‘O liberalismo teológico não é cristianismo’: A proposição de J.G. Machen contra a teologia liberal

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A apresentação da leitura de Cristianismo e liberalismo tem por objetivo apontar o modo como John Gresham Machen identifica o liberalismo moderno como uma outra religião diferente da cristã. Aponta à religião cristã, os dogmas, doutrinas e a história neotestamentária como elementos fundamentais e inseparáveis caracterizadores desta Religião. Portanto, negá-los é negar todo o fundamento cristão.

Por que ler Machen hoje? Quando igrejas e seminários teológicos sucumbem desacreditados dos dogmas e da veracidade dos relatos bíblicos, sem saberem a que se agarrar, o teólogo desafia a modernidade apresentando a histórica fé cristã como sempre atual.

Com Machen, a “fé conservadora” ergue a sua cabeça, não apenas para apontar os erros hermenêuticos e exegéticos (eixegéticos) modernos, mas também firmar a veracidade das Escrituras. E J. G. Machen não faz isto para se justificar das acusações recebidas da teologia liberal ou neo-ortodoxa nos séculos XIX e XX. pelo contrário, Machen procura colocar a fé conservadora sobre uma base de tal autoridade capaz de ser objetivamente plausível e analisável, em nada perdendo para o liberalismo e a neo-ortodoxia.
 
Acredita que esta fé poderá sobressair às duas correntes teológicas posteriores a ela. Pelo menos, assim julga ao expor que o seu “objetivo não é o de decidir a questão teológica dos dias atuais, mas, tão somente, apresentar a questão da maneira mais vívida e clara possível, para que o leitor possa ser auxiliado a decidir por si mesmo”.1 Deste modo, para ele, a opção pela Teologia Conservadora procede de bases justificáveis.

Curiosamente, Machen não aponta as influências do Iluminismo sobre a teologia intra ou extra-eclesiástica; afirma apenas que o surgimento do liberalismo teológico deveu-se às mudanças sociais e intelectuais surgidas no século XIX.  Conjuntamente às grandes invenções e ao industrialismo, as ciências surgidas com o especificismo2 do conhecimento humano em diferentes esferas, grassaram à fé e o orgulho de fazer parte deste momento histórico promoveu erosões profundas à fé cristã.

Tantas convicções tiveram de ser abandonadas que as pessoas acreditam que todas elas devem ser deixadas de lado. […] o Cristianismo, durante muitos séculos, tem apelado para a veracidade de suas afirmações, não meramente nem mesmo primariamente segundo experiências atuais, mas de acordo com certos escritos antigos, dos quais o mais recente data de aproximadamente vinte séculos atrás.3

O fato de a religião cristã ter como base as Escrituras, frente à ciência contemporânea, ela não se retira e assiste alienada, de longe, o progresso desta como um inimigo capaz de lhe calar a voz. Àqueles que consideram a fé cristã (ortodoxa) como opositora à ciência e exige que ela siga por campo isolado do saber científico devem ser censurados, pois, “a religião se tem baseado em diversas convicções, especialmente na área histórica, que podem ser assuntos de investigação científica”.4 Não é acerca de tal investigação que os teólogos liberais foram levados a buscar a “essência do cristianismo”? Encontrar o “Jesus Histórico” dentre as flores do mito apostólico? Todavia, seria eficaz provar que o fundamento do cristianismo pode ser verificado pelas ciências humanas?

Segundo Machen, a questão não é tão somente impor o cristianismo como um fenômeno antropológico ou objeto de análise psicológica. Não se trata de fundamentar a fé cristã como objeto da filosofia da religião. Os campos científicos não se contentam em apenas estudar a superfície da fé cristã. É sabido que o materialismo moderno, logo que possível, se oporá tanto ao idealismo filosófico do pregador liberal quanto à fé nas doutrinas bíblicas.

Logo, o liberalismo teológico se apresentará como uma tentativa frustrada de manter o cristianismo confiável à geração vigente. Esta tentativa servirá, apenas para nos dar a certeza de que o liberalismo teológico, mesmo com  todo o seu esforço intelectual para apresentar a “religião cristã’ como racional, não é nem cristão, nem científico”.5 

O argumento é lógico, uma vez que ao tentar a conciliação entre cristianismo e ciência moderna, o teólogo liberal abandona o que é característico à fé cristã: a crença no Salvador pessoal, bem como a historicidade factual da fé cristã; isto é, a ressurreição não só é dogma, mas também parte essencial da história6. O cristianismo não dicotomiza da história aquilo que é factual do que é evento. Cruz e ressurreição são elementos plenamente cabíveis numa mesma história.7 

É deste modo que a própria necessidade dos milagres é exigida. Dizer que milagres não são possíveis, pois a História não lhe dá espaço numa existência onde o próprio Criador se condiciona a necessidade ‘situacional’, é ter como a única opção o misticismo ou imanentismo ou, até mesmo, o ateísmo.8 Seria negar o conteúdo bíblico, bem como, definir o Deus bíblico como simplesmente humano. Esta divindade é imanente, mas não transcendente. Não é sem razão que o melhor consolo à razão humana seria aceitar o Cristianismo como um estilo de vida, mas não como uma doutrina.9

Assim, resulta claro o caminho o qual Machen trilhará: nem cristão, nem científico; o liberalismo teológico é uma outra religião cujos fundamentos não procedem de uma fé propriamente histórica. Alimenta-se da estrutura de outra religião cuja vida engendra-se na história dos homens exigindo-lhes fé, mas suas raízes são outras. “O liberalismo moderno não somente é uma religião diferente do cristianismo, mas pertence a uma classe totalmente diferente de religiões.”10  Falta-lhe a fé cristã e a agradável utilização da razão. Mas, é fato que seu fundamento histórico se deve à religião cristã, sem a qual ele não conseguiria sobreviver. Caso fosse o contrário; caso fosse o cristianismo que dependesse do liberalismo moderno, teria este o poder para sustentar a ‘nova religião’?11 

Se pudéssemos imaginar uma situação na qual toda pregação fosse controlada pelo liberalismo, o que já é preponderante em muitos lugares, cremos que o cristianismo já teria desaparecido da face da terra, e o Evangelho já não seria mais proclamado.12

Portanto, o liberalismo moderno, antagonicamente ao pretendido, ocupa um lugar inferior à própria fé cristã primitiva, cujo fundamento é as Sagradas Escrituras. A procura de elevar a fé cristã a uma certa posição de intelectualidade e razão histórica (perdida no kerygma do cristianismo primitivo), per si mesmo, o liberalismo moderno tornou-se num misticismo moderno13, cujas bases dependem d’outra religião14 à qual julga infantil.15 

