
Nicholas Thomas Wright, popularmente conhecido como N. T. Wright, é amplamente reconhecido como um dos principais estudiosos do Novo Testamento na atualidade, com contribuições importantes para a teologia cristã. Como anglicano, ele se destacou por seu profundo estudo da teologia de Paulo, sendo conhecido por suas análises detalhadas das Escrituras e pela maneira como conecta esses textos a questões culturais e teológicas contemporâneas. Wright já ocupou posições de destaque, como bispo de Durham, entre 2003 e 2010, e também em renomadas instituições acadêmicas, incluindo a St Mary’s College, da Universidade de St. Andrews, entre 2010 e 2019, e o Wycliffe Hall, da Universidade de Oxford, a partir de 2019. Autor de mais de 70 obras, sua série “Origens cristãs e a questão de Deus” é amplamente considerada como uma referência essencial para estudiosos e teólogos. O terceiro volume, A ressurreição do Filho de Deus, é considerado por muitos clérigos e teólogos como uma obra cristã essencial sobre a ressurreição de Jesus. O quarto volume, Paulo e a fidelidade de Deus, é aclamado como sua magnum opus.
Apesar de suas abordagens inovadoras em algumas áreas teológicas,[1] Wright permanece firmemente enraizado na tradição cristã clássica em questões morais. Uma dessas questões é a homossexualidade, um tema que tem gerado intensos debates dentro e fora da Igreja cristã. Wright argumenta que as Escrituras oferecem uma visão clara sobre a complementaridade entre homem e mulher como parte essencial do desígnio criacional de Deus, refletindo tanto a ordem da criação quanto o mistério redentor da união entre Cristo e sua Igreja. Por meio de entrevistas, artigos e comentários bíblicos, ele apresenta uma compreensão robusta e coerente, enraizada na narrativa bíblica e na tradição cristã.
Este ensaio explora as principais contribuições de N. T. Wright sobre o tema da homossexualidade, com base em seus escritos e pronunciamentos públicos. Ao abordar sua perspectiva, busca-se não apenas compreender seu pensamento, mas também considerar os desafios e as implicações para a fé cristã em um mundo cada vez mais marcado pela tensão entre a tradição e a contemporaneidade. A reflexão proposta aqui é um convite a engajar-se com a profundidade teológica de Wright e a revisitar o que significa viver de forma fiel à Palavra de Deus em nossos dias.
Homem e mulher criados à imagem de Deus
Em 2002, em um artigo compartilhado em uma conferência sobre o futuro do anglicanismo, em Oxford, ele escreveu:
É claro que qualquer um pode dizer, com base em meu argumento até agora, que eles consideram a distinção entre comportamento homossexual e heterossexual como um daqueles distintivos culturais que são irrelevantes ao evangelho; que o comportamento homossexual simplesmente faz parte de algumas culturas hoje e que a igreja deve respeitá-lo, honrá-lo e abençoá-lo. Você não ficará surpreso ao saber que não compartilho dessa opinião. Não sou um especialista em debates atuais e recomendo dois livros esplêndidos: de Richard Hays, The Moral Vision of the New Testament, e de Robert Gagnon, A Bíblia e a prática homossexual: textos e hermenêutica. Mas talvez eu possa, como especialista de longa data na carta [de Paulo] aos Romanos, dar minha pequena contribuição.
A denúncia de Paulo da prática homossexual em Romanos 1 é bem conhecida, mas não tão bem compreendida, particularmente em relação ao seu lugar no argumento como um todo. Muitas vezes é descartada como se simplesmente disparasse alguns raios de estilo judaico contra alvos pagãos típicos; e é normalmente considerada como lidando apenas com a escolha deliberada de indivíduos heterossexuais de abandonar o uso normal [de seu corpo] e se entregar a paixões alternativas. Costuma-se dizer que Paulo está descrevendo algo bem diferente do fenômeno que conhecemos hoje, por ex., nas grandes cidades ocidentais.
