Um testemunho cristão contra o antissemitismo: “os dons e o chamado de Deus para Israel são irrevogáveis”

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Tristemente, em nosso tempo, o antissemitismo — muitas vezes disfarçado de antissionismo — ressurgiu na Europa e nos Estados Unidos, se espalhando inclusive por meio do terror e violência.[1] O deputado francês Meyer Habib fez um discurso diante da Assembleia Nacional da França, em dezembro de 2019, destacando a extensão da ameaça antissemita e a íntima relação entre o ódio aos judeus e o ódio a Israel: “O antissionismo é a demonização obsessiva de Israel e um abuso da retórica antirracista e anticolonial que tem como objetivo privar os judeus de sua identidade”. Na atualidade, jornais europeus publicam artigos apoiando o boicote econômico e cultural contra Israel, e há uma crescente enxurrada de caricaturas antissemitas que agora acompanham artigos anti-israelenses na imprensa europeia. Muitas charges retratam os judeus como “parasitas”, exatamente como na imprensa alemã antes da Segunda Guerra Mundial e nos países muçulmanos na atualidade.

A LONGA SOMBRA DO ANTISSEMITISMO NA CRISTANDADE

Cedo na história da igreja surgiram duas acusações contra os judeus, feitas por cristãos. A acusação de deicídio atribuía aos judeus a culpa coletiva pela morte do Senhor Jesus, ainda que o Credo dos Apóstolos afirme que o Salvador “padeceu sob Pôncio Pilatos”. E como Bento XVI registra em sua obra Jesus de Nazaré, foram “a aristocracia do templo” em Jerusalém e as “massas”, isto é, “os partidários de Barrabás” — e não o povo judeu como um todo —, os responsáveis pela crucificação do Senhor Jesus. Da acusação de deicídio surgiu uma teoria de substituição que se tornou muito aceita: a nova aliança firmada com a Igreja seria uma substituição da aliança mosaica firmada com Israel. Assim, a Igreja seria o Novo Israel — mas, como escreve Gerald McDermott, “o Novo Testamento jamais chama a Igreja de novo Israel”. Vários Pais da Igreja afirmaram o deicídio e/ou a teoria da substituição com maior ou menor virulência: Inácio de Antioquia, Justino Mártir, Melitão de Sardes, Hipólito de Roma, Tertuliano de Cartago, Orígenes de Alexandria, João Crisóstomo, Agostinho de Hipona, Jerônimo de Estridão e Cirilo de Alexandria. O “ódio contra o povo judeu” continuou presente nos discursos de escritores medievais e reformadores, tais como Martinho Lutero.

A acusação de deicídio e a teoria da substituição são antissemitismo religioso, e causaram ao povo judeu segregação, confisco, exílio e assassinato: a chacina de 1066 em Granada, os massacres na Renânia que precederam a Primeira Cruzada de 1096, o Édito de Expulsão da Inglaterra em 1290, os massacres dos judeus espanhóis em 1391, a expulsão da Espanha em 1492, a expulsão de Portugal em 1497 e o massacre de Lisboa em 1506. Este precisa ser distinguido do antissemitismo étnico, que foi dominante nos séculos 19 e 20, na Rússia, onde ocorreram vários pogrons entre 1821 e 1906; na França, onde ocorreu de 1894 a 1906 o Caso Dreyfus; e na Alemanha, que concebeu o Holocausto (Shoah), que resultou em 6 milhões de judeus assassinados pela máquina de guerra nacional-socialista. Esta buscava a “solução final da questão judaica europeia”, para alcançar uma “nova ordenação da política racial da Europa”, “limpa de judeus”. Tratando os judeus como parasitas a serem exterminados, utilizaram um pesticida, Zyklon B, nas câmaras de gás dos campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau e Majdanek, na Polônia, entre 1941 e 1945. Nesses dois campos foram mortos cerca de 1,2 milhões de judeus.