A base argumentativa na qual Machen sustenta a proposição de que o Liberalismo moderno não é Cristianismo está no Dogma e na História bíblica, presentes desde o princípio na Igreja Primitiva. Segue numa exposição intrinsecamente bíblica,16 expondo a proposição em seis pontos. Destes pontos, funda-se a proposição sobre as perspectivas dogmáticas e históricas dos evangelhos como factuais à situação17 humana. Uma mente arguidora perceberá facilmente que cada capítulo de Cristianismo e liberalismo reforçam a ideia de que o Liberalismo moderno é inconsistente para consigo mesmo, uma vez que exclui os dogmas centrais da fé cristã. Não é sem mais que Gresham retoma sempre, em cada capítulo, às “pressuposições da mensagem da fé cristã.” É ratificada a ideia da impossibilidade de um Jesus Histórico fora da realidade encarnacional na história.18
 
O Jesus histórico que os teólogos liberais diziam encontrar é estranhamente ausente nas mensagens da Igreja Neotestamentária. Segundo Gresham, se negada a divindade de Jesus Cristo e, sustentada apenas a ideia kerigmática dos apóstolos, até mesmo as mais restritas narrativas com informações das ações e relações eclesiásticas (desprovidas do aspecto do Cristo divino), entre a incipiente Igreja e os discípulos, também deveriam ser desconsideradas.19 Pois, é possível, ainda que com lentes puramente históricas, observar que havia um relacionamento de comum acordo entre os apóstolos quanto a Jesus ser mais do que um exemplo ético de filiação divina.20 

Ora, os teólogos liberais e conservadores concordam, ao menos, que a questão crítica às epístolas paulinas confere com os dados históricos. Paulo teve contato com aqueles homens que, de alguma forma, seguiram a Jesus de Nazaré. Então, pelos escritos paulinos, obtemos uma amostra do tipo de fé que os crentes nutriam e relacionavam entre si. As epístolas paulinas servem-nos de fonte de

[…] abundante informação sobre a relação de Paulo com Jerusalém. Paulo era profundamente interessado pela igreja de Jerusalém; ao se opor aos seus adversários judaizantes, que de certa forma havia apelado, contra ele, aos apóstolos originais, Paulo enfatizou a sua concordância com Pedro e os outros. Mesmo os judaizantes não tinham objeção ao modo como Paulo considerava Jesus o objeto de sua fé; nas epístolas, não há o mínimo indício de que tenha ocorrido algum debate sobre esse assunto. […] os apóstolos originais, evidentemente, não deram o menor indício de se contraporem aos ensinos de Paulo. […] Toda a história do Cristianismo primitivo seria um labirinto sem saída se a igreja de Jerusalém e Paulo não tivessem feito de Jesus o objeto da fé. O Cristianismo primitivo, com certeza, não consistia em mera imitação de Jesus. […] Jesus não manteve a sua pessoa fora de seu Evangelho, pelo contrário, apresentou-se como o salvador da humanidade.21

Procuraremos seguir lógica bíblica de J. G. Machen sobre três passos em seu livro, Cristianismo e liberalismo, a fim de entendermos o porquê de o liberalismo moderno (teológico) ser diferente do cristianismo. Antes, seguirá uma disposição geral do argumento descaracterizante entre as “duas religiões” e, depois, seguir-se-á a uma análise dos capítulos:

1. O liberalismo teológico não é cristianismo porque é inconsistente per si e/ou ilógico

J. G. Machen procura associar a busca do conhecimento com a religião. Se a ressurreição de Cristo tem alguma possibilidade de ser um fato (histórico), então, a razão que lida com ele, e dele depende, não pode ser desprezada pela fé. Esta ideia denuncia o erro do liberalismo moderno, uma vez que, manifesta a impossibilidade de a razão provar a fé. Não é plausível afirmar que a razão seja capaz de inferir a essência da religião. Assim, acreditar que se deve buscar pela essência religiosa no homem mediante manifestações empíricas paralelas à Bíblia, significa que o liberalismo está “somente rejeitando um sistema teológico e o trocando por outro”.22

A questão é lógica, pois, se ela versa sobre o fundamento da religião, todas as crenças são igualmente verdadeiras. Porém, “se todas as crenças são igualmente verdadeiras, e algumas delas contradizem as outras, então todas são igualmente falsas, ou pelo menos incertas”.23  

Tome-se, por exemplo, o Jesus Histórico. Este não pode ser sobrenatural, caso contrário, não seria histórico. Seria necessário que o Novo Testamento apresentasse o evento histórico separado das narrativas dos milagres. Mas, honestamente, o leitor sabe que tal separação (daquele evento histórico dos milagres a ele associados) desfaz o entendimento da própria narrativa em si mesma. O “cerne da trama” se desmancha e o próprio Jesus histórico torna-se alienado numa narrativa onde a referência a si mesmo não é distinguível. 24

 

2. O liberalismo moderno não é cristianismo porque possui características imanentistas que excluem a crença no Deus transcendente e pessoal:
A religião cristã lida com o paradoxo do Deus transcendental e imanente que coexiste perfeitamente com suas criaturas. Trata-se de uma questão ontológica, quando o Criador deve ser pessoal e, portanto, real (enquanto a criatura apenas existe).
 
A identificação de Deus para com o mundo se dá num livre ato de vontade e não de necessidade. Mas, ao criar, Ele necessariamente deve ser imanente aos seres criador, pois estes não tem razão de ser em si mesmos caso esse se retire. As Escrituras asseguram que no ato de criar, Deus mantém suas “propriedades” eternas como sempre foram, embora mantenha relações para com as coisas criadas, fora de si mesmo. Sem esta relação, os ‘entes’ não teriam permanência. Trata-se de uma relação de dependência do criado e não do Criador.

É por isto que a noção de paternidade universal é para os teólogos liberais uma das melhores maneiras de garantir a ligação entre Criador e criatura. Nela, ambos comungam duma mesma natureza, fazendo com que a religião assuma um papel, sobretudo, empírico ou “sentimental”. Todavia, “deve-se observar que, se a religião consistisse somente de sentimentos da presença de Deus, ela seria destituída de qualquer qualidade moral. O puro sentimento, se é que existe tal coisa, é não moral”.25 Não pode ser concebida na Religião a ideia do Transcendente e do Imanente sem que se formule um conceito ou um dogma sobre Deus.