Isso é enganoso. Primeiro, Paulo não está falando principalmente sobre indivíduos neste ponto, mas sobre toda a raça humana. Ele está expondo Gênesis 1-3 e olhando para a raça humana como um todo, então aqui ele está categorizando a grande abrangência da história humana como um todo – não, é claro, que qualquer indivíduo escape desse julgamento, como [Romanos] 3.19 em diante deixa claro. Em segundo lugar, o ponto de seu destaque de feminino e masculino se afastando do uso natural para o antinatural surge diretamente do texto que é seu subtexto, aqui e frequentemente em outros lugares: pois em Gênesis 1 é claro que macho e fêmea foram criados como portadores da imagem de Deus. É claro que o fator masculino e feminino não é específico da humanidade; o princípio de ‘masculino e feminino’ perpassa grande parte da criação. Mas os humanos foram criados para portar a imagem de Deus e receberam uma tarefa, de serem frutíferos e se multiplicarem, para cuidar do jardim e nomear os animais. O ponto de Romanos 1 como um todo é que quando os seres humanos se recusam a adorar ou honrar a Deus, o Deus que os criou à sua imagem, sua humanidade entra em modo de autodestruição; e Paulo vê claramente o comportamento homossexual como, em última análise, uma forma de desconstrução humana. Ele não está dizendo que todos que descobrem instintos homossexuais escolheram cometer idolatria e escolheram o comportamento homossexual como parte disso; em vez disso, ele está dizendo que em um mundo onde homens e mulheres se recusam a honrar a Deus, esse é o tipo de coisa que você encontrará.[2]
Uma ruptura na comunhão anglicana
Em dezembro de 2005, N. T. Wright anunciou à imprensa, no dia em que aconteceram as primeiras cerimônias de união civil entre pessoas do mesmo sexo na Inglaterra, que ele provavelmente tomaria medidas disciplinares contra qualquer clérigo que se registrasse como estando numa união civil com uma pessoa do mesmo sexo ou qualquer clérigo que abençoasse tais uniões.[3]
Ele também foi membro sênior da Igreja da Inglaterra da Comissão de Lambeth, criada para lidar com as controvérsias surgidas após a Igreja Episcopal nos Estados Unidos autorizar clérigos a celebrar liturgias para abençoar pessoas em relacionamentos homossexuais. Escrevendo no The Times, em julho de 2009, ele afirmou que a decisão era uma “ruptura clara com o resto da Comunhão Anglicana”. Ele argumentou que:
O paganismo, tanto antigo quanto moderno, sempre considerou essa ética e essa crença como ridículas e inacreditáveis. Contudo, o testemunho bíblico está longe de se limitar, como sugere o estridente editorial do Times de ontem, a alguns versículos de São Paulo. A severa denúncia de Jesus contra a imoralidade sexual certamente teria transmitido aos seus ouvintes uma rejeição clara e implícita de todo comportamento sexual fora da monogamia heterossexual. Isso não é uma questão de ‘resposta privada às Escrituras’, mas sim do ensinamento uniforme de toda a Bíblia, do próprio Jesus e de toda a tradição cristã.
O apelo à justiça como uma forma de resolver o dilema ético a favor da inclusão de homossexuais ativos no ministério cristão simplesmente pressupõe a conclusão. Ninguém tem o direito de ser ordenado: isso é sempre um dom de pura e imerecida graça. Além disso, esse apelo distorce gravemente a própria noção de justiça, não apenas na tradição cristã de Agostinho [de Hipona], Tomás de Aquino e outros, mas também na discussão filosófica mais ampla, de Aristóteles a John Rawls. Justiça nunca significa ‘tratar todos da mesma maneira’, mas ‘tratar as pessoas de maneira apropriada’, o que envolve fazer distinções entre diferentes pessoas e situações. Justiça nunca significou ‘o direito de expressar ativamente qualquer e todo desejo sexual’.[4]
Ainda em julho de 2009, ele emitiu um comunicado, dizendo:
Alguém, mais cedo ou mais tarde, precisa esclarecer melhor (por mais exaustivo que isso possa ser) a diferença entre (a) a ‘dignidade humana e a liberdade civil’ daqueles que possuem instintos homossexuais e similares e (b) seus ‘direitos’, como cristãos praticantes, quanto mais ordenados, de expressar fisicamente esses instintos. Como o Papa [Bento XVI] apontou, a linguagem dos ‘direitos humanos’ foi rebaixada no discurso público para tornar-se um apelo especial de cada grupo de interesse. A Igreja nunca reconheceu que instintos sexuais poderosos, que quase todos os seres humanos possuem, geram um ‘direito’ evidente de que esses instintos recebam expressão física. De fato, a Igreja sempre insistiu que o autocontrole é parte do ‘fruto do Espírito’. Todos são chamados à castidade e, dentro dela, alguns são chamados ao celibato; mas um chamado ao celibato não é o mesmo que descobrir que se tem um impulso sexual fraco ou insignificante. O chamado ao autocontrole da castidade é para todos: tanto para os heterossexuais, que, casados ou não, são regularmente e intensamente atraídos por muitos parceiros potenciais diferentes, quanto para aqueles com instintos diferentes [como os homossexuais].[5]
O significado bíblico do casamento
Em 2014, numa entrevista concedida no lançamento de seu livro Surpreendido pelas Escrituras, foi feita a N. T. Wright a seguinte pergunta: “Um tópico que está faltando neste livro é a questão da sexualidade e, especificamente, como os cristãos devem abordar e lidar com a homossexualidade. Por que você optou por não abordar esse tema no livro? E, se você se sentir confortável, você pode oferecer uma breve visão sobre como você vê o ensino da Bíblia sobre esta questão tão aflitiva?” Sua resposta foi:
Não há surpresas sobre isso na Bíblia. Para os judeus, o comportamento homossexual não era um problema, exceto como parte de um todo maior ao qual Jesus se refere em termos bíblicos tradicionais. Para os não-judeus, como os alcançados por Paulo, era uma questão óbvia, já que todo tipo de expressão sexual possível era bem conhecido em cidades como Corinto e Roma (há uma crença popular atual de que os antigos não tinham conhecimento sobre relações homossexuais duradouras, mas isso é facilmente refutado pelas evidências literárias e arqueológicas).