A fé reformada

Após a Reforma protestante do século 16, houve um reconhecimento da noção de que, de acordo com o testemunho das Escrituras Sagradas, o povo judeu e Israel são importantes no plano de Deus. Alguns esperavam que os judeus retornariam à terra somente após a segunda vinda de Jesus, quando Israel prosperaria sob o reinado do Messias e receberia lugar de honra entre as nações. Outros que os judeus retornariam à terra e teriam fé em Jesus como o Messias antes dele retornar em triunfo. E outros defenderam que os judeus não só retornariam à terra, mas teriam um estado nacional, Israel. E, como frisa McDermott, “nenhum deles era dispensacionalista […], nenhum deles cria no arrebatamento [secreto da igreja antes da tribulação]”, inovações que só surgiram no século 19.

O Diretório de Culto de Westminster, de 1645, afirmou ao tratar “da oração pública antes do sermão”, que os clérigos deveriam “orar pela propagação do evangelho e reino de Cristo a todas as nações, pela conversão dos judeus, a plenitude dos gentios, a queda do Anticristo, e o apressar da segunda vinda de nosso Senhor”. O Catecismo Maior de Westminster, de 1674, ensina que “na segunda petição [do Pai Nosso], que é: ‘Venha o teu reino’ […] pedimos que o domínio do mal seja destruído, o Evangelho seja propagado por todo o mundo, os judeus chamados, e a plenitude dos gentios seja consumada”. Esses documentos presbiterianos instruem a igreja a orar a Deus suplicando que os judeus se convertam em massa a Jesus como o Messias antes de seu retorno triunfal.

Wilhelmus à Brakel, ministro reformado em Roterdã, na Holanda, em sua obra The Christian’s Reasonable Service, escreveu em 1700:

Mais uma pergunta a ser respondida: Será que a nação judaica será reunida novamente a partir de todas as regiões do mundo e de todas as nações da terra em que foi dispersa? Vão habitar em Canaã e todas as terras prometidas a Abraão, e Jerusalém será reconstruída? Acreditamos que esses eventos irão acontecer. Nós negamos, no entanto, que o templo será reconstruído, e que o modo anterior de adoração será observado, já que o que antes da vinda de Cristo era de natureza tipificadora será, então, de natureza reflexiva. […] Eles serão uma república independente, governada por um governo muito sábio, bondoso e soberbo. Além disso, Canaã será extraordinariamente frutífera, os habitantes serão eminentemente piedosos e constituirão um segmento do estado glorioso da igreja durante os mil anos profetizados em Apocalipse 20.

Embora não esperasse um templo reconstruído, defendeu que como prenúncio da vinda do Salvador os cidadãos de Israel seriam levados a ter fé em Jesus como o Messias. E sua crença num futuro retorno à terra foi expressa quase 250 anos antes de ela se realizar.

Nos Estados Unidos, o pastor congregacional Jonathan Edwards acreditava que os judeus seriam restaurados à sua terra e receberiam Jesus como seu Messias, antes de seu retorno triunfante:

A infidelidade judaica será então derrubada. Por mais obstinados que tenham sido por mais de mil e setecentos anos em sua rejeição a Cristo, e os casos de conversão de qualquer um dessa nação terem sido tão raros desde a destruição de Jerusalém, e de, contra os claros ensinamentos de seus próprios profetas, continuarem a aprovar a crueldade de seus antepassados em crucificar [Cristo]; contudo, quando esse dia chegar, o espesso véu que cega seus olhos será removido (2Coríntios 3,16), e a graça divina derreterá e renovará seus duros corações: ‘E eles olharão para aquele a quem eles [traspassaram, e eles prantearão por ele, como quem pranteia pelo seu único filho, e lamentarão amargamente por ele, como alguém que lamenta pelo seu primogênito]’ (Zacarias 12,10, etc.). E então todo o Israel será salvo (Romanos 11,26). Os judeus, em todas as suas dispersões, abandonarão sua antiga infidelidade e, maravilhosamente, terão seus corações transformados, e se aborrecerão por sua incredulidade e obstinação passadas; e fluirão juntos para o abençoado Jesus, penitente, humilde e alegremente, tendo-o como seu glorioso rei e único salvador, e com todo o seu coração, como um só coração e uma só voz, irão proclamar seus louvores a Cristo em outras nações (Isaías 66,20; Jeremias 50,4). Nada é anunciado com mais certeza do que esta conversão nacional dos judeus, que está em Romanos 11. E há também muitas passagens do Antigo Testamento que não podem ser interpretadas em outro sentido, e que não posso mencionar agora.

