Karl Rahner foi um dos maiores teólogos da era moderna. Importantes pesquisadores da história do pensamento cristão colocam Tomás de Aquino como um dos equivalentes histórico de Rahner.
Em dois breves estudos, desejo destacar não apenas seu nome e parte de sua história, mas também parte de sua teologia, sobretudo onde ele trata sobre o cristão anônimo. Meu objetivo com estes dois estudos não é fazer um trabalho sobre a vastíssima teologia de Karl Rahner, o que seria impossível em dois artigos.
Portanto, visando compreender melhor aquilo que mais trouxe mudança à teologia da Igreja Católica Apostólica Romana no século vinte, faço meu recorte sobre a parte da antropologia de Rahner mais conhecida como a doutrina do cristão anônimo.
Após conhecermos o contexto histórico no qual Rahner se encontra, e nos situarmos de modo singelo com o pensamento e posição da Igreja Católica Apostólica Romana quanto à salvação, sobretudo, fora da Igreja, passaremos ao estudo da doutrina dos cristãos anônimos.
Para compreendermos o que seria esse pressuposto analisado por Rahner, investigaremos neste primeiro estudo as bases de seu pensamento, o eixo sobre o qual toda a teologia rahneriana gira: o existencial sobrenatural.
No estudo seguinte (a ser publicado), estudaremos o cristão anônimo e a fenomenologia transcendental, visando compreender a doutrina da graça e da salvação em Rahner. Com esses dois estudos, poderemos compreender a doutrina dos cristãos anônimos e tudo o que está por detrás dela, que tanto influenciou e continua a influenciar a teologia contemporânea, sobretudo a teologia católica no século vinte.
A VIDA DE KARL RAHNER
Embora ainda seja pouco conhecido no grande círculo da teologia evangélica, Karl Rahner é considerado por muitos o grande professor e sistematizador da teologia católica no século 20. Seus escritos influenciaram de maneira incrível a teologia da Igreja Católica Apostólica Romana no século vinte, como poucas pessoas a influenciaram séculos passados.
Rahner nasceu em Freiburg-im-Breigau (em português, Friburgo em Brisgóvia), no estado federal de Baden-Württemberg, na Alemanha, em 5 de Março de 1904. Sendo de uma família de classe média e catolicamente bastante devotada, Rahner, com seu irmão Hugo, tornou-se padre, membro da ordem dos Jesuítas.
Sendo designado pela ordem para ser professor de filosofia, Rahner foi enviado para várias escolas. Finalmente, Rahner foi enviado à Universidade de Freiburg, onde ele estudou com Martim Heidegger, famoso filósofo existencialista que muito o influenciaria.
Já como professor, Rahner começou sua vida de docência acadêmica em 1937 na Universidade de Innsbruck. Rahner passaria ainda pela Universidade de Munique, onde sucedeu Romano Guardini, e pela Universidade de Münster, onde lecionou teologia dogmática.
Karl Rahner foi, segundo David F. Ford,1 um erudito de primeira classe. Frequentemente comparado historicamente a Tomás de Aquino, encontra, na percepção de Roger Olson, seu equivalente evangélico no século 20 em Karl Barth, pelo menos em termos de influência e de impacto.2
Karl Rahner escreveu profusamente. São mais de 3.500 livros e artigos, todos publicados por Rahner enquanto vivia.3 Além de sua teologia sistemática intitulada Foundations of Christian Faith (Fundamentos da Fé Cristã), Rahner publicou sua Theological Investigations (Investigações Teológicas), uma série de multi-volumes cada qual encerrando uma coleção de ensaios topicamente organizados.
A POSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA QUANTO À SALVAÇÃO
Desde Cipriano, a teologia oficial da Igreja Católica Apostólica Romana é que não há salvação fora da única igreja visível organizada como Igreja Católica Apostólica Romana. Tal ponto foi reafirmado pelo Quarto Concílio de Latrão em 1215. Não há salvação em nenhuma outra igreja “rival”.
