O drama dos refugiados: caridade e responsabilidade

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A sabedoria indica que, ao procurarmos opinar sobre qualquer assunto, devemos fugir de conclusões precipitadas e sem embasamento prático e teórico. O conciliar de teoria e prática – em linguagem teológica, ortodoxia e ortopraxia –, temperando o discurso com experiências pessoais e sempre com a virtude em mente, podemos incentivar os outros em prol da mesma causa, mais especificamente, a promoção do bem comum.

O papa João XXIII, na carta encíclica Pacem in Terris, levando em conta qual a perspectiva bíblica e confessional sobre a vida em comunidade e quais métodos deveriam ser utilizados para construção e manutenção de uma civilização saudável, equilibrada e crente em Deus – refletindo tais atributos em suas vidas, instituições, construção de leis e trato uns para com os outros – preleciona a respeito da natureza do bem comum aplicada na ordem entre os seres humanos:

Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis. E se contemplarmos a dignidade da pessoa humana à luz das verdades reveladas, não poderemos deixar de tê-la em estima incomparavelmente maior. Trata-se, com efeito, de pessoas remidas pelo Sangue de Cristo, as quais com a graça se tornaram filhas e amigas de Deus, herdeiras da glória eterna.[1]

Uma análise saudável, quer no aspecto jurídico, quer no político, está na pirâmide que tem por lista de prioridades: 1. O fim supremo e principal do homem; 2. A dignidade da pessoa humana; 3. Consciência da nossa condição pecaminosa; 4. Qual a função do Estado para garantir uma vida honesta ao seu povo, sem deixar de exercer práticas de caridade, em nome da efetivação do bem comum a nível internacional; 5. Cooperar internacionalmente, sem abandonar a soberania nacional e a responsabilidade, equilibrando benevolência, preservação cultural e segurança nacional.

Quando o tema é “refugiados”, ficamos em dúvida por qual caminho seguir: 1) os ultranacionalistas que defendem o fechamento das fronteiras em nível integral (antes que se queira utilizar o presidente Donald Trump como exemplo, explicaremos mais para a frente que o presidente dos Estados Unidos não se encaixa nessa categoria); e 2) os progressistas que defendem uma abertura desregrada e aparentemente benevolente para abrigar todos os necessitados.

Houve vários debates no Brasil por causa da portaria nº 666 de 2019 do Ministro da Justiça Sergio Moro[2] – uma medida importante para o debate sobre a migração, no sentido de concretizar uma ação equilibrada e prudente dentro da República brasileira. Longe de uma análise meramente ideológica, podemos falar sobre o tema com base na realidade empírica, seleção de riscos, medição da empatia, e percepção da verdadeira piedade, sem descartar a responsabilidade que deve estar presente nas medidas tomadas pelo governante, e dos nossos requerimentos enquanto cidadãos e cristãos.

O primeiro ponto importante que nós, enquanto brasileiros, devemos considerar, é a lição que David Platt nos deixa em seu livro Contracultura, escrito para tratar da natureza do chamado compassivo que deve nos acompanhar: esta convocação deve influenciar diretamente nossas pautas políticas e avaliações legislativas, o que nos faz estar “amparados pela sabedoria de Deus, como cidadãos compassivos, temos de amar as almas imigrantes em nossa comunidade. […] É preciso considerar como aplicar o evangelho no âmbito de uma multiplicidade de cores e culturas para a glória de Deus.”[3] Isto não implica em esquecer que o governo é instrumento de Deus para “punir os praticantes do mal e honrar os que fazem o bem” (1Pe 2.14) – se o governo tem a função perante o seu povo, da mesma forma ele deverá agir com aqueles que desejam viver em um determinado país, a saber, o estrangeiro.