[…] Faz toda a diferença o que pensamos sobre Deus; o conhecimento de Deus é a base da religião. […] No liberalismo moderno, por outro lado, essa distinção tão aguda entre Deus e o mundo é totalmente destruída, e o nome “Deus” é aplicado no próprio processo natural. Encontramo-nos em meio a um grande processo que se manifesta naquilo que é extremamente pequeno e naquilo que é extraordinariamente grande […]. A esse processo natural do qual nós fazemos parte, aplicamos o temível nome ‘Deus’. Dessa forma, portanto, Deus não é uma pessoa distinta de nós; pelo contrário, nossa vida é uma parte da vida dele. […] O liberalismo moderno possui características panteísta, mesmo não sendo consistentemente panteísta. Sua tendência é se desfazer, em todos os lugares, da separação existente entre Deus e o mundo, e da precisa distinção entre Deus e o homem.26

3. O liberalismo teológico não é cristianismo porque nega o aspecto principal do cristianismo – o dogma como elemento factual da história
 O cristianismo é, inerentemente, a religião do dogma e da história. Isto é percebido na ideia de Machen sistematizada nos sete capítulos do livro. Logo na introdução se tem a tese de que o liberalismo teológico não pode ser cristianismo; o capítulo um dará lugar às doutrinas na religião cristã.

É significativo observar que o lugar das doutrinas se estenderá pelos demais capítulos subsequentes, o que fortalece a noção de que o cristianismo, além de fé e racionalidade, ocupa um lugar epistemológico como nenhuma outra religião o pode ocupar. Dos capítulos três ao sete, Machen argumenta em favor dos dogmas e confissões de fé sobre Deus e o homem, a Bíblia, Cristo, salvação e a Igreja.

3.1. A doutrina
Conforme observado acima, o cristianismo não pode ser crido independente da doutrina. A rejeição dos liberais à Teologia Conservadora não se deve às frases e palavras tradicionais, mas à semântica destas. Tornar a semântica das palavras e frases do credo cristão em ideias próximas às da nova religião é, pois, uma maneira de fortalecê-la sem que precise se expor e perder o espaço na igreja.

Poucos anseios têm sido mais exagerados, por parte dos professores de teologia, do que o de evitar ofender algo ou alguém. Muitas vezes, isso tem se aproximado perigosamente da desonestidade. O professor de teologia, no mais profundo do seu coração, está consciente do radicalismo do seu ponto de vista, mas permanece firme na decisão de não perder o seu lugar na atmosfera santa da igreja ao expor o que pensa.27

É perigoso acreditar que é racionalmente possível permanecer num campo neutro quando a questão é religião. Se hoje é incongruente aceitar a ideia de um sujeito neutro na abordagem científica, muito mais o será no âmbito da fé.28 O que se descobre no criticismo moderno é, antes de tudo, que a rejeição aos dogmas doutrinários da igreja se dá por certo grau de conveniência. Pois,

É desta forma que, comumente, se expressa a moderna hostilidade à doutrina. Mas será que é realmente a doutrina como tal que é rejeitada, ou será ou será que se rejeita uma doutrina específica, para o benefício de outra? […] Existem doutrinas do liberalismo moderno que são defendidas com tanto vigor e intolerância quanto qualquer outra doutrina encontrada nos credos históricos. […] são doutrinas como todas as outras, e assim exigem defesa intelectual. Ao demonstrar uma aparente rejeição de toda a teologia, o pregador liberal, muitas vezes, está rejeitando somente um sistema teológico e o trocando por outro. Assim, a tão desejada imunidade de controvérsias teológicas não é alcançada.29

Ora, negar a substituição dogmática entre as duas religiões é beirá-las ao ceticismo. Podemos até considerar as controvérsias doutrinárias como quirelas frente à necessidade de comunhão fraternal, ou seja, a experiência da fé na paternidade universal, e ainda assim o cristianismo excluirá qualquer ideia teológica que não compactue com o seu dogma. Mais uma vez, afirmamos que a rejeição aos dogmas cristãos é rejeição a todo o sistema cristão. O cristianismo exige que o seu sistema de fé caminhe com a história. Pois, dizer que o cristianismo é um estilo de vida é já, por si mesmo, submetê-lo à investigação histórica. Se o cristianismo é, então, um fenômeno histórico, deve ser investigado com bases históricas, não?

O conceito de Machen sobre doutrina pode fortalecer o comprometimento desta com a história. Segundo ele,

A doutrina cristã está nas próprias raízes da fé. Deve-se admitir, então, que se vamos ter uma religião não doutrinária, ou uma religião doutrinária fundamentada meramente em verdades gerais, isso significa que não somente temos  que nos livrar de Paulo, da igreja primitiva de Jerusalém, mas também de Jesus. Porém, o que significa doutrina? Aqui, ela tem sido interpretada como qualquer apresentação de fatos, com seus verdadeiros significados, que estejam na base da religião cristã. Contudo, essa é a única definição da palavra? Será que ela não pode ser tomada em um sentido mais específico? Não pode significar uma sistemática, minuciosa e unilateral apresentação científica de fatos? Se a palavra for tomada nesse sentido mais específico, será que a objeção moderna à doutrina não envolve meramente uma objeção à sutileza excessiva da controvérsia teológica, e de forma alguma uma objeção às brilhantes palavras do Novo Testamento?30

Resta-nos perguntar: como pensar no cristianismo sem história e na Bíblia sem o dogma? Ao que parece, o dogma é sempre um ponto de partida para qualquer forma de conhecimento e, mormente, os fatos históricos. É assim que, ao abrir mão dos fundamentos dogmáticos do cristianismo o pregador liberal abre mão desta religião. Abrir mão dos fundamentos dogmáticos cristãos, procurando fazer a distinção entre aquilo que é fato histórico do seu evento, é se tornar mais imperativo ou dogmático do que o próprio cristianismo em si. Pois, o cristianismo exige a fé em seus dogmas históricos, ao passo que o pregador liberal pressupõe uma fé que, para existir, deve expurgar a própria dúvida que dá razão a sua existência. Noutras palavras: o liberalismo moderno sem os dogmas cristãos se reinventa. A fé liberal existe em detrimento de uma história que surge como resquício da “verdade” que supera o mito.31 Logo, a fundamentação histórica do dogma cristão deve ser objetiva e, não subjetiva. A diferença entre o cristianismo e o liberalismo moderno consiste em a impossibilidade de indiferença quanto a tomada de posição à origem dos dogmas.

Fundamentemos, então, a necessidade de se ter os dogmas ligados à realidade histórica:

(A) “O cristianismo constitui um fenômeno histórico muito bem definido”
A religião cristã tem em sua origem a proclamação de uma mensagem tida por verdadeiro relato de fatos. Lembremo-nos que o apóstolo Paulo não teve com a Igreja da Galácia a mesma tolerância que houve para com os romanos. Paulo entendeu que a mensagem dos falsos mestres na Galácia atacaram os fundamentos da fé, ao passo que, em Roma, a mensagem, ainda que pregada pelos rivais, manteve suas bases. “Nunca passou pela mente de Paulo que um evangelho pode ser verdadeiro para uma pessoa e não para outra. […] Ele estava convencido da verdade objetiva da mensagem do evangelho”.32

(B) O cristianismo é, em si mesmo, incongruente se doutrina e história dos relatos da igreja forem elementos distintos em sua aplicação à fé.33
A própria terminologia da palavra “evangelho” designa o pertencimento entre doutrina e história.  Evangelho é “boas novas” e, estas consiste em algo ocorrido.