Ele entendia que, embora não soubesse o momento preciso de quando essas coisas aconteceriam, as Escrituras ensinavam a futura restauração dos judeus através da fé em Jesus, que resultaria em “vida dentre os mortos” entre as nações gentias da terra. Edwards escreveu estas palavras em 1739, em sua obra A History of the Work of Redemption, 209 anos antes de Israel ser reconhecido como nação.

McDermott também acrescenta que Edwards afirmou em seus Apocalyptic Writings, de 1723, “que as promessas feitas aos judeus na Bíblia não deviam ser espiritualizadas. Ele também previu o retorno futuro dos judeus à sua terra ancestral. […] A Bíblia, disse ele, previa o retorno em massa dos judeus exilados na Diáspora (Dispersão), mas a maior parte dos judeus ainda vivia na Diáspora. Além disso, escreveu, a Bíblia diz que Deus faria deles ‘um monumento visível da sua graça’, e isso ainda não acontecera. A profecia bíblica era clara e dizia que […] Israel seria uma nação separada [sem ‘as velhas paredes de separação’]”.

Na Inglaterra, na década de 1790, a Universidade de Cambridge patrocinou um concurso de ensaios sobre “os motivos contidos na Escritura para a expectativa de uma restauração futura dos judeus”. E, em 1839, a Assembleia Geral da Igreja da Escócia aprovou um “Ato sobre a Conversão dos Judeus”, e enviou quatro ministros presbiterianos, Andrew Bonar, Robert Murray M’Cheyne, Alexander Keith e Alexander Black para a Terra Santa, na época disputada por egípcios e otomanos. Em 1842, Bonar e M’Cheyne publicaram uma obra que se tornou bem popular no Reino Unido, Narrative of a Visit to the Holy Land; And, Mission of Inquiry to the Jews. Seu alvo era “promover a causa dos judeus entre nossos irmãos [presbiterianos]”, e inflamá-los com o interesse missionário pela Terra Santa.

O pregador batista inglês Charles Spurgeon foi conhecido como “o príncipe dos pregadores”. Comentando sobre os últimos capítulos da profecia de Ezequiel, em 1864, no sermão The Restoration and Conversion of the Jews, afirmou:

Israel está agora apagado do mapa das nações; seus filhos estão espalhados por toda parte; suas filhas choram ao lado de todos os rios da terra. Sua canção sagrada é silenciada; nenhum rei reina em Jerusalém; ela não traz governadores entre suas tribos. Mas ela deve ser restaurada; ela deve ser restaurada ‘como dos mortos’. Quando seus próprios filhos desistirem de toda a sua esperança, então é quando Deus irá aparecer para ela. Ela deve ser reorganizada; seus ossos espalhados devem ser reunidos. Haverá um governo nativo novamente; haverá novamente a formação de um corpo político; um Estado será incorporado e um rei reinará. Israel agora se tornou alienado de sua própria terra. Seus filhos, embora nunca possam esquecer o pó sagrado da Palestina, ainda assim morrem a uma distância sem esperança de suas praias consagradas. Mas não será assim para sempre, porque os filhos dela novamente se regozijarão nela.

No sermão The Church of Christ, de 1855, ele exorta a todos os cristãos:

Acho que não atribuímos importância suficiente à restauração dos judeus. Nós não pensamos o suficiente sobre isso. Mas certamente, se há algo prometido na Bíblia, é isto. Eu imagino que você não pode ler a Bíblia sem ver claramente que deve haver uma restauração real dos Filhos de Israel […]. Pois quando os judeus forem restaurados, a plenitude dos gentios será reunida; e assim que eles voltarem, então Jesus virá sobre o Monte Sião com seus anciões gloriosamente, e os dias pacíficos do milênio, então, amanhecerão; então conheceremos todo homem para ser irmão e amigo; Cristo governará com domínio universal.