  1. O Estrangeiro na perspectiva das Sagradas Escrituras

Na Escritura encontramos diversas situações em que o estranho participa da rotina do povo de Israel. Quer seja para descrever uma nação pecaminosa, como em Isaías 1.7 (“A vossa terra está assolada, as vossas cidades, consumidas pelo fogo; a vossa lavoura os estranhos devoram em vossa presença; e a terra se acha devastada como numa subversão de estranhos”), ou para retratar nossa condição universal perante Deus, conforme 1Crônicas 29.15 (“Porque somos estranhos diante de ti e peregrinos como todos os nossos pais; como a sombra são os nossos dias sobre a terra, e não temos permanência”). Trazer apenas um dos lados da moeda empobrece o debate e não produz os frutos necessários para que alcancemos uma concepção sóbria a respeito do assunto: precisamos entender o conceito de refugiados no sentido bíblico e responder até aonde vai a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Ao olhar para esses textos e seu chamado para amar o peregrino ou estrangeiro, no entanto, é preciso ter cuidado para não se transferir para o estrangeiro uma interpretação contemporânea ou lê-los de maneira anacrônica. Uma abordagem comum a tais textos das Escrituras hoje tenderia a argumentar que o amor ao próximo imigrante nas Escrituras supera preocupações importantes relacionadas à lei de imigração. Deve-se notar, no entanto, que os imigrantes nos tempos do Antigo Testamento não viviam em nossa era moderna de Estados-nação soberanos onde a imigração de estrangeiros é discutivelmente muito mais regulamentada de acordo com a lei estatal. Embora os mandatos bíblicos de amar e acolher o estrangeiro em nosso meio como nosso vizinho permaneçam como a lei de Deus, não podemos ignorar as demandas que as leis civis impõem aos cidadãos e imigrantes nos contextos contemporâneos dos EUA e internacionais. Além disso, devemos afirmar o direito do Estado de estabelecer leis e políticas relativas a assuntos como imigração, incluindo leis que limitam a imigração de várias maneiras para a proteção e bem-estar de seus cidadãos. Assuntos como segurança nacional e tráfico de pessoas, por exemplo, são áreas legítimas e necessárias de governança, que buscam restringir o mal e promover o bem (Rom. 13: 3-4).[4]

O primeiro ponto importante, é que a pauta dos refugiados vai muito além das questões econômicas e de conflitos – além do problema que pode envolver os refugiados, é importante reconhecer que nas Sagradas Escrituras encontraremos as devidas ponderações para que a ordem não seja subvertida em face da recepção do estrangeiro. Por este motivo, a Bíblia orienta em tratar as experiências no quesito dos movimentos migratórios. Em Deuteronômio 26.5 encontramos o povo de Deus como estrangeiro, sofrendo maus tratos, aflição e perseguição por parte do povo egípcio – tais termos, naturalmente, possuem uma conotação negativa a respeito da perseguição e atraem o livramento de Deus para o povo de Israel, conforme disposto no versículo 8.

Já em Josué 17.12, Juízes 1.21, assim como em outras passagens do Antigo Testamento, encontraremos situações envolvendo a participação de estrangeiros no meio do povo de Israel. Entretanto, a acolhida também implicava que o estrangeiro observasse as leis do país – como por exemplo em Neemias 13.15-22, em que o profeta percebe a não observância do sábado – inclusive por parte dos tírios que traziam mercadorias para vender – e age a fim de que todos comportem-se em observância à lei, vedando a ida dos comerciantes estrangeiros no sábado para realizar as práticas de mercado. Eles deveriam estar sujeitos à lei civil do povo de Israel. Logo após, nos versículos 23 até o 29, encontraremos a reprovação do profeta ao casamento misto, e, em seguida, o que Neemias elenca como limpeza de toda estrangeirice.[5]

Este cuidado com todos os aspectos da vida se dá pois o Israel do Antigo Testamento é uma nação em aliança com o Deus eterno, e este pacto é regido por um código de leis revelado, a Lei (Torah).

Ela contém 613 leis – 248 positivas e 365 negativas – e abrange as esferas moral, social e cerimonial. Nenhuma área da vida deixou de ser tratada pela Lei. Por que Deus sentiu a necessidade de estar tão intimamente envolvido em todos os detalhes da vida dos israelitas? […] Os teólogos estabelecem […] razões básicas: Israel deveria ser: […] separado para um propósito. […] Israel deveria ser separado das nações para que pudesse ser uma luz para as nações, uma luz que tornasse conhecida a glória e grandeza de Deus.[6]

A passagem chave para tratar da responsabilidade que deveria ser cumprida, tanto por parte de quem recebia, quanto do estrangeiro que era recebido, está em Gênesis 17.9-14, que trata da constituição da circuncisão como obrigatória para o povo da aliança, e para qualquer pessoa que não fosse da estirpe israelita.