E desde o início, o significado do que aconteceu foi estabelecido, e quando o significado foi estabelecido, surgiu a doutrina cristã. “Cristo morreu” – isso é uma referência histórica; “Cristo morreu pelos meus pecados” – isso é doutrina. Sem esses dois elementos, unidos de uma maneira indissolúvel, não existe Cristianismo.34

Ora, ao pensar nas “boas novas” qual mente não se volta ao seu oposto, isto é, ao estado anterior que lhe serviu de motivo porque ela veio a ser proclamada? Foi a mensagem da ressurreição como história fatual que deu origem à doutrina. “O mundo seria redimido pela proclamação de um evento; e com o evento, segui o seu significado; e o estabelecimento do evento, como seu significado, era uma doutrina. Esses dois elementos estão sempre juntos na mensagem cristã”.35

(C) O ensino de Jesus estava ligado ao ensino de uma doutrina
 Não precisamos falar da aplicação que Jesus fazia do Antigo Testamento aos seus contemporâneos. Todavia, é significativo dizer que ele aplicava as Escrituras como cumprimento à sua pessoa. Ele próprio não se mantinha fora do seu evangelho. A aplicação da lei à sua pessoa incluía-lhe como alguém autoconsciente de sua messianidade. Ele não só se incluía na história, como dizia ser parte inerente dela. Seja como for que os pregadores liberais descrevam a escatologia, as palavras de Jesus contidas nela apontarão para um evento no qual ele mesmo diz ser o agente. “A consciência de Jesus está em todo o lugar.”36

3.2. Deus e o homem
As duas pressuposições principais que diferem o cristianismo do liberalismo moderno são, certamente, o seu conceito sobre Deus e o homem. Já vimos, anteriormente, que a questão da imanência e transcendência divina são características fundantes para a economia soteriológica. Ainda que de difícil entendimento, no Novo Testamento são as duas quem possibilitam a própria ideia da redenção humana na pessoa de Jesus Cristo. Porém, o liberalismo teológico procura outro caminho para a salvação dos homens.

(A) Deus
Enquanto o cristianismo entende o conhecimento de Deus pelo viés da revelação, o liberalismo moderno ensina o sentimentalismo. Ainda assim, segundo Machen, o liberalismo é inconsistente, pois mesma a afeição humana é dependente de dogmas. As afeições não são oriundas de várias observações armazenadas na mente? É assim que a divindade de Jesus faz sentido. O conceito “Deus” não pode nos remeter primariamente a Jesus; antes, “a não ser que haja alguma ideia de Deus independente de Jesus, a confirmação de sua divindade não faz o menor sentido. Simplesmente dizer que ‘Jesus é Deus’ não tem sentido, a não ser que a palavra ‘Deus’ tenha um significado antecedente atrelado a ela”.37 Não teve que ser assim para que os próprios discípulos entendessem o conceito de “Deus” dito pelo Mestre?

Jesus apresenta aos discípulos um Deus pessoal e, ainda assim, supremo. A sua religião era baseada na crença da existência real de um Deus pessoal. A começar pelo próprio termo “pai”, embora aplicado em diversas religiões, nos lábios de Jesus o termo implica num relacionamento familiar cujo significado só tem valor em sua Pessoa.38 Portanto, o próprio conceito que o liberalismo moderno traz de paternidade universal implica numa perda do senso de transcendência divina.

(B) O homem
Uma vez perdida a noção da transcendência divina, o lugar do homem é suposto facilmente. Aplicar ao homem os conceitos tradicionais como, pecado original ou consciência de pecado, implica em compartilhar com deus de sua natureza mesma.

Assim, a revelação cede o seu lugar para a excessiva confiança na bondade humana. Isto priva, não somente a atribuição do mal à imanência divina, como também, elimina qualquer necessidade de intervenção externa à razão humana. O fundamento do cristianismo não é tão otimista quanto à bondade humana. “O humanismo cristão é tão mais elevado – um humanismo fundamentado não no orgulho humano, mas na graça divina”.39  O cristianismo tem, portanto, outro conceito sobre a natureza humana. Por isto, ao abandonar o conceito do Deus Vivo e a realidade do pecado, o liberalismo moderno coloca-se numa posição contrária ao cristianismo.

 
3.3. A Bíblia
A Bíblia é o elemento chave na fundamentação da fé cristã. Ela “contém o relato da revelação de Deus ao homem, que não pode ser encontrado em nenhum outro lugar”.40 As Escrituras põem o cristianismo como a religião do evento e não de ideias. Pois,

Todas as ideias do cristianismo poderiam ser encontradas em alguma religião diferente, e ainda assim não haveria o Cristianismo nessa outra religião, pois o Cristianismo não depende de um compêndio de ideias, e sim da narração de um evento. Sem esse evento, de acordo com o Cristianismo, o mundo é totalmente escuro, e a humanidade está perdida debaixo da culpa do pecado.41

Apelar apenas para o aspecto da experiência cristã como satisfatório para ser cristão não vale. A experiência cristã só é de fato válida se confirmada pela crença nos eventos escriturísticos como realmente fatuais. É por isto que J. Gresham Machen afirma que “a experiência cristã é corretamente usada quando afirma a evidência documentária. Mas ela jamais funcionará como substituto para evidência”.42 Fica claro, pois, que se a Bíblia não for aceita como um relato de fatos verdadeiros da revelação de Deus, cuja plena inspiração e inerrância é essencial para a fundamentação da Fé genuína, a religião será outra, mas não a religião cristã.43

A base para asseverar a diferença entre as duas religiões pode ser encontrada na própria consideração que Cristo faz às Escrituras. Se o liberalismo moderno rejeita o Velho Testamento, os argumentos e o “misticismo paulino”, e se atém somente ao que Jesus ensinava, pode-se perguntar: a qual regra autoritativa o pregador liberal se baseia, capaz o suficiente, para distinguir o que pode ou não ser aceito como oriundos dos lábios de Jesus? Qualquer leitor honesto sabe que as asseverações de Jesus Cristo sobre si mesmo, sobre Deus e o seu reino têm aplicações diretas sobre os seus ouvintes. O objetivo de suas palavras só será alcançado se amarrado ao todo contextual.44 

