
Romanos 1.16-17:
Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego. Porque a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: “O justo viverá por fé”.
16Οὐ γὰρ ἐπαισχύνομαι τὸ εὐαγγέλιον δύναμις γὰρ Θεοῦ ἐστιν εἰς σωτηρίαν παντὶ τῷ πιστεύοντι Ἰουδαίῳ τε πρῶτον καὶ Ἕλληνι 17 δικαιοσύνη γὰρ Θεοῦ ἐν αὐτῷ ἀποκαλύπτεται ἐκ πίστεως εἰς πίστιν καθὼς γέγραπται Ὁ δὲ δίκαιος ἐκ πίστεως ζήσεται[1]
O presente texto visa analisar a passagem acima escrita, a saber, da epístola do apóstolo Paulo aos Romanos, bem como apresentar a discussão em relação ao tema central do livro de Romanos. “A carta de Paulo aos Romanos é profunda e completamente doutrinal: o ‘evangelho mais puro’, como Lutero o expressou” (MOO, 2023, p. 1). Além disso, é também “A quintessência e perfeição da doutrina salvífica” (ibidem) como expressou um puritano do século 17 chamado Thomas Draxe.
A epístola foi escrita com o objetivo de Paulo buscar apoio da igreja em Roma para ir a Espanha para pregar o evangelho (Rm 15.24), foi levada, provavelmente de Corinto, por Febe, uma diaconisa da igreja (Rm 16.1-2) e copiada por um amanuense de nome Tércio (Rm 16.22).
(…) Paulo escreveu sua Carta aos Romanos. Enquanto estava na Grécia, Paulo provavelmente ficou em Corinto (veja 2Co 13.1,10), onde possivelmente escreveu Romanos, o que é sugerido pelo fato de que Paulo recomenda aos romanos que recebam uma mulher, Febe, de Cencreia, cidade portuária adjacente a Corinto (Rm 16.1,2)” (MOO, 2023, p. 3).
A Carta de Paulo aos Romanos foi o livro bíblico que mais impactou a história da igreja, conforme registrado pelos manuais. Agostinho, Lutero, Calvino, Wesley, Barth e Stott, dentre outros, foram influenciados por essa carta ou a comentaram e Philip Melanchton, co-reformador alemão junto com Lutero, escreveu a sua Loci Communes (lugares comuns), a primeira teologia sistemática da reforma protestante, dentro dos moldes do livro de Romanos, onde os temas principais da carta se encontram (MELANCHTON, 2018, p. 15).
Quanto aos principais temas da carta, são estes, a saber: “(…) a continuidade do plano de salvação divino, o pecado e a necessidade dos seres humanos, a provisão de Deus para o problema do nosso pecado em Cristo, como ter uma vida de santidade e segurança em face do sofrimento e da morte” (MOO, 2023, p. 22)
O principal tema da carta é o evangelho. “Romanos é o resumo de Paulo do evangelho que ele prega” (MOO, 2023, p. 32). Toda a estrutura da carta envolve o evangelho que Paulo pregava.
Paulo inicia a carta com uma saudação evangélica (Rm 1.1-7), se apresentando primariamente como um servo (doulos), também traduzido por escravo, pela intenção de se apresentar como alguém de propriedade exclusiva de Jesus Cristo e como enviado de Deus para a pregação do evangelho entre os gentios. O termo “evangelho” aparece duas vezes na perícope e os termos “Jesus Cristo” e “Deus” aparecem quatro vezes, mostrando que Jesus Cristo em sua pessoa e obra redentora como constituição do evangelho e a ligação de Jesus Cristo com Deus, o Pai, pela filiação divina.
Nos versículos 8 ao 15 (Rm 1.8-15), o apóstolo Paulo intercede por meio de Jesus Cristo pelos cristãos e pela igreja em Roma, demonstrando sua expectativa em visitá-los, termo que ele usa duas vezes e também cita “vocês” (traduzido de duas formas diferentes no grego original) por nove vezes, mostrando que o interesse pela igreja e pelos irmãos está acima de seus próprios interesses em uma vida que glorifica a Deus por meio da pregação do evangelho entre os gentios.
A passagem em questão inicia com a conjunção “Pois” (do grego: gar), conectando com o versículo anterior (15), onde o apóstolo Paulo afirma estar de prontidão para pregar o evangelho em Roma. Ele “desejava intensamente pregar o evangelho em Roma (MOO, 2023, p. 78).
“No versículo anterior, o apóstolo afirmara que, para alcançar a amplitude máxima de sua resolução e propósito, estava preparado para anunciar o evangelho em Roma. Nos versículos 16 e 17, Paulo apresenta o motivo para essa determinação” (MURRAY, 2018, p. 1058)
Mas talvez a razão mais importante para a formulação negativa de Paulo seja a sua percepção de que muitos romanos veem o evangelho “dele” com algum grau de suspeita [uma vez que a igreja era formada predominantemente por gentios, mas havia judeus convertidos ali também]. Como “apóstolo dos gentios”, Paulo tinha o papel fundamental e controverso de trazer gentios para o reino independente da Lei. Sua defesa apaixonada de um evangelho livre da Lei frequentemente encontrava resistência, e há boas razões em Romanos para justificar nossa opinião de eu ao menos alguns cristãos romanos estavam entre os opositores (esp. 3.8; 9.1-5; 11.13-15) (MOO, 2023, p. 79).