Dentre as provisões do Pacto da Lei, percebe-se que há uma série de motivos para que a legislação fosse cuidadosa com os estrangeiros. Assim como o estrangeiro deveria ser tratado com justiça e equidade, a comunidade israelita deveria ter sua crença e integridade preservadas, o que consiste em uma cobertura dos aspectos econômicos, religiosos e políticos: (1) Era proibida a associação entre israelitas e estrangeiros (Êx 23.23-25; Dt 7.16-26 – isto para que o povo não se afastasse da revelação bíblica de que existe um único e soberano Deus eterno; (2) Os israelitas não poderiam firmar pactos com outros povos, e principalmente, com os deuses destes povos (Dt 7.2); (3) O povo foi recomendado a não pesquisar, ou efetuar qualquer enlace ou imitação, com os estrangeiros (como na Cartago, norte da África, em que havia o sacrifício de crianças), conforme disposição de Deuteronômio 12.29-31. (4) O estrangeiro não podia participar da vida política, mais especificamente no quesito de eleição e deveres do rei (Dt 17.15).

Apesar de tais considerações, encontramos argumentos que taxam como inválido para análise da pauta dos refugiados aquilo que está disposto no Antigo Testamento – o que é um equívoco. Se analisarmos as motivações que estão no interior de todas as decisões legais presentes no arcabouço do povo de Israel, teremos esclarecida uma série de fatos que continuam a mover as diferentes legislações, a nível internacional, sobre o equilíbrio entre recepção responsável dos refugiados, e firmeza para imposição da penitência, em caso de necessidade.

Que a legislação presente no Antigo Testamento possui um caráter pedagógico isso é um fato.[7] Entretanto, indo mais além de questões de orientação para os nossos dias, o Novo Testamento corrobora aquilo que está no Antigo Testamento. Das situações mais proeminentes que confirmam tal assertiva, podemos colher o ensino de Cristo presente em Mateus 5.17-18, onde Cristo salienta a sua missão primaz de cumprir a lei. Na mesma toada, a passagem de Mateus 22.34-40, que faz menção e reverbera o conteúdo presente na lei do Antigo Testamento. A estrutura base da questão legislativa no Antigo Testamento gira em torno de mandamentos de ordem política e social, motivados por princípios éticos e teológicos. Buscamos inspiração tendo em vista que a lei temporal, a de ontem e a de hoje, tem inspiração na lei eterna – cabe a nós perceber e filtrar o tema de forma equilibrada:

Como afirmado acima, ao usar mandatos bíblicos na igreja para amar e acolher o estranho, não podemos ignorar a distinção entre reinos espirituais e temporais. É também o caso que, ao desenhar distinções entre Israel e os estrangeiros, o Antigo Testamento não oferece posições vinculativas ou políticas sobre a lei de imigração em geral ou ‘ilegal’ à imigração estritamente falando. Algumas abordagens para os textos das Escrituras que lidam com imigrantes podem tentar usar os dados bíblicos para defender ou justificar formas particulares de aplicação da imigração hoje. Os cristãos não devem usar o Antigo Testamento, no entanto, para argumentar por amor do imigrante de maneiras que diminuem o significado do Estado de Direito como ele funciona nos Estados-nação hoje. Da mesma forma, os cristãos devem ser cautelosos sobre o uso de distinções particulares entre Israel e os estrangeiros feitos no Antigo Testamento para defender formas particulares de lei de imigração ou de aplicação da lei hoje, ou para argumentar que tais distinções bíblicas antigas podem ou devem ser replicadas em termos de relação entre cidadãos e nacionais estrangeiros em Estados-nação contemporâneos.[8]

No mesmo sentido que utilizamos a lei do Antigo Testamento para justificar modelos governamentais que são úteis para os nossos dias, o tratamento equilibrado entre justiça e piedade é um imperativo básico para o nosso pensamento enquanto cristãos em busca do efetivo engajamento cultural na política do nosso país.

Longe de ser um artigo que busca defender apenas um lado da moeda, vale ressaltar como a visão luterana trata a respeito do tema, entendimento este que guarda estrita semelhança com várias igrejas evangélicas históricas, dedicando-se no debate sobre a imigração de forma sóbria, nas palavras de Gerald B. Kieschnick:

Deus, em Sua Palavra, mostra consistentemente Sua preocupação amorosa com ‘o estrangeiro em nosso meio’ e direciona Seu povo a fazer o mesmo. […] Para cumprir nossa obrigação cristã, também solicitamos que o ato de caridade de prestar assistência a estrangeiros sem documentos que não estejam envolvidos em atividades ilegais não seja criminalizado ipso facto.[9]

Tais questões não se confundem com a perspectiva salvífica do Novo Testamento, que esclarece o alcance do sacrifício de Cristo no mundo, a saber, todos os povos, sem exceção, devido ao ganho de uma nova personalidade cristã, como se aprende em Colossenses 3.10-11.