E no sermão The Leafless Tree, de 1857, se “lermos as Escrituras corretamente”, então entenderemos completamente o fato de que “os judeus têm muito a ver com a história deste mundo. Eles serão reunidos; O Messias virá, o Messias que eles estão buscando — o mesmo Messias que veio uma vez virá novamente — virá como eles esperavam que ele viesse pela primeira vez. Eles então pensaram que ele viria como um príncipe para reinar sobre eles, e assim vai ser quando ele vier de novo. Ele virá para ser rei dos judeus e reinar sobre seu povo da maneira mais gloriosa; porque quando ele vier, os judeus e os gentios terão privilégios iguais, embora ainda deva haver alguma distinção concedida à família real de cujos lombos Jesus veio; porque ele se assentará no trono de seu pai Davi, e a ele serão reunidas todas as nações”. Spurgeon acreditava no retorno dos judeus à terra de Israel cerca de 90 anos antes de ter sido fundado o Estado de Israel.

J. C. Ryle, bispo anglicano da diocese de Liverpool, na Inglaterra, tratou de um futuro retorno do povo judeu para sua terra, em Coming Events and Present Duties: “Creio que os judeus serão finalmente reunidos novamente como uma nação separada, restaurados à sua própria terra e convertidos à fé de Cristo, depois de passarem por grande tribulação (Jeremias 30,10-11; 31,10; Romanos 11,25–26; Daniel 12,1; Zacarias 13,8–9)”. Ele também afirmou:

Mas o tempo me faltaria, se eu tentasse citar todas as passagens das Escrituras nas quais a futura história de Israel é revelada. Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Amós, Obadias, Miquéias, Sofonias, Zacarias, todos declaram a mesma coisa. Todos predizem, com mais ou menos particularidade, que no final desta dispensação os judeus devem ser restaurados à sua própria terra e ao favor de Deus. Eu não reivindico infalibilidade na interpretação das Escrituras neste assunto. Estou bem ciente de que muitos cristãos excelentes podem não ver o assunto como eu. Só posso dizer que, aos meus olhos, a futura salvação de Israel como um povo, seu retorno à Palestina e sua conversão nacional a Deus, aparecem claramente e nitidamente revelados, como qualquer profecia na Palavra de Deus.

Ryle escreveu sobre a volta dos judeus à terra em 1867, oitenta e um anos antes de Israel se tornar um Estado.

Na Inglaterra e Escócia, entre os séculos 17 e 19, tinham ideias semelhantes o congregacional John Owen, o batista John Gill, os presbiterianos Samuel Rutherford, Horatius e Andrew Bonar, e Robert Murray M’Chyene, além do anglicano Charles Simeon, que escreveu em 1820: “Os judeus em geral, e a maior parte dos cristãos também, acreditam que os dispersos de Israel um dia serão restaurados em sua própria terra”. Nos Estados Unidos, o presbiteriano Charles Hodge escreveu em 1864, em Romanos, que “seriam cumpridas aquelas profecias que falam da salvação de Israel [e esta posição…] tem sido aquela geralmente aceita em todas as outras eras da Igreja”.

O pregador congregacional galês D.M. Lloyd-Jones, na palestra O plano de Deus para os judeus, proferida na Capela de Westminster, em Londres, em 1955, declarou sua crença em uma conversão maciça dos judeus antes do final dos tempos:

Há alguns, e estou entre eles, que creem que Paulo ensina neste capítulo [de Romanos 11] que antes do fim haverá um grande número de conversões [ao Senhor Jesus] entre os judeus. Será estonteante e alegrará os corações dos crentes então vivos. Será como vida surgindo entre os mortos. Mas não estarão numa posição especial; a nação de Israel não será diferenciada dos gentios. Não, os judeus, ainda que creiam aos milhares, entrarão no reino pelo arrependimento e fé no Senhor Jesus Cristo. Terão de confiar no sangue de Cristo como […] todos os outros cristãos têm confiado; não existe outra porta de entrada no reino. Ninguém jamais será capaz de guardar a lei. É pela fé em Cristo somente, e ele crucificado, que alguém pode ser salvo. Esse é o evangelho eterno, e jamais haverá outro. Portanto, graças […] a Deus que Seus propósitos são inabaláveis, e aquilo que Ele propôs certamente se cumprirá.