O evangelho como poder de Deus
“A forma negativa “não me envergonho [de Cristo]” pode ser entendida como “tenho orgulho” do evangelho. O apóstolo enaltece os méritos do evangelho, mas insinua que o evangelho é desprezível ao mundo” (FERREIRA, 2000, p. 14). Esse evangelho não é sinais e nem sabedoria humana, por isso Paulo se regozija com a beleza e a dignidade do evangelho, que não é seu, mas é de Deus, “cujo conteúdo é Jesus Cristo, “designado Filho-de-Deus-em-poder” (v. 4), medeia “o poder de Deus que conduz à salvação” (MOO, 2023, p. 79).
Esse poder não é de acordo com o mesmo sentido que as tradições filosóficas gregas, mas um poder “de acordo com o ensino do AT sobre um Deus pessoal cujo poder é único e que manifesta esse poder libertando (Êx 9.16; Sl 77.14,15) e julgando (Jr 16.21) o seu povo” (ibidem):
Há um contínuo e progressivo desdobramento de motivos, neste texto. O apóstolo revela-nos, em primeiro lugar, por que estava pronto a pregar o evangelho em Roma — ele não se envergonhava do evangelho. Em seguida, nos mostra a razão para isto: o evangelho é “o poder de Deus para a salvação”. Então, por último, ele nos diz por que o evangelho é o poder de Deus para a salvação — porque nele “a justiça de Deus se revela”. Quando lemos: “É o poder de Deus para a salvação”, o sujeito da frase indubitavelmente é o evangelho. O evangelho é a mensagem. Naturalmente, sempre será uma mensagem proclamada, mas o próprio evangelho é esta mensagem.(MURRAY, 2018, p. 1063-7).
Mas o evangelho é poder de Deus para salvar do que? Da condição humana de miséria e ruína diante de Deus, pelo pecado herdado de Adão e a incapacidade humana de salvar-se a si própria dessa condição e voltar-se para Deus, em reconciliação. Se salvar-se do pecado e da consequência da morte tridimensional, espiritual, física e eterna. O evangelho é o único que nos livra do pecado, do mal e da morte.
Para Murray, “‘O poder de Deus’ é o poder que pertence a Deus; portanto, é o poder caracterizado por aquelas qualidades especificamente divinas” (ibidem, p. 1071) e “O poder de Deus para a salvação, poder este que o evangelho incorpora, não opera de forma incondicional e universal para a salvação” (ibidem, p. 1076).
Em que sentido não é incondicional e universal? É que para experimentar a salvação como libertação do pecado e do juízo, a fé é o meio pelo qual nos apropriamos das promessas de Deus, então essa salvação não é uma apokatastasis (teoria de Orígenes, em que toda a criação será restaurada, inclusive os que não se renderam a Cristo) ou um universalismo (teoria em que todos os seres humanos serão salvos, independente da rendição a Cristo ou não). A fé é o meio pelo qual Deus salva pecadores, é o meio pelo qual pecadores experimentam libertação do pecado e do juízo através do poder que só o Deus único e trino tem. A fé é a conditio sine qua non para sermos salvos.
E essa fé primeiro foi manifesta aos judeus e depois, aos gentios. “na economia divina, o evangelho deveria ser pregado primeiramente aos judeus (cf. Lc 24.47; At 1.4,8; 13.46)” (Murray, 2018, p. 1090), pois a salvação vem de Israel (Jo 4.22). Conforme já escrito, a igreja em Roma era composta de judeus e gentios, e por mais que esses fossem predominantes, há uma ordem progressiva na economia da salvação em relação a revelação salvífica de Deus (cf. At 1.8).
Os temas do “poder de Deus, a salvação, a revelação e a justiça de Deus” (Murray, 2018, p. 1103) estão presentes em textos do Antigo Testamento como Salmos 98.1-2; Isaías 46.13; 51.5,8; 56.1; 62.1.
O evangelho como justiça de Deus
O versículo seguinte revela uma sentença bíblica muito importante. Quando o texto diz que a justiça de Deus está sendo revelada, o conceito é usado “por Paulo para se referir à revelação escatológica de vários aspectos e elementos do plano redentor de Deus. Às vezes, essa revelação é um “descobrimento” que se abre ao intelecto de várias variedades relacionadas aos propósitos de Deus” (MOO 2023, p. 83).
Ou seja, a ideia que essa justiça de Deus “estava para ser desvendada ao entendimento humano” (Murray, 2018, p. 1116). Isso quer dizer que:
(…) o tempo presente sugere que Paulo esteja pensando em um processo contínuo, ou em uma série de ações, associado à pregação do evangelho. Em todo lugar que o evangelho estiver sendo proclamado, a “justiça de Deus” em sua plenitude escatológica está sendo revelada (MOO, 2023, p. 83).