O perigo, então, é pensarmos nas coisas nessa área como ‘regras’; para o judeu, se tratava de viver de acordo com a aliança, que era o meio de Deus resgatar a criação da confusão em que havia caído. Para Paulo, tratava-se de viver de acordo com a aliança renovada na e pela morte e ressurreição de Jesus, por meio da qual Deus havia lançado seu projeto de nova criação. As pessoas costumam sugerir que, como Paulo acreditava na graça, não na lei, todas as velhas regras foram eliminadas em uma nova era de ‘tolerância’, mas essa é uma visão superficial e trivial. Paulo (e todos os primeiros cristãos conhecidos por nós, através dos séculos) manteve a visão judaica: sem adoração de ídolos, sem sexo fora do casamento. E casamento, é claro, significava homem/mulher. Há muito mais a dizer sobre isso, mas isso é um começo. Não pretendo escrever mais sobre isso tão cedo; é complexo e (obviamente) contencioso e não produziria um livro curto. O capítulo de Richard Hays em The Moral Vision of the New Testament ainda é o melhor tratamento resumido [sobre o tema] disponível.[6]
A atual redefinição do significado de casamento
Em uma entrevista de 2014 concedida a J. John, do Philo Trust, foi perguntado: “Na sua opinião, quais são os maiores desafios para a Igreja e para a mensagem cristã à luz da atual legislação sobre a redefinição do casamento?” Segue a transcrição sem edição da resposta de N. T. Wright:
Obviamente, há grandes problemas, e não há como explicá-los todos esta noite. Eu quero dizer uma palavra sobre uma palavra. Quando alguém – grupos de pressão, governos, civilizações – muda repentinamente o significado de palavras-chave, você realmente deve ficar atento. Se você for a um dicionário alemão e abri-lo aleatoriamente, poderá ver várias palavras alemãs com um pequeno colchete dizendo ‘N.S.’, que significa nacional-socialista ou nazista. Os nazistas deram a essas palavras um certo significado. Na Rússia pós-1917 havia categorias inteiras de pessoas que eram chamadas de ‘ex-pessoas’, porque pelo ditame comunista elas haviam deixado de ser relevantes para o Estado, e uma vez que você as chama de ‘ex-pessoas’, era extremamente fácil despachá-las para algum lugar e assassiná-las.
Da mesma forma, havia uma carta no Times Literary Supplement algumas semanas atrás dizendo que, quando falamos de suicídio assistido, não deveríamos usar palavras como ‘suicídio’, ‘matar’ e esse tipo de palavras porque elas implicam que você não deveria fazê-lo. Considerando que agora nossa civilização está afirmando que talvez haja razões para isso acho esse tipo de coisa assustadora, a tentativa de mudar uma ideologia dentro de uma cultura mudando o idioma.
Agora, a palavra ‘casamento’, por milhares de anos, e transculturalmente, significou homem e mulher. Às vezes é um homem e mais de uma mulher. Ocasionalmente, foi uma mulher e mais de um homem. Existe poliandria, bem como poligamia em algumas sociedades em algumas partes da história, mas [casamento] sempre foi masculino e feminino. Simplesmente dizer que você pode ter um casamento mulher-e-mulher ou um casamento homem-e-homem é mudar radicalmente aquilo por causa da condição de masculinidade e feminilidade. Eu diria que sem quaisquer pressuposições cristãs particulares, apenas transculturalmente, assim é.