Portanto, é evidente que essas palavras de Jesus, que devem ser consideradas autorizadas pelo liberalismo moderno, em primeiro lugar, devem ser selecionadas da grande massa de palavras preservadas, por meio de um processo crítico. O processo crítico, certamente, é muito difícil, e, muitas vezes, surge a suspeita de que o crítico somente retém como palavras genuínas do Jesus histórico aquelas que estão em conformidade com suas próprias ideias preconcebidas. Mesmo depois que o processo de refinamento foi concluído, ainda assim o estudioso liberal não consegue aceitar todas as palavras de Jesus como autênticas; por fim, ele deve admitir que mesmo o Jesus “histórico”, como o reconstruído pelos historiadores modernos, disse inverdades.45

Mais uma vez, a diferença entre a religião cristã e o liberalismo moderno reside no seu fundamento; isto é, o cristão aceita a Bíblia como verdade objetiva aplicável em todo o seu conteúdo; crê que ela é magistralmente apropriada para contemplar todos os eventos históricos da humanidade sem a necessidade de adequações de conteúdo às novas verdades emergidas da ciência. Pois, “quando a verdade é considerada somente como aquilo que funciona em um momento específico, então ela deixa de ser verdade. O resultado é um profundo ceticismo”.45  
 

3.4. Cristo
Se a mensagem das duas religiões (cristianismo e liberalismo) é diferente, obviamente, a origem desta diferença se deve a interpretação acerca da pessoa a qual se fundamentam.

Já foi observado, aqui, a maneira como a igreja primitiva e os apóstolos viam a pessoa de Jesus de Nazaré. Estes depositaram em Jesus toda a sua fé, como se crê no próprio Deus. Jesus era tal ponto considerado o objeto de sua fé que os apóstolos confiaram-lhe o destino de suas almas. Não se observa nenhuma reprovação por parte dos apóstolos originais à identificação de Jesus como objeto da fé Cristã, nos ensinos de Paulo. Os evangelhos revelam que Jesus evocava a fé em si mesmo como Deus. Observemos o argumento:

(A) Jesus não manteve a sua pessoa fora de seu evangelho
O Jesus histórico, resultado da redução e demintologiação, acaba por confirmar a expectativas e percepção que o mestre tinha sobre si mesmo. Suas mensagens informavam aos ouvintes que a única segurança eterna que poderiam ter, por parte de Deus, era tendo-O como objeto da fé. Suas pregações, antes de consolo, era a da ira de Deus que pairava sobre os homens pecadores. Conclusivamente, somente no Filho os homens seriam salvos.
 
Cristo Jesus é muito mais do que um exemplo de fé; é o objeto desta fé. Ele nunca convidou ninguém a ter como modelo a fé que ele tinha em Deus Pai. Antes, convidou os homens para crerem nele como o Filho de Deus.

(B) Jesus não era um cristão
Nietzsche afirmou, em uma de suas obras, que “no fundo, existiu apenas um único cristão, esse morreu na cruz. O que desde esse instante se chamou “evangelho” era já o outro contrário do que Cristo vivera: uma “má nova”.47 Esta crítica de Nietzsche de alguma maneira influenciou a muitos liberais ao ponto de inverterem a ordem histórica dos fatos. O fato de Jesus ser o fundador do Cristianismo não faz dele um cristão. O Cristianismo não poderia ser a sua religião, até mesmo por questões lógicas. Vejamos:

(i) A consciência messiânica de Jesus: As experiências de nosso Senhor não podem ser seguidas pelos crentes em todos os seus aspectos. Ele se intitulava o “Filho celestial de Deus, que deveria ser o juiz de toda a terra”.48 A menos que Cristo tenha abandonado o seu caráter santo e humilde, o seu exemplo poderia ser seguido nisto; ou não. Ele não seria um exemplo digno a ser seguido. Se Jesus tivesse assumido a sua consciência messiânica tardiamente, como alguns teólogos liberais afirmavam, este fato o tornaria menos digno ainda de confiança; o problema residiria, então, no âmbito moral.

(ii) A relação de Jesus para com o pecado: “Se Jesus está separado de nós pela sua consciência messiânica, ele está ainda mais fundamentalmente separado pela ausência do pecado em si”.49 Ele nunca demonstrou consciência alguma de pecado e, nem mesmo, qualquer um de seus perseguidores apontou-lhe um se quer.50 
Esta era a mensagem pregada pelo cristianismo primitivo: a fé cristã é um meio para se livrar do pecado. E por si só, fica claro que Jesus não pode ser um cristão, uma vez que, a própria comunidade cristã primitiva o eximia de pecado. É forçoso mudar a concepção de salvação do Novo Testamento, quando o que se tem em vista é o que o Cristianismo significa. Segundo as narrativas neotestamentárias, Jesus representa bem mais do que uma figura de caráter exemplar; significa o perdão dos pecados. E, se Jesus era o objeto da fé, por meio de quem Deus perdoava pecados, ele mesmo não pode ser um cristão, “assim como Deus não pode ser religioso”.51

(iii) As reivindicações de Jesus: Jesus exigiu que aqueles que o seguissem estivessem dispostos a quebrar até mesmo os vínculos mais sagrados. O cristão não entende o chamado de Jesus como o de um mestre a ser seguido, mas como o chamado de um salvador a ser obedecido; não um exemplo de fé, mas o objeto da fé.

(iv) O cristianismo considera Jesus uma pessoa sobrenatural: Machen entende que “um evento sobrenatural é aquele que acontece pela ação imediata de Deus, no sentido de não acontecer por um intermediário”.52 Esta definição de milagre apresenta a necessidade de um Deus Pessoal, ao mesmo tempo em que exclui a necessidade de causas secundárias. A Bíblia apresenta o milagre como esta ação direta de Deus na natureza, admitindo, pois, que esta interferência em nada é arbitrária à ciência. Mas, se tratando de uma ação teísta primária na natureza, as duas naturezas de Cristo são claramente possíveis de existência no Jesus dos Evangelhos. É igualmente por isso que negar os milagres de Cristo é negar toda a sua Pessoa, bem como o próprio teísmo.53 

Machen afirma que, por toda Escritura a mensagem central, isto é, a revelação de Deus na história mediante seu Filho Eterno, não pode ser considerada verdade se isolada a sua manifestação sobrenatural. A natureza divina per si a exige assim. Sem os milagres, pode ser que seja mais fácil crer no Novo Testamento. Porém, aquilo no qual se creria seria inteiramente diferente daquilo que se apresenta a nós agora. Sem os milagres, teríamos um mestre; com os milagres, temos um salvador.54

3.5- Salvação
Haja vista as proposições anteriores, é lógico que a noção de salvação apresentada pela teologia moderna (liberal) desenvolverá o sistema soteriológico sobre bases antropológicas. Nisto se distinguem radicalmente essas duas religiões, pois a salvação para o cristianismo é ato divino.