Para o reformado suíço Karl Barth, talvez o maior teólogo do século 20, de acordo com McDermott, “a criação do Estado de Israel, em 1948, era uma ‘parábola secular’, um símbolo da ressurreição e do reino de Deus. De acordo com Barth, o retorno dos judeus em grandes contingentes para a terra deles […, no século 20], foi cumprimento de profecias bíblicas. Os profetas hebreus, disse ele, previram uma história de Deus com o povo judeu que chega até nossos dias. E ele concordava com aqueles para quem os ossos secos em Ezequiel que tornavam à vida (Ez 37) eram uma profecia da restauração de Israel a sua terra. Barth [também] advertiu para o fato de que toda nação que se opusesse a Israel não prosperaria a longo prazo”.

O testemunho luterano

Dietrich Bonhoeffer foi um pastor, teólogo e resistente contra o nacional-socialismo. Em 1933 ele ajudou a redigir a Confissão de Betel, que se opunha ao movimento Cristão Alemão e afirmava o chamado e a eleição do povo judeu:

Rejeitamos a falsa doutrina que tornaria a crucificação de Cristo culpa apenas do povo judeu, como se outros povos e raças não o tivessem crucificado. Todas as raças e povos […] compartilham a culpa por sua morte e tornam-se culpados a cada dia novamente, quando cometem ultraje contra o Espírito da graça. […] Deus deu provas de fidelidade transbordante ao permanecer fiel a Israel de acordo com a carne, da qual Cristo nasceu na carne […], apesar de toda a infidelidade de Israel e mesmo após a crucificação. Deus ainda quer completar com os judeus o plano de redenção do mundo que começou com o chamado de Israel (Romanos 9-11). É por isso que Deus preservou, de acordo com a carne, um remanescente sagrado de Israel, que não foi absorvido por qualquer outra nação […], nem se torna uma nação entre outras […], nem pode ser aniquilada por medidas como as do Faraó. Este remanescente sagrado tem o caráter indelebilis do povo escolhido.

Em abril de 1943, após dez anos de resistência ao nacional-socialismo, Bonhoeffer foi preso por causa de sua participação na Operação 7 — a bem-sucedida ação de evadir quatorze judeus da Alemanha para a Suíça em setembro de 1942 — e foi martirizado no campo de concentração de Flossenbürg, em 8 de abril de 1945.

Um caminho para o diálogo judeu-cristão

Diante do holocausto de mais de 6 milhões de judeus na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, ocorreu entre 30 de julho e 5 de agosto de 1947 a Conferência Internacional sobre a Emergência do Antissemitismo, em Seelisberg, na Suíça. Sob a influência de Jules Isaac, historiador francês de ascendência judaica, e autor da obra Jesus e Israel, sessenta e cinco judeus, católicos e protestantes de vários países reuniram-se para formular os Dez Pontos de Seelisberg:

  1. Deve ser relembrado que um só e mesmo Deus nos fala no Antigo e no Novo Testamento. 
  1. Não se pode esquecer que Jesus nasceu de mãe judia, pertencia à família de Davi e ao povo de Israel, e que seu amor eterno abrange o seu povo e o mundo inteiro. 
  1. Recorde-se ainda que os primeiros discípulos, os Apóstolos, e os primeiros mártires eram judeus. 
  1. Tenha-se presente que o principal mandamento do cristianismo, o amor de Deus e do próximo, anunciado no Antigo Testamento e confirmado por Jesus, obriga igualmente, cristãos e judeus, em todas as relações humanas. 
  1. Deve-se evitar diminuir o judaísmo bíblico e pós-bíblico para exaltar o cristianismo. 
  1. Não se deve empregar a palavra “judeu” para designar exclusivamente os inimigos de Jesus, e as palavras “inimigos de Jesus” para designar o povo judeu em seu conjunto. 
  1. Não se deve apresentar a Paixão de Jesus, como se todos os judeus, ou somente os judeus, tivessem incorrido na odiosidade da crucificação. Não foram todos os judeus que pediram a morte de Jesus, nem foram somente judeus que se responsabilizaram por ela. A Cruz, que salva a humanidade, revela que Cristo morreu pelos pecados de todos. Pais e mestres cristãos deveriam ser alertados a respeito de sua grande responsabilidade na maneira de narrar os sofrimentos de Jesus. Se o fazem de uma forma superficial, correm o risco de fomentar aversões no coração das crianças ou dos ouvintes. Numa mente simples, movida de um ardente amor compassivo pelo Salvador crucificado, o horror natural dos perseguidores de Jesus pode facilmente tornar-se, por motivos psicológicos, ódio indiscriminado pelo judeu de todos os tempos, inclusive nos nossos dias. 
  1. Não se devem evocar as condenações bíblicas e o grito da multidão enraivecida: ‘Que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos’ (Mt 27,25) sem relembrar que esse grito não anulou as palavras de nosso Senhor, de consequências incomparavelmente maiores: ‘Pai, perdoa-lhes; eles não sabem o que fazem’ (Lc 23,24). 
  1. É preciso evitar qualquer tentativa de mostrar os judeus como um povo reprovado, amaldiçoado e votado a um sofrimento perpétuo. 
  1. Deve ser mencionado que os primeiros membros da Igreja eram judeus.