Em 1302, o Papa Bonifácio VIII declarou-o de modo mais preciso através de sua bula intitulada Unam Sanctam, onde se lê: “nós manifestamos, declaramos e definimos que é completamente necessário à salvação para toda a criatura humana o estar sujeito ao pontífice romano [Papa]”.
Nos últimos dois séculos esta declaração continua sendo aceita pela Igreja Católica Apostólica Romana, porém, reinterpretada. Em 1854 o Papa Pio IX reafirmou a Unam Sanctam, todavia, com uma modificação vital. Pio IX apontou que, aqueles que são ‘invencivelmente ignorantes’ da verdadeira religião, ou seja, aqueles cuja ignorância não é a sua falta, estão isentos.
Em 1949, houve um desenvolvimento adicional que culminou na excomunhão de um padre de Boston, Pe. Feeney. Feeney insistiu em ensinar a visão tradicional.
Segundo Lane,4 no caso do padre Feeney, Roma respondeu que a declaração “fora da igreja não há salvação” permanecia verdadeira, mas que era para o magistério, a autoridade doutrinal, moral e intelectual, interpretá-la. Segundo Roma, essa interpretação não deveria ser feita por um indivíduo particular. Em 1953, a controvérsia se arrastou com muita força até que, finalmente, o padre Feeney fosse excomungado como um obstinado de excessivo rigor.
O Concílio Vaticano Segundo assim rejeitou a velha interpretação:
Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna. Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida reta. Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida .
O POVO DE DEUS 2:16
E o que fica dito [a salvação], vale não só dos cristãos, mas de todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente. Com efeito, já que por todos morreu Cristo e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido.6
A IGREJA E A VOCAÇÃO DO HOMEM 1:22
Todavia, embora o Concílio Vaticano II tenha dado uma nova interpretação à antiga Unam Sanctam, também teve o cuidado em declarar que, qualquer pessoa que saiba que a Igreja Católica Apostólica Romana foi posta por Deus através de Jesus Cristo como necessária, mas recusa-se a entrar nela ou permanecer nela, não pode ser salvo.
Daqui surge o conceito do cristão anônimo na teologia de Karl Rahner. Em sua busca por reinterpretar toda a antropologia, Rahner encontra espaço para a salvação daqueles que, de modo ignorante, mas sem culpa por sua ignorância, desconhece a realidade da Igreja Católica e de Cristo.
Se tal pessoa for uma pessoa de bem, cuja vida segue os ditames da consciência, levando uma vida moralmente sadia, que tal pessoa será salva. Daí, Rahner desenvolve sua teologia sobre dois pontos fundamentais: o ponto do Existencial Sobrenatural e o ponto da Fenomenologia Transcendental para ‘provar’ filosoficamente que seu ponto acerca do cristão anônimo procede. É isso que passamos a analisar a partir de agora.
O CRISTÃO ANÔNIMO
AS BASES DO PENSAMENTO DE RAHNER
Segundo Battista Mondin,7 o pensamento filosófico de Karl Rahner é totalmente original. Embora tenha agido de modo diferente de Guardini e Teilhard de Chardin, desenvolvendo sua teologia a partir de princípios Aquinenses, Rahner se diferencia de Tomás de Aquino e de sua visão cosmocêntrica.
Rahner possui uma forte visão antropocêntrica que é abundantemente aplicada à Revelação. Como nenhum outro antes dele, Rahner lança-se a explorar o mundo da filosofia e da teologia partindo de pressupostos totalmente antropocêntricos. O conceito do cristão anônimo surge nesse contexto de pensamento.
O EXISTENCIAL SOBRENATURAL – A GRAÇA
Aqui encontramos o núcleo de toda a teologia rahneriana. Todo o edifício teológico de Karl Rahner é edificado sobre o mistério da graça que santifica e pode salvar. Graça essa que está no ser sobrenatural de todo homem e mulher. A essa graça, Rahner dá o nome de Existencial Sobrenatural.