2. Implicações no século XXI

Assim como a legislação do Antigo Testamento não deixou de equilibrar a recepção dos refugiados com a repressão em casos de necessidade, o ordenamento jurídico brasileiro, temperado com questões específicas do nosso tempo presente, também é regido por alguns moldes semelhantes ao da antiguidade judaico-cristã. Quando percebemos a preocupação do legislador em o povo não perder sua fé em Deus para crenças pagãs no Antigo Testamento, logo lembramos da ameaça do multiculturalismo hoje, que tem como centro de seu objetivo a perseguição cultural local tradicional, conforme preleciona Theodore Dalrymple: “na imaginação empobrecida dos multiculturalistas, […] todos os que não pertencem, por nascimento, à cultura predominante estão empenhados numa luta conjunta contra a tirania opressiva e ilegítima”[10] – por este motivo nossa legislação entende que deve ser impedido, sumariamente, a permanência de pessoas perigosas, que tenham praticado atos contrários aos princípios e objetivos dispostos na Constituição brasileira – assim como cidadãos brasileiros, os estrangeiros que vivem aqui, se não andarem conforme as vias legais, estão passiveis de deportação sumária.

A política de imigração ilimitada na Europa, patrocinada por esquerdistas, deveria servir de lição de que o multiculturalismo dá certo até que um país receba uma cultura intolerante, como o islamismo – como se evidencia no aumento de crimes sexuais cometidos por refugiados islamitas na Alemanha e que não aparecem nas estatísticas oficiais, para não alimentar sentimentos anti-imigração.

Quando imigrantes não querem se integrar à sociedade, forçando o país hospedeiro a aceitar rituais e crenças externas, ao mesmo tempo que a cultura do país é destruída, com os nacionais se tornando marginalizados em seu próprio país, tem-se o fim de qualquer economia, da democracia, e o próprio colapso da cultura da nação hospedeira – o que caracteriza suicídio civilizacional.

Não faz sentido preparar a nação para o recebimento de refugiados, sem manter os cuidados necessários para que a liberdade religiosa e segurança sejam preservados. A necessidade deve ser encarada sob alguns pilares importantes, a saber, (1) o refugiado pode vir por motivos de perseguição religiosa – como os cristãos que estão fugindo da situação de países que:

[…] perseguem e restringem a liberdade de culto e pregação cristã […] Afeganistão, Arábia Saudita, Somália, Sudão, Turquia, Iêmen, Índia, Nigéria, Filipinas, República Popular da China, Cuba, Coreia do Norte e Vietnã. Hoje em dia, 200 milhões de cristãos vivem sob a ameaça de assédio, prisão, tortura e execução.[11]

O refugiado religioso vem em razão da opressão sofrida em seu país de origem – sua composição vem no quesito de necessidade, busca por proteção e disposição para o cumprimento das leis brasileiras, o que não se confunde com aquele que vem fantasiado de refugiado, utilizando a falsa condição apenas como fachada para efetivar atos como o estabelecimento de religiões que autorizam ou fomentam práticas violentas.

A diferença entre a antiguidade e nosso tempo presente é que a ameaça de mudança religiosa e cultural vem vestida de boas intenções, ou se aproveita da cooperação internacional para efetivar seus intentos. Não se trata de pessoas de diferentes religiões ou nacionalidades vivendo em paz, no mesmo solo. A questão atual está na desestabilização da soberania nacional e na varredura da cultura cristã ocidental, bem como de sua religiosidade.

A motivação para isso não pode ser definida como proselitismo religioso, em que a pregação e o convencimento para a mudança de religião pode acontecer – isto é permitido por lei e um dos pilares do Estado laico colaborativo brasileiro. Na verdade, o multiculturalismo é orientado por pura aversão ao cristianismo, onde determinados grupos políticos e religiosos se utilizam das leis migratórias e do acolhimento como meio para alcançar um fim: promover uma mudança geopolítica.