A concepção de pecado universal assume lugar importante, pois, impõe ao homem a condição de desespero e dependência absoluta em Deus. Esta diferença requer de Jesus uma manifestação salvadora e não, somente, ética. A ética é, para o Cristianismo, um motivo desesperador, uma vez que, em pecado, o homem não consegue por si mesmo se salvar. Machen aponta esta verdade quando critica a hermenêutica liberal acerca do Sermão do Monte; a moral torna-se relevante e possível somente se vivida em Cristo.55

Parece que, “não é a doutrina bíblica que é difícil de entender- realmente incompreensíveis são os elaborados esforços modernos para excluir a doutrina bíblica por causa dos interesses do orgulho humano”.56 Por que os liberais atacam a doutrina de expiação?  Machen encontra três motivos:

(1) A sua dependência histórica
Segundo Gresham, acatar a cruz de Jesus Cristo é contrassenso aos liberais. Estes procuram aplicar a fé nos efeitos obtidos pela cruz, mas não na causa em si. Isto dá maior poder às experiências e os fins práticos, devendo ser estes os desejados, e não o fator histórico e dogmático da morte do salvador.
 
Mas, Machen afirma que as experiências destituídas da história é um mero misticismo, mas nunca será o Cristianismo. Se o Cristianismo for aceito apenas como uma experiência religiosa, se tornará incongruente para com a sua própria mensagem. Enfim, não existe Evangelho sem que o tenha como fato histórico.

(2) A exclusividade da salvação ‘somente’ em Jesus
A ofensa aos liberais consiste em admitir a salvação ‘somente’ em Jesus. E aqueles que, mesmo bons homens, morrem sem Jesus? Machen alude que o problema não reside na exclusividade da pessoa de Jesus, mas na maneira como a igreja o tem levado. Segundo ele, “o nome de Jesus é estranhamente adaptável a pessoas em todo o tipo de contexto”.57 A responsabilidade para com o Evangelho é de confiança filial.

O liberalismo moderno pode objetar ainda que, Cristo morrer por todos os homens é um não-senso de justiça, pois em nada diminui a culpa do pecador; todos os homens devem ser individualmente responsáveis por seus pecados.

A resposta é simples: a visão acerca da majestade de Jesus foi perdida. A pessoa de Jesus não pode ser igualada aos demais homens. Perdida a pessoa divina de Cristo, a expiação centra-se no homem e, consequentemente, perde todo o sentido. E, mas uma vez, centralizar apenas um aspecto de Jesus nas Escrituras, ou apenas em alguns milagres faz com que todo o cerne da religião cristã perca o sentido e careça de linguagem acessível à razão humana.

(3) A doutrina cristã da cruz não condiz com o caráter de Deus
Os pressupostos cristãos acerca da ira e inimizade de Deus contra o homem pecador são criticados pelos liberais como inconsistente à natureza divina. Todavia, a visão liberal de pecado está aquém daquilo que o Novo Testamento anuncia. Perdoar a todos os homens sem a cruz não apaga a sua culpa. A cruz aponta para a necessidade de o homem não só desejar esquecer o pecado, mas o apagar para sempre.

Portanto, o conceito dos liberais acerca da moral está, até mesmo, muito aquém da moral apresentada nos evangelhos. Não é forçoso, então, considerar que a própria cruz é tanto a manifestação da ira de Deus sobre os homens quanto a prova de seu amor. “Se alguém, alguma vez, já esteve debaixo da verdadeira convicção do pecado, essa pessoa terá pouca dificuldade com a doutrina da cruz”.58

3.6. A igreja
Machen, quando ainda discute a ideia dos liberais sobre a salvação, afirma que o conceito de fé da igreja liberal é, essencialmente, fazer de Cristo o mestre da vida. Mas, para ele, isto anula não só o conceito neotestamentário de graça, mas o da própria justificação. Logo, se distancia da leitura que os reformadores protestantes deram da epístola aos Gálatas. Consequentemente, a esperança escatológica da parousia é outro elemento que, sem os conceitos abordados, é inexistente.59

A igreja do liberalismo moderno acredita que o que há de útil no cristianismo é a aplicação de “verdades morais”. Os cristãos, entretanto, crê que a aplicação do cristianismo é ocorrência de um ato primário de Deus, isto é, regeneração. Deste modo, o conceito que o cristianismo tem acerca da fraternidade é distinto ao do liberalismo moderno, não podendo ambos conviverem como uma religião e, óbvio, mesma instituição.

(A) O cristianismo não crê na fraternidade/paternidade universal
Salvaguarda a analogia de irmandade entre os homens como criados por Deus, o cristão considera como relacionamento fraternal somente aqueles que são redimidos por Cristo. É necessária a fé em tudo aquilo que os teólogos liberais negam.

(B) O cristianismo entende a transformação da sociedade possível somente pela Igreja Invisível de Cristo:60 “A igreja é a resposta cristã mais elevada para as necessidades sociais do ser humano”. E é sob esta perspectiva que a igreja não apenas se mantém, mas também, age na sociedade, quer com ações sociais, quer através de missões.

Todavia, se a igreja invisível tem em seu corpo dois posicionamentos opostos acerca da pessoa de seu Fundador e Senhor, a razão de ser deixa de existir. É certo que a igreja tem como característica uma mensagem baseada nos dogmas do Senhor ressurreto, divino. Negada tal verdade, o Cristianismo assumirá outra mensagem; isto é, uma transformação nem sempre possível, pois é baseada somente neste mundo.

Além do mais, cristianismo e liberalismo seriam igualmente desonestos. Simplesmente, os pressupostos assumidos por ambas as religiões não podem ser considerados com frivolidade. O cristianismo assume dogmas que não suportam meias verdades ou que não exija a exclusividade da fé.61

Quer goste ou não, essas igrejas estão fundamentadas em credos; elas são organizadas para a propagação de uma mensagem. Se alguém quiser combater essa mensagem em vez de propagá-la, não tem direito, não importa quão falsa seja essa mensagem, de ganhar uma posição vantajosa para combatê-la, ao fazer uma declaração de fé que não é- que se diga com todas as palavras- honesta. […] ao perceber que as igrejas “evangélicas” existentes estão amarradas a um credo com o qual discorda, a pessoa deve se unir a alguma outra instituição ou fundar uma na qual ela se encaixe bem.62

O que Machen diz é que, as igrejas cristãs se unem em torno de uma mensagem baseada na Bíblia. É ao redor da fé no credo das Escrituras como inspiradas por Deus que as pessoas se reúnem. As diferenças levantadas entre elas não falha pela falta de definição.63 Isto, todavia, não é possível de se ver quando os liberais se reúnem com os cristãos. Eles rejeitam as convicções defendidas pelos crentes sem que antes busque entendê-las. Não é a fé conservadora que tem a “mente estreita”, mas os liberais.64 Não se trata de heresia, mas de um fundamento outro, que não o da fé evangélica. Não é próprio da fé cristã, desde o seu início, considerar os desvios doutrinários assunto primordial a ser debatido?