Rahner escolheu a graça como o princípio arquitetônico material para sua teologia. O mistério da graça. Para Rahner a graça constitui o componente essencial e fundamental do ser sobrenatural do homem.8 Ela está ligada estruturalmente ao ser humano e, por natureza, é inerente e inseparável a todo e cada ser humano que já tenha vivido ou venha a viver.
E é justamente em torno desse Existencial Sobrenatural que gira toda a teologia de Karl Rahner, como diz Mondin (1979, p. 109), “da Trindade à encarnação, da Revelação à Igreja, dos sacramentos aos cristãos anônimos”.
Tentar aqui expor toda a doutrina da graça, do existencial sobrenatural, como percebido por Karl Rahner, se equivaleria a expor toda a teologia rahneriana. Como isso é impossível devido ao vastíssimo sistema teológico de Rahner e pelos limites desse artigo, comento a seguir apenas alguns poucos pontos fundamentais sobre o existencial sobrenatural em Rahner.
Conforme comenta Battista Mondin,9 são três as teses mais originais de Rahner sobre a graça:
(i) Tal graça consiste na autocomunicação de Deus. Rahner afirma que a graça não é a comunicação de uma realidade sobrenatural diversa de Deus. Para ele, a graça é a autocomunicação do próprio Deus. A graça inerente a todo ser humano é uma autocomunicação de Deus no homem. Rahner assim a afirma:
A graça incriada é o início homogêneo, já conferido, ainda que agora esteja escondido e em processo de desenvolvimento, daquela comunicação do ser divino ao espírito criado, que se verifica em uma causalidade formal e é o pressuposto ontológico da visão.10
(ii) Tal graça é dada a todos os seres humanos. Nesse ponto, Rahner trata da universalidade da graça (aliás, para Rahner, não somente a graça é universal, mas também a Revelação e a própria fé). Devido à interpretação dada por Rahner ao texto de 1 Timóteo 2.4 – “o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” –, se entende que a graça é comunicada a todos os homens. E isso se faz imprescindível pelo princípio dogmático da vontade salvífica universal de Deus.
Rahner analisa que, devido o espírito do homem estar aberto para o infinito, essa mesma estrutura metafísica do homem o habilita a receber e experimentar a autocomunicação de Deus.
Ainda que a pessoa seja ou considere-se um ateu, para Rahner ele não passa de um teísta anônimo. Visto que ajam elementos que o transcendem, elementos nele que o levem a refletir em sua transcendência natural para com o mistério, e uma vez que tal indivíduo se entregue sem duvidar na existência de um Deus (não necessariamente o bíblico que, pressupõe-se, tal pessoa ignora), tal pessoa pode ser salva.
Como consequência disso tudo, o que se observa é que a graça não seria, para Rahner, restringida apenas aos cristãos declarados, mas que a graça estende-se também à grande massa de cristãos anônimos.
(iii) Tal graça tem uma prioridade lógica absoluta entre os atos ad extra de Deus.11 Aqui, Rahner trata da prioridade lógica absoluta da graça. Como já temos analisado, a graça possui um lugar de honra, ocupa a primazia no centro da teologia de Karl Rahner. Battista Mondin comenta esse fato dizendo que, “por essa razão, pode ser chamada ‘teologia karicêntrica’ (que tem por centro a graça, kharis). Nela, tudo se funda na decisão divina de alienar-se, comunicando-se em pessoa a outro ser”.12
Devido ao conceito da graça como um existencial sobrenatural inerente a todo o homem, Rahner sustenta a salvação universal. Primeiramente, Rahner crê que todo ser humano é receptivo, por natureza, à auto-revelação de Deus em Jesus Cristo.