Com pressuposições cristãs ou judaicas, ou mesmo muçulmanas, então se você acredita no que diz em Gênesis 1 sobre Deus criando o céu e a terra – e os binários em Gênesis são tão importantes: o céu e a terra, o mar e a terra seca, e assim por diante, e você conclui com masculino e feminino. É tudo sobre Deus fazendo pares complementares que devem operar juntos. A última cena da Bíblia é o novo céu e a nova terra, e o símbolo disso é o casamento de Cristo e sua igreja. Não são apenas um ou dois versos aqui e ali que dizem isso ou aquilo. É toda uma narrativa que trabalha com essa complementaridade, de modo que um casamento homem-e-mulher é um indicador ou um sinal sobre a bondade da criação original e a intenção de Deus para os eventuais novos céus e nova terra.
Se você diz que o casamento agora significa algo que permitiria outras configurações, o que você está dizendo é que, quando nos casamos com um homem e uma mulher, não estamos fazendo nada disso. Este é apenas um arranjo social conveniente e arranjo sexual e aí está… continue com isso. Não é que isso seja o rebaixamento do casamento, é algo que claramente já foi perdido há algum tempo e que agora está aparecendo acima do parapeito. Se é isso que você pensou que o casamento significava, então claramente não fizemos um bom trabalho na sociedade como um todo e na igreja em particular em ensinar sobre o que um casamento maravilhoso e misterioso deveria ser. Simplesmente nesse nível, acho que é um absurdo. É como um governo votando que preto deveria ser branco. Desculpe, você pode votar se quiser, pode aprovar por maioria total, mas isso não vai mudar a realidade.
A outra coisa que acho preocupante e que fiquei impressionado esta semana – isso é uma lembrança, e você pode não concordar com o julgamento que a precede – mas onze anos atrás, não, na verdade dez anos atrás, quase agora, estávamos quase indo à guerra contra o Iraque. Sentei-me na minha cozinha e ouvi Tony Blair fazer o grande discurso sobre como deveríamos ir e bombardear o Iraque. Foi um dia antes de eles realmente começarem. Achei na época e ainda acho que aquele discurso estava absolutamente cheio de furos. Estava implorando por perguntas, estava perdendo pontos, estava perdendo a lógica. No entanto, todos os jornais estavam dentro, quase todos no Parlamento estavam dentro, com apenas algumas pessoas ranzinzas [contra], e lembro-me de pensar na época: isso é absolutamente louco. Não deveríamos estar fazendo isso e há todos os tipos de “e se” que não pensamos. Devo dizer que, nos últimos dez anos, não vi nenhuma razão para mudar esse julgamento.
Sinto algo do mesmo humor esta semana. Toda a imprensa está do lado, a maior parte do Parlamento está do lado, e as pessoas estão dizendo – entenda isso – que, a menos que você apoie isso, você está do lado errado da história. Me desculpe. Você viu o University Challenge ontem à noite? Houve uma boa pergunta: Alguém mencionou – quem foi que disse em 1956: ‘A história está do nosso lado e iremos te enterrar’? Um dos competidores acertou a resposta: foi Nikita Khrushchev. Quando as pessoas afirmam: ‘Estamos seguindo o fluxo da história’, isso é apenas uma cortina de fumaça retórica. Então, é onde estou.[7]
Desejos impuros, corpos desonrados
Em seu comentário sobre a carta do apóstolo Paulo aos Romanos, capítulos 1 a 8, da série Paulo para Todos,[8] Wright fez as seguintes afirmações sobre a compreensão do apóstolo, em Romanos 1.24-27:
Por toda essa passagem, ele tem em mente um trecho específico da Bíblia: Gênesis 1 a 3. Talvez você pense que, para descrever as maneiras pelas quais os seres humanos se opuseram aos propósitos de Deus, teria sido melhor começar por algo como os Dez Mandamentos. Bem, Paulo retornará a eles mais adiante (especificamente em 13.8-10). Mas, como veremos, existem problemas com relação à lei de Israel que não fazem dessa escolha a mais adequada para seus objetivos no momento. Ele quer delinear o caminho pelo qual os seres humanos violaram não apenas uma ‘lei’ dada em algum ponto da história humana, como também a própria estrutura da ordem criada em sua essência.