Os Dez Pontos abriram caminho para o diálogo bíblico, histórico, teológico e prático entre cristãos e judeus, assim como para uma nova compreensão por parte dos cristãos a respeito do lugar do povo judeu e de Israel na história da redenção.

A igreja católica

Em 1928, o Santo Ofício condenou pela primeira vez o ódio contra o povo judeu: “Por reprovar todos os ódios e animosidades entre os povos, a Sé Apostólica condena acima de tudo o ódio contra o povo judeu outrora escolhido por Deus, ódio que hoje se costuma comumente designar com o nome de antissemitismo”.

Em 1937 foi publicada a Carta Encíclica Mit Brennender Sorge, sobre “a situação da Igreja Católica no Reich Germânico”, confrontando o racismo nacional-socialista na Alemanha:

Quem com imprecisão panteística identifica Deus com o universo, materializando Deus no mundo e divinizando o mundo em Deus, não pertence aos verdadeiros fiéis. Nem é tal quem, de acordo com uma pretensa concepção pré-cristã do antigo germanismo, coloca em lugar do Deus pessoal o fado sinistro e impessoal, negando a sabedoria divina e sua providência, a qual […] tudo dirige a um bom fim. Um tal homem não pode pretender ser enumerado entre os verdadeiros crentes. Se a raça e o povo, se o Estado e uma sua determinada forma, se os representantes do poder estatal ou outros elementos fundamentais da sociedade humana possuem, na ordem natural, um posto essencial e digno de respeito — quem, no entanto, os destaca desta escala de valores terrenos, elevando-os à suprema norma de tudo, também dos valores religiosos, e divinizando-os com culto idólatra, inverte e falsifica a ordem, criada e imposta por Deus, está longe da verdadeira fé em Deus e de uma concepção de vida conforme a ela. […] Somente espíritos superficiais podem cair no erro de falar de um Deus nacional, de uma religião nacional, e empreender a tola tentativa de captar nos limites de um só povo, na estreiteza de uma só raça, Deus, Criador do mundo, rei e legislador dos povos, diante de cuja grandeza as nações são pequenas como gotas de água que caem dum balde.

A Declaração Conciliar Nostra Aetate, de 1965, sublinha que no Antigo Testamento se encontra a revelação divina, as promessas, o desígnio salvífico, e esta é a herança comum entre cristãos e judeus. Assim, a igreja só pode se compreender a partir do Antigo Testamento, e não há para a fé cristã dois planos da salvação: “A Igreja acredita que Cristo, nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os gentios, de ambos fazendo um só, em Si mesmo. […] O dever da Igreja […] é […] anunciar a cruz de Cristo como sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça”. Ademais, é refutada a teoria da substituição de Israel pela Igreja, ao recordar que “pertencem a Israel a adoção filial, a glória, a aliança, a legislação, o culto de Deus e as promessas, bem como os patriarcas (Rm 9,4-5)”. Ainda que “os judeus, em grande número, não aceitaram o Evangelho”, são perpetuamente “amados” por Deus, porque “Ele não se arrepende dos dons e da vocação” concedidos a Israel. Portanto, o povo de Israel preserva hoje seu lugar no plano de Deus e recebeu dons irrevogáveis. Também é refutada a acusação de deicídio feita aos judeus através dos séculos: “Se bem que os príncipes dos judeus e alguns de seus seguidores insistiram na morte de Cristo, aquilo que se perpetrou na Sua Paixão não pode […] ser imputado a todos os judeus que então viviam, nem aos de hoje”. E “os judeus […] não devem ser apresentados como se fossem condenados por Deus, nem amaldiçoados, como se isso decorresse das Sagradas Escrituras”.