A interpretação da justiça de Deus, segue a dos reformadores protestantes do século 16, sobretudo Lutero que salienta “essa justiça como puramente forense – uma questão de condição ou posição judicial (…)” (MOO, 2023, p. 85). Ou seja, distinta da regeneração, sendo uma obra extra nos, quer dizer, fora de nós, sendo uma justiça que vem de fora, que vem de Cristo. “A condição justa que vem de Deus” (ibidem).
A questão da fé, Murray salienta que:
“De fé” ressalta a verdade de que somente “pela fé” podemos ser beneficiários dessa justiça, razão por que se trata de uma “justiça-pela-fé”, tão verdadeiramente quanto é uma “justiça-de-Deus”. “Em fé” sublinha a verdade de que todo crente é beneficiário da justiça, não importando sua raça, cultura ou o grau de sua fé (MURRAY, 2018, p. 1162).
Por último, salienta-se o uso que o apóstolo Paulo faz de Habacuque 2.4 (presente no Novo Testamento em Gálatas e Hebreus também, cf. Gl 3.11; Hb 10.38-39).
A citação de Habacuque 2.4 tem o propósito de confirmar a verdade utilizando o Antigo Testamento. A discussão passa a girar em torno da tradução apropriada, isto é, se “pela fé” deve ser entendido juntamente com o sujeito ou com o predicado da sentença. A proposição deveria ser traduzida “o justo viverá por fé” ou “o justo por fé viverá”? A proposição tem o significado de que o justo viverá ou o sentido de indicar como viverá o justo, ou seja, pela fé? Há boas razões para preferirmos esta última alternativa. (1) Habacuque 2.4 não pode ser naturalmente interpretado de outra maneira, e a pontuação massorética favorece esse ponto de vista. (2) A verdade que o apóstolo desejava estabelecer é que a justiça de Deus realiza-se pela fé — a ênfase recai sobre a maneira pela qual um homem se torna o beneficiário dessa justiça. Devemos esperar que a referência à “fé”, na citação, teria força idêntica. (3) A expressão “a justiça pela fé” não pode reivindicar a analogia de seu uso nas Escrituras (MURRAY, 2018, p. 1184).
Ou seja, o uso que Paulo faz de Habacuque está dentro do enredo das escrituras em uma revelação progressiva da história da redenção. “Encaixando bem com o seu uso aqui em Habacuque, êmúná muitas vezes expressa no AT a atitude fundamental de confiança e dependência que as pessoas devem expressar em relação a seu Deus” (MOO, 2023, p. 93).
Ainda que Habacuque esteja relacionando “fé com viver” (ibidem), e salientando a vida pela fidelidade à aliança de Deus, Paulo interpreta o texto à luz do seu ambiente na história da redenção, em saber que a vida em uma nova posição com Deus só ocorre por meio da imputação da justiça de Cristo por meio da fé, a justificação pela fé.
Conclusão
O artigo exibiu e expôs o texto que na maioria das vezes é mencionado como o tema central da carta aos Romanos, ainda que outros estudiosos optem pela perícope inicial, dos versículos 1 ao 7 do capítulo 1. O texto aponta sobre como só o evangelho de Deus em Cristo tem poder para salvar o ser humano pecador da sua condição caída, inabilitada e de miséria em relação a morte espiritual e eterna, sem condições de se relacionar com Deus por conta própria e por alguma outra força, seja ela religião, espiritualidade, filosofia, ideologia humana ou qualquer outro ente na criação. Só Deus tem esse poder, tendo como fundamento, o evangelho, para salvar pecadores.
Esse poder não é experimentado ou vivenciado por pecadores por meio de boas obras meritórias ou algo que atraía o favor de Deus para o pecador, mas somente pela graça de Deus (favor imerecido) mediante a fé é que o pecador se apropria das promessas de Deus relacionadas a salvação. Se o evangelho é o único fundamento e Cristo, o seu conteúdo, a fé é o único meio pelo qual pecadores são salvos do pecado, da morte e do mal.
Esse evangelho tem como consequência a justiça de Deus revelada, através da história da redenção chegando no dia presente trazendo o dia da salvação. Essa justiça não vem de dentro de nós, mas de fora, Cristo é a nossa justiça, e ela só é apropriada por meio da fé. Somente por meio da fé a justiça de Cristo é imputada, é creditada em nossa conta.
Louvado seja Deus por tão grande salvação, a qual não merecíamos, mas pela sua graça e misericórdia, Ele nos deu.
Soli Deo Gloria
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Bibliografia
Ferreira, Franklin. A epístola de Paulo aos Romanos (Rio de Janeiro: Apostila não publicada de uma disciplina ministrada no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil [STBSB]), 2001.
Melanchton, Filipe. Loci Theologici: tópicos teológicos. Tradução de Eduardo Gross (São Leopoldo: Sinodal/EST, 2018).
Moo, Douglas J. Romanos: Comentário Exegético. Tradução: Daniel Hubert Kroker (São Paulo: Vida Nova, 2023).
Murray, John. Romanos: Comentário bíblico. Tradução: João Bentes (São José dos Campos: Fiel, 2018). Edição Kindle.
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[1]https://biblehub.com/text/romans/1-16.htm. Acesso em: 16/11/2023.