Rahner argumentava também que todos os seres humanos são dotados por Deus com a capacidade de receberem graça.13 Uma vez que todos possuem o Existencial Sobrenatural (a graça) dentro de si, todos podem ser salvos. Segundo Olson, “quem seguir essa graça interior e sobre ela edificar encontrará a salvação total, independentemente de ter ouvido a mensagem expressa de Jesus Cristo”. Ou seja, é possível que haja salvação, pela graça, e não através do arrependimento e fé no Jesus Cristo ressuscitado, como o Filho de Deus. O existencial sobrenatural concede à humanidade condição para que seja salva partindo de esforços pessoais em se viver de modo moral, de acordo com a lei da consciência.
Ressaltando que tal graça de salvar pela ignorância se restringe àqueles que ignoram a Igreja Católica Apostólica Romana e a submissão à autoridade dessa instituição, o sumo pontífice romano.
Para Rahner, os cristãos anônimos são aqueles que a seguem e vivem segundo a vontade de Deus, sejam eles batizados ou não, conheçam a Cristo ou não. Na teologia rahneriana a única maneira da pessoa não ser salva é abjurando obstinadamente a oferta da graça de salvação feita por Deus.
No próximo artigo, continuarei a analisar o pensamento de Rahner sobre o cristão anônimo. Nele, abordarei como este tema se relaciona com aquilo que Rahner chamou de Fenomenologia Transcendental.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FORD, David F. The modern theologians: an introduction to Christian theology in the twentieth century. Oxford: Blackwell Publisher, 1997
GRENZ, Stanley J., OLSON, Roger E. Teologia do século 20. Trad. Suzana Klassen. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.
GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. Trad. Vanuza Helena Freire de Mattos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004.
LANE, Tony. Exploring Christian thought. Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1984.
MACGRATH, Alister E. Historical theology: na introduction to the history of Christian thought. Oxford: Blackwell Publishers, 1998.
MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. Trad. José Fernandes. São Paulo: Edições Paulinas, 1979.
OLSON, Roger E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida, 2001.
RAHNER, Karl. Theological investigations. New York: Herder and Herder, 1971.
RAHNER, Karl. Foundations of Christian faith: an introduction to the idea of Christianity. New York: The Seabury Press, 1978
RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1969.
___________________________________
1FORD, David F. The modern theologians: an introduction to Christian theology in the twentieth century. Cambridge: Blackwell Publishers, 1997. p. 118-119.
2OLSON, Roger E. História da teologia cristã: 2.000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Editora Vida, 2001. p. 614.
3Ibid.
4LANE, Tony. Exploring Christian thought. Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1984. p. 238.
5Documentos do Concílio Vaticano II. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html. Acesso em: 17 jul. 2008.
6Documentos do Concílio Vaticano II. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 17 jul. 2008.
7MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Edições Paulinas, 1979. p. 95.
8Ibid. p. 109.
9Ibid.
10RAHNER, Karl. Saggi di antropologia soprannaturale, p. 127. In: MONDIN. Ibid. p. 110.
11Expressão latina que se traduz por: por fora, exteriormente.
12MONDIN. Op.Cit. p. 112.
13OLSON. Op.Cit. p. 614.
O maior mist‚rio de Deus do Novo Testamento e, ao mesmo tempo, a única coisa a se esperar dada imagem que Jesus transmite ‚: a Sua vontade salvívica universal.
E acho que o Rahner contribui nas relfexäes sobre a ATIVIDADE dessa Vontade, que, como Quem a tem, ‚ soberana.
É Livre, ‚ ativa, não se limita as mediaçäes dos seus próprios meios explícitos: tais como a pregação…
Sei das críticas que seu conceito de Cristianismo An“nimo recebe: algumas devem ser consideradas. Contudo, o que vejo como positivo ‚ que ele abre a perspectiva ao remeter os meios explícitos – os tradicionais no cristianismo – … Sua origem: a vontade soberana que deseja que todos se salvem.
Isso, claro, não ‚ universalismo. O mist‚rio ‚ que a efic cia de tal Vontade Soberana se frusta no mist‚rio maior da escolha fundamental da liberdade humana. Contudo, tais pensamentos abrem, em minha opinião, devidamentes as possibilidades: porque, afinal, diria Paulo, os que morrem sem lei, serão julgados por padräes