Paulo tem certeza de que essa estrutura existe, ou seja, de que a criação não é aleatória nem arbitrária. Ao tomar Gênesis 1 como a declaração teológica básica, ele vê os seres humanos como criados à imagem de Deus e recebendo responsabilidade sobre a criação não humana. Os seres humanos são ordenados a frutificar: eles devem celebrar, em sua complementaridade ‘macho e fêmea’, o abundante potencial gerador de vida do bom mundo de Deus. E são encarregados de trazer a ordem de Deus ao mundo, atuando como mordomos do jardim e de tudo o que se encontra nele. Machos e fêmeas são muito diferentes, e foram projetados para trabalhar juntos a fim de produzir, com Deus, a música da criação. Algo de muito profundo dentro da estrutura do mundo reage à união da parte com sua contraparte, algo que não pode ser alcançado pela mera junção da parte com a própria parte.
Isso ajuda a explicar o fato, de outro modo confuso, de Paulo ter utilizado, como primeiríssimo exemplo do que vê como a corrupção da vida humana, a prática das relações homossexuais. Afinal, pensamos: por que ele teria escolhido justamente esse comportamento específico, colocando-o no topo da lista? A resposta não é simplesmente, como muitos sugerem, porque, como judeu, ele sentiria especial repulsa por esse comportamento – comportamento que muitas culturas pagãs adotavam e até mesmo celebravam, mas que o judaísmo sempre proibiu. Tampouco pelo fato de o próprio imperador Nero ser conhecido por entregar-se a práticas homossexuais e a diversas práticas bizarras heterossexuais, de modo que, assim, Paulo teria desejado apontar o dedo contra o sistema imperial e sua essência imoral apodrecida. Essa pode ter sido uma pequena parte de sua intenção, mas, com certeza, não é o ponto central.
Nem mesmo, como alguns sugerem é o caso de, no mundo antigo, as relações homossexuais serem práticas normais da prostituição cultual ou uma questão de pessoas mais velhas explorando as mais jovens, ainda que ambas as práticas fossem um tanto comuns. Os ‘casamentos’ homossexuais não eram desconhecidos, como se sabe do exemplo do próprio Nero. Platão apresenta uma extensa discussão do amor sério e duradouro que pode haver entre dois homens. O mundo moderno atribuiu vários nomes a esse fenômeno (‘homossexual’ ou ‘gay’; e sua contraparte feminina, ‘lésbica’). Esses rótulos imprecisos referem-se a uma ampla faixa de emoções e ações, sobre as quais seria ingênuo imaginar que só se tornaram conhecidas nas últimas gerações. Desse modo, o ponto levantado por Paulo não é simplesmente que ‘nós, judeus, não aprovamos isso’, ou que ‘relacionamentos dessa natureza são sempre desiguais e exploradores’. Seu ponto é o seguinte: ‘Não foi para isso que homens e mulheres foram criados’. Ele, igualmente, não está sugerindo que todos que se sentem sexualmente atraídos por pessoas do mesmo sexo, ou que todos que se envolvem em relações homossexuais, chegaram a isso por cometerem atos específicos de idolatria. Nem supõe que todos os que chegaram a esse ponto o fizeram por uma escolha deliberada de desistir das possibilidades heterossexuais. Ler o texto desse modo reflete um individualismo moderno, e não a perspectiva mais ampla e abrangente de Paulo. Antes, ele está falando da raça humana como um todo. O ponto que ele procura estabelecer não é o fato de ‘existirem alguns extremamente pervertidos por aí que praticam essas coisas revoltantes’, mas que ‘a existência dessas claras distorções do propósito ‘macho e fêmea’ do criador no mundo indica que a raça humana como um todo é culpada de uma idolatria capaz de distorcer a natureza humana’. Ele vê a prática de relações entre pessoas do mesmo sexo como um sinal de que o mundo dos humanos, de maneira geral, está fora de ordem.
O fato de estar fora de ordem, afirma ele, é o resultado de Deus permitir que as pessoas sigam seus impulsos sexuais desenfreados aonde quer que eles as conduzam – uma vez que perderam a conexão com a verdade de Deus e, assim como Adão e Eva no jardim, deram ouvidos à voz da criatura, e não à voz de Deus (aparentemente, é isso que ele tem em mente no v. 25). Quando, mais tarde, ele descreve a fé que Abraão tinha e seus resultados (4.18-22), está mostrando, de forma deliberada, como os problemas do capítulo 1 foram desfeitos. com os seres humanos depositando sua confiança em Deus e voltando a dar glória a ele. Somente quando conseguimos enxergar esse contexto mais amplo é que podemos vislumbrar os profundos pontos subjacentes que Paulo levanta. Somente assim, é possível evitar uma leitura superficial desse texto, o que, infelizmente, tem feito do debate de um tema já tão complexo algo muito mais difícil do que já é.