Assim, “a Igreja, […] lembrada do comum patrimônio com os judeus, […] impelida pelo santo amor evangélico, deplora os ódios, as perseguições, as manifestações antissemitas, em qualquer tempo e por qualquer pessoa, dirigidas contra os judeus”.

Nós recordamos: uma reflexão sobre a Shoah foi publicada em 1998, admitindo a participação de católicos nas manifestações antijudaicas e demais “sofrimentos do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial”. Afirma que a Igreja “encoraja seus filhos e filhas a purificarem seus corações mediante o arrependimento pelos erros e infidelidades do passado”, mas também os convoca “a examinar-se sobre a responsabilidade que também têm pelos males do nosso tempo”. Em seguida, diz que o Holocausto foi uma “tragédia que jamais poderá ser esquecida”, um “horrível genocídio”, um dos “principais dramas […] deste século, um fato que ainda hoje nos diz respeito”, “a obra de um típico regime moderno neopagão [… que] não hesitou em opor-se à Igreja perseguindo também os seus membros”. Portanto, “é justo que a Igreja assuma com maior consciência o peso do pecado de seus filhos, recordando todas as circunstâncias em que […] eles se afastaram do espírito de Cristo e de seu Evangelho, oferecendo ao mundo, em vez do testemunho de uma vida inspirada nos valores da fé, o espetáculo de modos de pensar e agir que eram verdadeiras formas de anti-testemunho e escândalo”. E, ao fim, “deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a pessoa que promoveu isso contra os judeus”. Como Bento XVI anelou em 2010, “possam essas chagas [do antissemitismo e do antijudaísmo] sararem definitivamente!”

A exortação Evangelii gaudium, de 2013, faz afirmações pertinentes:

Um olhar muito especial é dirigido ao povo judeu cuja Aliança com Deus nunca foi revogada porque os ‘dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis’ (Rm 11,29). A Igreja, que partilha com o Judaísmo uma parte importante das Escrituras Sagradas, considera o povo da Aliança e a sua fé uma raiz sagrada da própria identidade cristã (cf. Rm 11,16-18). […] Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer tesouros de sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra divina. Por isso, a Igreja também se enriquece quando recolhe os valores do Judaísmo. […] Embora algumas convicções cristãs sejam inaceitáveis para o Judaísmo e a Igreja não possa deixar de anunciar Jesus como Senhor e Messias, há uma rica complementaridade que nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra, bem como compartilhar muitas convicções éticas e a preocupação comum pela justiça e o desenvolvimento dos povos.

O DEVER DA MEMÓRIA: SHOAH NUNCA MAIS!

Muitos cristãos ajudaram a salvar o maior número possível de judeus na Segunda Guerra Mundial. Por essa razão foram honrados pelo Estado de Israel, considerados “Justos entre as Nações”, no memorial Yad Vashem, em Jerusalém: a poliglota brasileira Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, o cônsul português Aristides de Sousa Mendes, o industrial alemão Oskar Schindler, o jurista alemão Hans von Dohnanyi, o padre polonês Maximilian Kolbe, o diplomata sueco Raoul Wallenberg, o diplomata japonês Chiune Sugihara, o arcebispo grego Damasceno de Atenas, o espião inglês Frank Foley e a escritora holandesa Corrie Ten Boom, entre tantos outros.

Portanto, é importante que cristãos e judeus prossigam na aproximação e no entendimento recíproco, para que se evitem preconceitos, sejam fraternos e avancem na contribuição única que têm oferecido ao mundo. E se opondo juntos a toda forma de racismo, ódio, antissemitismo e antissionismo. Ficar ao lado dos judeus e de Israel, o único país democrático em todo o Oriente Médio, não significa legitimar tudo o que o governo israelense faz. De acordo com McDermott:

Como qualquer outro país, o Estado de Israel não é perfeito. Ele tem seus problemas. Como é multirracial e multirreligioso, há conflitos entre raças e religiões. […] Sabemos que ele está longe de ser perfeito. Contudo, é muito melhor do que qualquer outro Estado do Oriente Médio no tocante à concessão de liberdades e de direitos a judeus e […] a não judeus. Ele merece e precisa de apoio somente por essa razão. […] Ao mesmo tempo, ainda que o povo de Israel, o povo da aliança, e o Estado de Israel não sejam uma coisa só, eles se acham entrelaçados de um modo complexo. O Estado não pode existir sem seu povo, e o povo da aliança não pode sobreviver ou florescer sem o Estado. Ele protege as pessoas, e as pessoas — embora nem todos sejam judeus religiosos — sustentam o Estado. Um sem o outro é algo impensável e impossível.

Assim, defender os judeus e a Israel é, à luz da Escritura Sagrada e da tradição cristã, um chamado que deve ser obedecido pelos cristãos.

Os cristãos professam fé no Senhor Jesus como o Messias, o Filho de Deus e o único Salvador. Também devem reconhecer o amor inquebrantável e constante de Deus por seu povo escolhido, Israel. Como João Paulo II afirmou, em 2004, diante do Rabino-Chefe de Roma:

Nós saudamos-vos como nossos ‘irmãos prediletos’ na fé de Abraão, nosso patriarca. […] Paulo, escrevendo aos Romanos (cf. Rm 11,16-18), falava da raiz santa de Israel, sobre a qual os pagãos são inseridos em Cristo; ‘os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis’ (Rm 11,29) e vós continuais a ser o povo primogénito da Aliança.

E resumiu Leslie Allen: “Visto que […] Deus [é] imutável não toma de volta um presente nem cancela um chamado”. Assim, a esperança cristã é logo “chegue a plenitude dos gentios”, quando a raiz santa de Israel será visitada e concederá sua seiva, porque, como disse o Senhor Jesus, “a salvação vem dos judeus” (Jo 4,22).

Em nosso tempo o antissemitismo tem sido instilado por partidos de extrema-esquerda e grupos religiosos islamitas, aliciando até mesmo cristãos. Parece que, tragicamente, o ódio antijudaico e os preconceitos contra Israel aumentarão e continuarão se espalhando por todo o Ocidente e Oriente Médio. Mas a palavra da Escritura é que “os dons e o chamado de Deus [para Israel] são irrevogáveis” (Rm 11,29). Quando os cristãos desta geração estiverem, no Dia do Juízo, diante do maior judeu da história, o israelita perfeito, o único Messias, o Senhor Jesus, descendente de Davi e Filho de Deus com poder, que ressuscitou dos mortos (Rm 1,3-4), poderão dizer que ofereceram o seu melhor em prol “da raiz e da seiva da oliveira” (Rm 11,17), o povo de Israel?

Deus de Abraão, Isaac e Jacob,
ouvi o clamor dos aflitos, dos amedrontados e dos desesperados;
enviai a vossa paz sobre esta Terra Santa, sobre o Médio Oriente
e sobre toda a família humana;
estimulai os corações de todos aqueles que invocam o vosso nome,
a percorrer humildemente o caminho da justiça e da compaixão.

‘O Senhor é bom para aqueles que nele confiam,
para a alma que O procura’ (Lm 3, 25)!

(Oração de Bento XVI diante do Muro Ocidental de Jerusalém, 2009)

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[1] Publicado originalmente no jornal Gazeta do Povo, em 17 de maio de 2021, em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/franklin-ferreira/um-testemunho-cristao-contra-o-antissemitismo/. Republicado com autorização. Uma versão revisada, ampliada e documentada desse ensaio será publicada como livro em breve por Edições Vida Nova.

1 COMENTÁRIO

  1. Um texto que podemos chamar de “mais do mesmo”.
    Uma propaganda que o ocidente vive imerso há mais de 2000 anos. Clara , extensa e deliberada defesa de atitudes indolentes pelos cristãos, perante atos criminosos ou delinquentes dos judeus, como se estes fossem sempre as vítimas, os de boa-fé, os justos.
    Este é o mote e o grande cuidado que os “Donos do Mundo” fazem para buscar o domínio político e financeiro mundial – Plutocracia – desde tempos egípcios até hoje. Todo o resto é sofisma.

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