Portanto, parece ilógico querer que o liberalismo moderno continue entre os cristãos considerando-se uma parte dele. “Ele difere do cristianismo em seu conceito sobre Deus, o homem, a autoridade e sobre o caminho da salvação. E, não somente difere do cristianismo em teologia, mas também na totalidade da vida.”65

Embora, a crítica de Machen se refira ao Liberalismo moderno do início do século XX, o que torna seus escritos contemporaneamente válidos é o fato de tê-los feito sobre as bases da fé genuinamente cristã. Aquele que julga que esta fé não tem voz no presente século deve ler os argumentos macheanos a fim de descobrir quão sólida é a verdade que se vale das Escrituras. Pois, Machen é uma prova de que é possível, mesmo no século presente, o teólogo, estudante e pastor serem: eruditos, racionais, piedosos e relevantes; não sem, mas, mormente, se forem absolutamente fieis à Fé Cristã.

Bibliografia
HORDEN, W. Teologia contemporânea, São Paulo: Hagnos, 2003.
LENNOX, J. C. Por que a ciência não consegue enterrar Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 2011.
MACHEN. J.G. Cristianismo e liberalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2012.
MCGRATH, Alister, Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução a teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005.
MILLER, Ed. L. Teologias contemporâneas, São Paulo: Vida Nova, 2011.
NIETZSCHE, O anticristo: anátema sobre o cristianismo, Lisboa: Ed. 70, 2002.
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, São Leopoldo: Sinodal, 1987.

 