Paulo repete: ‘Deus os entregou’ (v. 24 e 26, e mais uma vez no v. 28). Quando Deus dá responsabilidade aos seres humanos, ele está falando sério. As escolhas que fazemos, não apenas individualmente, mas também como espécie, são escolhas cujas consequências Deus, para nosso total espanto, permite-nos explorar. Ele nos alerta, dá-nos oportunidades de nos arrepender e de mudar o curso. Entretanto, se escolhermos a idolatria, poderemos esperar que nossa humanidade, pouco a pouco, venha a se desintegrar. Quando você adora o Deus em cuja imagem foi criado, refletirá essa imagem de forma cada vez mais brilhante e se tornará mais plena e verdadeiramente humano. Quando você (e, por você, quero dizer a raça humana como um todo, e não apenas os indivíduos) adora qualquer outra coisa que não o Deus vivo, algo que seja em si mesmo outro mero objeto criado e, dessa forma, sujeito à decomposição e à morte, reduz a imagem que carrega em si, sua humanidade essencial.
Essa, obviamente, não é a palavra final sobre o tema da homossexualidade. Paulo escreveu apenas dois versículos a esse respeito até aqui, o que dificilmente seria o suficiente para deduzirmos algo mais de qualquer posição mais completa que ele possa ter declarado. Mas, além da polêmica e da retórica que sempre giram em torno desse tema, deparamos, aqui e em outras partes do Novo Testamento, não com um conjunto arbitrário de regras, mas com uma teologia profunda sobre o que significa ser genuinamente humano. E também com uma advertência a respeito da tendência aparentemente infinita dos seres humanos ao autoengano.
Herdando ou não o Reino de Deus
Em seu comentário sobre a primeira carta do apóstolo Paulo aos Coríntios, da série Paulo para Todos,[9] Wright fez as seguintes considerações sobre 1Coríntios 6.9-11:
Nos dias de hoje, muitos beberam tão profundamente na cultura do ‘vale-tudo’ que acham que a mera sugestão de haver restrição moral no comportamento sexual é algo surpreendente e até mesmo ofensivo. Sim, como todo pastor sabe, a devastação humana que resulta da promiscuidade sexual, especialmente quando envolve a quebra das promessas de casamento, é muito mais profunda e permanente.
Os termos usados por Paulo aqui [em 1Co 6.9] incluem duas palavras [gregas, malakoi e arsenokoitai,] que têm sido alvo de muitos debates, mas que os especialistas já determinaram que claramente referem-se à prática homossexual masculina. Os dois termos se referem, respectivamente, ao parceiro passivo ou submisso, e ao parceiro ativo ou agressivo. Paulo coloca as duas atitudes dentro das categorias de comportamento inaceitável. Assim como tudo na lista, essas são práticas às quais algumas pessoas se sentem fortemente inclinadas a se envolver. E isso é tão verdadeiro que, em nossos dias (e isso é uma novidade dos últimos cem anos mais ou menos), temos assistido ao crescimento do uso das palavras ‘homossexual’ ou ‘gay’ como rótulos de identificação, o sinal de uma ‘identidade’ escondida que pode ser ‘descoberta’ ou ‘reconhecida’. O testemunho bíblico e o exercício pastoral sugerem que isso é fortemente enganoso – assim como é a ideia de que todo ser humano precisa da experiência de atividade sexual, seja de que forma for, para se sentir completo e plenamente vivo. Paulo, é claro, não está sugerindo que o pecado sexual é pior do que qualquer outro – embora, levando em conta o papel central que a sexualidade tem na vida humana, não devêssemos tratar isso com displicência. Mas o ponto que Paulo está enfatizando é que esse ou qualquer outro comportamento distorcido é o que diminui a plena humanidade que Deus espera ver florescer em suas criaturas, e que será completa no definitivo reino de Deus (1Co 6.10). Repetindo o que já dissemos, não é que Deus tenha uma lista arbitrária de regras e que, se você quebrá-las, estará fora. Ao contrário, é que seu reino será habitado por seres humanos que refletem completamente sua imagem; e comportamentos no tempo presente que deturpam e descaracterizam essa imagem conduzem na direção oposta. Todo o Novo Testamento adverte para a possibilidade real de isso acontecer.
