudar a natureza haverá perversidade. Conserve-se a condição e haverá virtude. E sobre aquilo da Escritura (Mt. 4:23): Jesus rodeava ensinando, etc. – diz a Glosa: Ensina as virtudes naturais, a saber: a justiça, a castidade, a humildade […]

Não devemos ajudar o pobre porque queremos ser caridosos, ajudamos o pobre porque somos caridosos. Não somos salvos por intermédio das boas obras, mas salvos às boas obras. A lei emana da vontade de ser caridoso e nunca o contrário; quando entendemos isto, caminhamos duas milhas ao invés da imposição de uma. Se caminhamos uma milha porque somos obrigados, por certo, na próxima oportunidade contaremos vantagens se descumprirmos esta imposição sem sermos penalizados, a ponto de estarmos até o pescoço no lamaçal da imoralidade. “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei” (Romanos 13:8).

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[1] “Paulo escreveu Romanos antes de entregar a oferta das igrejas gentílicas à igreja em Jerusalém (15.25; At 24:17). Indicações internas sugerem que nesse tempo e devia estar morando em Corinto: Febe (16.1-2) era membro da igreja em Cencreia, o porto de Corinto; o hospedeiro de Paulo, Gaio (16.23), devia ter sido um morador de Corinto (1Co 1.14); e Erasto tinha ligações com essa cidade também (16.23; At 19.22; 2Tm 4.20) – informações disponível na Bíblia de Genebra, 2ª Edição Revisada e Ampliada. Sociedade Bíblica do Brasil. p. 1471.

[2] DE AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica Vol. 2 ~ La llae. São Paulo: Editora Ecclesiae, 2017, p. 560.

[3] DE AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica Vol. 2 ~ La llae. São Paulo: Editora Ecclesiae, 2017, p.556.

[4] DE AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica Vol. 2 ~ La llae. São Paulo: Editora Ecclesiae, 2017, p. 556.

"Direito Religioso" aborda questões teóricas profundas sem perder o olhar prático da experiência profissional dos autores, Thiago Vieira e Jean Regina, advogados especializados no atendimento a inúmeras igrejas e entidades confessionais no país.

Nosso desejo, ao publicar esta obra — agora em sua terceira edição revisada e ampliada —, é que ela seja uma ferramenta prática para pastores, presbíteros e demais líderes religiosos, auxiliando-os especialmente nas questões jurídicas diárias da igreja.

Publicado por Vida Nova

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