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1 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2012, p. 9.
2 Lembremo-nos que psicologia, biologia, sociologia e outros, são ciências relativamente novas na história. Todavia, apresentaram um criticismo constrangedor à autoridade religiosa.
3 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 11.
4 Idem, p. 12.
5 MACHEN, J.G. Cristianismo e liberalismo, p. 13.
6 O termo “história” é, maioria das vezes, utilizado por Machen, não como heilsgeschichte (uma história que é identificada apenas como fundamento para a fé bíblica, conforme Cullmann), mas no sentido da historiografia científica. A mesma noção poderá ser encontrada nas citações dos eventos.
7 MCGRATH, Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução a teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 451: “Para Bultmann, embora a cruz e a ressurreição sejam ,de fato, fenômenos históricos (pois ocorreram no âmbito da história humana), devem, contudo, ser discernidos pela fé como atos divinos. No kerigma, a cruz e a ressurreição estão interligadas como o ato da salvação de Deus. São precisamente estes atos divinos que possuem um significado constante, e não o fenômeno histórico que lhes serviu de suporte. Portanto, o kerigma não se preocupa com questões históricas, mas sim em comunicar a necessidade de uma tomada de decisão por parte daqueles que ouvem a proclamação do evangelho […].”
8 Idem, p. 145.
9 Ibidem, p. 23
10 Ibidem.
11 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p.21.
12 Idem, p.14.
13 HORDEN, W. Teologia contemporânea. São Paulo: Hagnos, 2003, pp. 90-91: “[…] A grande deficiência do liberalismo se encontrava no irracionalismo e no antiintelectualismo que o liberalismo alardeava. Os liberais […] alegam que a religião é coisa que não se pode expressar com exatidão e que, por isso mesmo, a expressão intelectual nela admissível terá de empregar termos simbólicos […], jogam com palavras. […] diz apenas interessado na aplicação do cristianismo às necessidades da existência. Entretanto, […] como é que o indivíduo poderá fazer aplicação de uma coisa que não sabe o que é?Com efeito, para que se possa saber o que é o cristianismo, é necessário pensar no cristianismo, isto é, o indivíduo terá de analisar suas doutrinas. […] o liberal é antiintelectualista por causa dos hábito que cultiva, que o levam a ler na Bíblia exatamente o que ele quer encontrar nela e não o que ela registra.”
14 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, pp. 145, 135: “O fato óbvio é que o liberalismo, seja ele falso ou verdadeiro, não é mera heresia – uma divergência em alguns pontos do ensino cristão. Pelo contrário, procede de uma raiz totalmente diferente, e consiste, em essência, em um sistema unitário próprio. […] O cristianismo tem sido atacado de dentro por um movimento que é anticristão em sua raiz. […] A grande ameaça à igreja de hoje não vem de seus inimigos externos, e sim dos inimigos internos; vem da presença, dentro da igreja, de pessoas cuja fé e prática são totalmente anticristãs.”
15 Idem, p. 14: “[…] A tentativa liberal de reconciliar o Cristianismo com a ciência moderna renunciou a tudo o que é peculiar ao Cristianismo, deixando somente aquele tipo indefinido de aspiração religiosa já presente no mundo antes de o Cristianismo entrar em cena. Na tentativa de remover do Cristianismo tudo o que poderia ser questionado pela ciência, subornando o inimigo com as concessões que ele mais desejava, o apologista abandonou aquilo que, no começo, estava defendendo. Nisso, como em muitas outras áreas da vida, vê-se que as coisas que parecem ser mais difíceis de defender são as que mais valem a pena ser defendidas.”
16 Os leitores de Cristianismo e liberalismo provavelmente observarão que J. Machen conseguirá recorrer à Bíblia em defesa de sua tese. De modo simples, Machen percorre o Novo Testamento utilizando-se de conceitos, consideravelmente simples, a fim de dar caráter discursivo e científico às narrativas bíblicas. 
17 TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 1987, pp. 683-685.
18 Tillich e Bultmann resolve o problema encarnacional do Jesus histórico, isto é, fé e história, traçando distinção entre o evento e o factual. Enquanto Bultmann dá objetividade ao evento Cristo, Tillich dá ao Jesus da história a “corporificação do novo ser.”O evento de Jesus como o Cristo é um elemento factual. O Jesus ocupa um lugar existencialmente histórico, enquanto o Cristo, a sua existência é factual apenas à esfera situacional; ou seja, símbolo da fé. Aparentemente, Tillich mantém a transcendência divina, mas mantém uma figura pálida do Jesus das narrativas bíblicas.
19 MILLER, Ed. L. Teologias contemporâneas, São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 55: “Portanto, a pergunta que se deve fazer é agora é a seguinte: O kerigma, ou a mensagem essencial do Novo Testamento, poderá sobreviver depois de eliminada a mitologia? Neste ponto, o aspecto mais positivo da contribuição de Bultmann começa a tomar forma. Ele acredita que a verdade essencial e a relevância do Novo Testamento podem ser preservadas por meio de um programa de entmythologisierung, ou “demitologização”, isto é, pelo processo de libertação da mensagem do Novo Testamento de seu contexto e de sua expressão mítica.Na verdade, o termo “demitologização”, conforme reconhecia o próprio Bultmann, é inadequado porque o objetivo não é eliminar ou subtrair os elementos mitológicos do Novo Testamento, e sim interpretá-los. O Liberalismo antigo havia tentado fazer tal subtração, mas acabou jogando fora o kerygma e nos deixou apenas com os ideais esteriotipados e sentimentais do evangelho social […].”
20 Idem, p.82: “Para Paulo, a ressurreição é incontestavelmente empírica e, a princípio, um evento que pode ser falsificado. Seria também destituído de sentido para muitos outros, inclusive Barth, que confiaram sua salvação e esperança no fato objetivo, histórico e (pelo menos na teoria) investigável dos milagres, sofrimentos e ressurreição de Jesus Cristos.”
21 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 73.
22 Ibidem, p. 22.
23 Ibidem.
24 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 92.
25 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 51.
26 Idem, pp. 52, 58, 59.
27 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 22.
28 LENNOX, J. C. Por que a ciência não consegue enterrar Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 2011, p. 45: “[…] O ideal iluminista do observador científico friamente racional, completamente independente, livre de teorias preconcebidas, de prévios compromissos filosóficos, éticos e religiosos, que faz pesquisas e chega a conclusões desapaixonadas e imparciais, é visto hoje em dia como um mito simplista. Assim como o resto da humanidade, os cientistas têm ideias preconcebidas, na verdade cosmovisões de que se utilizam em todas as situações.”
29 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 22.
30 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 42.
31 Idem, p. 44: “Aqui se encontra a diferença real entre liberalismo e cristianismo: liberalismo é totalmente imperativo, enquanto que o cristianismo começa com um indicativo; o liberalismo apela ao arbítrio do homem, enquanto o cristianismo, em primeiro lugar, o ato gracioso de Deus”.
32 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 25.
33 Idem, p. 30: “A grande arma, com a qual os discípulos de Jesus viriam a conquistar o mundo, não era uma mera compreensão de princípios eternos, mas uma mensagem histórica, um relato de algo que havia acontecido recentemente: a mensagem “ele ressuscitou”. Porém, a mensagem […] estava ligada com a totalidade da vida de Jesus sobre a terra. A vinda de Jesus agora era entendida como um ato de Deus, pelo qual os pecadores eram salvos”.
34 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p.29.
35  Idem, p. 30.
36  Ibidem, p. 35.
37 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 52.
38 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 57: “[…] A doutrina moderna da paternidade universal de Deus, celebrada como a “essência do cristianismo”, na verdade pertence, no máximo, àquela vaga religião natural que forma a pressuposição que o pregador cristão usa quando o evangelho é proclamado; porém, quando é considerado como algo autossuficiente e independente, então entra em direta oposição ao Novo Testamento”.
39 Idem, p. 61.
40 Ibidem, p. 63.
41 Ibidem, p. 64.
42  Ibidem, p. 65.
43 Ibidem, p.67: “Uma Bíblia que é cheia de erros, certamente, é divina no sentido panteísta de divindade. Sentido no qual Deus é só mais um nome no curso do mundo, com todas as suas imperfeições e todo o seu pecado. Mas o Deus a quem o cristão adora é o Deus da verdade”.
44 Ibidem, p. 35: “Mas, mesmo no Sermão do Monte há muito mais do que algumas pessoas pressupõem. Elas dizem que não há teologia ali; no entanto, ele contém teologia da melhor qualidade. Particularmente, ali está a mais elevada apresentação da pessoa de Jesus. Essa apresentação aparece na estranha forma de autoridade que permeia todo o seu discurso; aparece nas palavras recorrentes: ‘Mas eu vos digo’. Jesus coloca suas palavras em pé de igualdade com aquelas que ele, certamente, reconhece como palavras divinas da Escritura; ele reivindicou o direito de legislar sobre o Reino de Deus. Não se pode argumentar que essa forma de autoridade envolve, meramente, uma consciência profética em Jesus- um mero direito de falar  em nome de Deus. Pois, qual profeta falou dessa maneira alguma vez?”
45 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p.69.
46 Idem, p. 70.
47 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: anátema sobre o cristianismo, Lisboa: Ed. 70, 2002, p. 59.
48 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p.75.
49 Idem, p. 77.
50 Ibidem, p. 78: “[…] Nos evangelhos, Jesus é apresentado constantemente lidando com o problema do pecado. Ele sempre assume que os outros são pecadores; no entanto, ele nunca encontra pecado em si mesmo. Aqui se encontra uma estupenda diferença entre a experiência de Jesus e a nossa. Essa diferença previne que a experiência religiosa de Jesus sirva como base para a vida cristã. […] se o Cristianismo é alguma coisa, ele é um meio de se livrar do pecado.”
51 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 79.
52 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 86.
53 Idem, p. 92: “O Jesus apresentado pelo Novo Testamento certamente era uma pessoa histórica- qualquer um que realmente tenha chegado a enfrentar problemas históricos irá admitir isso. Mas, tão claramente quanto isso, Jesus é apresentado no Novo Testamento como uma pessoa sobrenatural. Contudo, para o Liberalismo moderno, uma pessoa sobrenatural nunca é uma pessoa histórica. Assim surge um problema para os que adotam o ponto de vista liberal- o Jesus do Novo Testamento é histórico, ele é sobrenatural, mas o que é sobrenatural, de acordo com o Liberalismo, não pode ser histórico. O problema só poderia ser resolvido pela separação do natural e do sobrenatural no registro do Novo Testamento sobre Jesus, para que, então, o sobrenatural seja rejeitado e o natural, retido”.
54 Ibidem, p. 89,90.
55 Ibidem, p. 37: “[…] todo o discurso é direcionado aos discípulos de Jesus; e o mundo a sua volta é distinguido da maneira mais clara possível. As pessoas para quem a “Regra de ouro” é direcionada são pessoas em quem uma grande mudança aconteceu- uma mudança que os torna aptos para entrarem no Reino de Deus.”
56 Ibidem, p. 101.
57 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, pp. 106,107.
58 Idem, p. 113.
59 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, pp. 117-132.
60 Idem, p. 134.
61 Ibidem, pp. 124,125.
62 Ibidem, pp. 138,139.
63 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 45: “[…] Ao insistir na base doutrinária do cristianismo, não queremos dizer que todos os pontos da doutrina são igualmente importantes. É perfeitamente possível manter a comunhão cristã apesar da diferença de opinião. […] eles compartilham conosco a reverência pela autoridade da Bíblia, e diferem de nós somente na interpretação dela […].”
64 Idem, pp. 136,148.
65 MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p. 145.

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