Mas também todo o Novo Testamento anuncia que não precisa ser assim – porque o próprio Deus providenciou a maneira de as pessoas abandonarem seu passado, e certamente seu presente, e adentrarem o futuro. Você pode ser lavado e tornado limpo, independentemente do que aconteceu no passado. Você pode ser feito alguém do povo especial de Deus, o que quer que seja no presente. Você pode ser ‘justificado’, declarado, aqui e agora, parte do verdadeiro povo de Deus. E isso acontece ‘no nome do Senhor, o Rei Jesus, e no espírito do nosso Deus’. A maneira como Paulo fala a esse respeito provavelmente expressa a prática inicial do batismo cristão. O ponto é, quando você se torna um membro da família cristã, tendo o batismo como sinal e a fé como uma realidade interior, recebe uma nova identidade, e é iniciado em um novo estilo de vida.
É claro que Paulo sabe que essa nova identidade e esse novo estilo de vida não funcionam automaticamente. É por isso que ele está escrevendo essa carta! Mas, quando a fé está presente e o batismo já aconteceu, o caminho está aberto para um estilo de vida diferente, uma maneira completamente nova de ser humano. É, então, responsabilidade de cada cristão, com a ajuda de toda a comunidade, reconhecer as maneiras como o engano do pecado tem distorcido seu pensamento e comportamento, e encontrar o caminho na direção da nova vida com Deus.
Julgamento para jogos sexuais
Em seu comentário sobre Cartas para Todos,[10] Wright fez as seguintes considerações sobre Judas 7:
Judas […] lembra seus leitores de que Deus pode julgar, e julga e condena, os que se permitem rebelar-se contra seus caminhos. […] Aconteceu […] em uma história conhecida em Gênesis, com as cidades de Sodoma e Gomorra, cuja avidez em usar visitantes inesperados para jogos sexuais (Gênesis 19) era aparentemente típica da vida regular deles – e sua terrível punição também era vista como o destino reservado a outros pecadores graves (v. 7).
Cristãos contraculturais
Diante das reflexões apresentadas, torna-se evidente que a visão de N.T. Wright não se baseia em preconceitos ou interpretações culturais passageiras, mas na compreensão da ordem criacional estabelecida por Deus. A complementaridade entre homem e mulher, como refletida no relato de Gênesis, é para Wright um pilar teológico central que simboliza não apenas a união terrena, mas também o mistério espiritual do casamento entre Cristo e sua Igreja. Esta verdade transcende os debates contemporâneos, enraizando-se na narrativa bíblica como expressão da boa criação e da finalidade última de Deus para a humanidade.
A partir dessa perspectiva, um chamado se faz claro: a Igreja deve reafirmar sua responsabilidade de proclamar a verdade do Evangelho em amor, chamando todos ao arrependimento e à restauração da imagem de Deus em suas vidas. Tal postura não significa rejeição ou falta de compaixão para com aqueles que enfrentam lutas em sua sexualidade, mas um compromisso com a fidelidade às Escrituras e com a promoção de uma humanidade redimida, refletida na santidade e na comunhão com o Criador. Assim, a mensagem de N.T. Wright é um convite à contracultura: viver de acordo com o desígnio divino, mesmo em um mundo que insiste em redefinir o que Deus já estabeleceu na criação.[11]
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[1] As críticas à teologia de N.T. Wright concentram-se especialmente em sua interpretação da justificação e sua defesa da “Nova Perspectiva sobre Paulo”. Tem sido argumentado por teólogos como John Piper que Wright redefine a justificação como um conceito centrado na inclusão no povo de Deus e na vindicação escatológica, em vez de ser primariamente um ato forense em que a justiça de Cristo é imputada ao crente pela fé. E isso comprometeria a ênfase na suficiência da obra de Cristo para a salvação e na certeza da justificação presente. Além disso, sua leitura de Paulo, que enfatiza a oposição do apóstolo à exclusividade étnica judaica em vez de um sistema de salvação baseado em obras, é percebida por D. A. Carson como uma subestimação do problema universal do pecado e da necessidade de graça. Wright também é criticado por seu foco no papel presente da Igreja em participar na renovação do mundo, o que, para alguns, pode obscurecer a centralidade da obra redentora de Cristo e deslocar a ênfase para esforços humanos. Embora reconheçam suas contribuições, como a defesa da ressurreição de Jesus e o contexto histórico da teologia bíblica, críticos alertam que sua abordagem pode diluir ou modificar aspectos essenciais da teologia protestante, como a centralidade da justificação pela fé, o entendimento da imputação da justiça de Jesus e a relação entre Israel e a Igreja no plano redentor de Deus.
[2] “Communion and Koinonia: Pauline Reflections on Tolerance and Boundaries”, em: https://ntwrightpage.com/2016/07/12/communion-and-koinonia-pauline-reflections-on-tolerance-and-boundaries/. Infelizmente, em 2024, Hays abandonou a posição bíblica ortodoxa, o que foi celebrado, inclusive, na CNN. Cf. Robert A. J. Gagnon, “The Deepening of God’s Mercy through Repentance: A Critical Review Essay of The Widening of God’s Mercy: Sexuality within the Biblical Story”, em: https://www.thegospelcoalition.org/themelios/article/the-deepening-of-gods-mercy/. O livro notável de Gagnon, A Bíblia e a prática homossexual: textos e hermenêutica, foi publicado por Edições Vida Nova em 2021.
[3] “Gay vicar flouts partnership rule”. BBC News. 21 December 2005. Retrieved 11 November 2008: http://news.bbc.co.uk/1/hi/england/4548648.stm.
[4] “The Americans Know This Will End in Schism”, em: https://web-archive-org.translate.goog/web/20090801194047/http://www.timesonline.co.uk/tol/comment/columnists/guest_contributors/article6710640.ece?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tc.
[5] “Rowan’s Reflections: Unpacking the Archbishop’s Statement”, em: https://web.archive.org/web/20090802181228/http://www.anglicancommunioninstitute.com/2009/07/rowan%E2%80%99s-reflections-unpacking-the-archbishop%E2%80%99s-statement/.
[6] “Exclusive: N.T. Wright Speaks About His New Book!”, em: https://www.patheos.com/blogs/revangelical/2014/06/01/exclusive-n-t-wright-speaks-about-his-new-book.html. Sobre Hays, cf. a nota 2, acima.
[7] Cf. “N T Wright on Same-Sex Marriage”, em: https://www.youtube.com/watch?v=xKxvOMOmHeI. Cf. também: “N. T. Wright on Gay Marriage Nature and narrative point to complementarity”, by Matthew Schmitz, em: https://www.firstthings.com/blogs/firstthoughts/2014/06/n-t-wrights-argument-against-same-sex-marriage.
[8] Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2020, p. 38-41. Publicado originalmente em 2004.
[9] Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2020, p. 87-89. Publicado originalmente em 2004.
[10] Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2021, p. 223-224. Publicado originalmente em 2011.
[11] Até o momento, não há registros de comentários de N. T. Wright sobre a decisão de fevereiro de 2023 do Arcebispo de Canterbury, Justin Welby, de aprovar orações de bênção para casais do mesmo sexo. No entanto, como visto acima, Wright tem expressado consistentemente sua posição sobre a homossexualidade no contexto da fé cristã. Ele argumenta que as Escrituras oferecem uma visão clara sobre a complementaridade entre homem e mulher como parte essencial do desígnio criacional de Deus, refletindo tanto a ordem da criação quanto o mistério redentor da união entre Cristo e sua Igreja. Para seu mais recente posicionamento, em 4 de agosto de 2024, tratando de uma cultura imersa no culto à Afrodite, “a deusa do amor erótico”, cf: “Sex, LGBTQ+, Pre-Marital Relationships and Identity… Ask NT Wright ANYTHING!”, em: https://www.youtube.com/watch?v=l62zv8nrMCQ. De forma perceptiva, Wright conecta as confusões atuais sobre sexualidade e identidade com o ressurgimento do gnosticismo antigo. Sobre Welby, ele renunciou ao cargo de Arcebispo de Canterbury em novembro de 2024, após um relatório revelar falhas em sua gestão de mais de uma centena de casos de abuso sexual na Igreja da Inglaterra, ocorridos nas décadas de 1970 e 1980. Ele foi criticado por não ter tomado medidas adequadas, quando soube dos abusos, em 2013. O arcebispo de York, Stephen Cottrell, assumiu temporariamente a função, enquanto a Igreja busca por um novo arcebispo. A transição ocorre em um momento de desafios para a Igreja da Inglaterra, como a diminuição da fé religiosa e graves divisões internas por conta de sexualidade.