A média anual de cristãos mortos desde 1950 chega a 270 mil. Na atualidade, os cristãos continuam a ser perseguidos, especialmente em áreas onde o comunismo, o totalitarismo islâmico e o hinduísmo político tomaram o poder, respectivamente, na América Latina, na África e na Ásia. […] No Ocidente, o radicalismo iluminista luta para privatizar a fé cristã, gerando intolerância e discriminação.[12]

Quando um grupo religioso ou político atenta contra a soberania nacional e a dignidade da pessoa humana (nomes extensivos para abraçar a religião, a liberdade de pensamento e expressão), eles devem ser tratados conforme a legislação em caráter repressivo (o que não difere do objetivo do legislador no Antigo Testamento que buscava a preservação do povo, de sua fé e de suas práticas).

 (2) O refugiado econômico: aquele que vem devido a situação financeira precária do seu país de origem, em busca de emprego e renda para sustentar a si mesmo e aos familiares. Um exemplo é a imigração haitiana no Brasil, que iniciou com força em 2010, devido a questões da natureza, como a sequência de terremotos – fato este que tirou o mínimo de estabilidade do povo haitiano –, além de questões políticas. Estes motivos levaram o povo haitiano a recorrer à imigração, buscando refúgio no Brasil, sobretudo, em busca de oportunidades de trabalho.

Para tratar desta modalidade de refugiado, é mister reconhecer que o discurso progressista não está naquilo que podemos considerar como efetivo no combate à injustiças e a pobreza. Quando a pauta dos refugiados ultrapassa aquilo que no Direito entendemos como cooperação internacional[13] e é orquestrada para consolidação do multiculturalismo e do progressismo, encontramos, mais uma vez, a subversão de um bom instituto.[14]

Aquilo que, por natureza, deveria ser uma busca pela redução da pobreza, torna-se um meio de ressignificação da cultura, além de estratégia para consolidar pautas como a legalização do aborto e propagação do ideal gnóstico feminista. A mesma causa fundamental e subjacente que deu origem à pobreza (a saber, o pecado), ganha mais corpo no coração da militância que se utiliza dela como instrumento político. As questões econômicas que dão ensejo à pobreza material, podem ser utilizadas como estratégia para consolidar outras cosmovisões simpáticas ao sistema progressista, o que já é o caso de países como os Estados Unidos:

Nesse cenário, uma nova recessão econômica atingiu as principais economias ocidentais, deixando os mercados mundiais em polvorosa. Como desdobramento do Iluminismo e do racionalismo, o secularismo se tornou a cosmovisão dominante na Europa Central e no norte dos Estados Unidos. Com isso, as novas palavras de ordem se tornaram o relativismo, o politicamente correto, o multiculturalismo e a compreensão de laicismo oriunda da revolução francesa, apregoando a liberdade da religião.[15]

2.1 O que não é acolhimento efetivo de refugiados

É importante dizer o que efetivamente não é projeto com fim de promover a dignidade da pessoa humana por meio da imigração. Quando pessoas de outras origens religiosas e políticas se utilizam da cadeira pública para ditar sutilmente interesses que são contrários aos pilares fundacionais de uma nação, precisamos compreender os riscos.

O que ocorre no Congresso norte-americano é um exemplo preocupante. Já temos uma congressista de origem porto-riquenha, Alexandria Ocasio Cortez, que defende a abolição da Agência de Imigração e Fiscalização Aduaneira do governo; outra de origem somali, Ilhan Omar, que acusou a Comissão de Assuntos Americanos de pagar para influenciar políticas pró-Israel, uma terceira de origem palestina, Rashida Tlaib, que vestiu um traje palestino tradicional em seu juramento, e Ayanna Pressley – ferrenha defensora do aborto.[16]

O que estas figuras têm em comum? Todas são comprometidas com uma agenda de repaginação confessional dos EUA, mediante o preenchimento dos centros de poder. Foram beneficiadas transversalmente pela política de migração, e se utilizam desta bandeira para afrontar as raízes estadunidenses. São severamente contrárias à gestão Trump, condenando a estrutura que tem por objetivo valorizar a cultura cristã no país.[17]

Diferente do que os movimentos progressistas asseveram, o rigor da nova política de migração norte-americana não extinguiu o direito dos imigrantes de ter acesso ao devido processo legal, muito menos de buscar os meios necessários para validar sua permanência nos EUA – as deportações não são feitas de maneira arbitrária, e o imigrante que busca validar sua situação no país tem total apoio da comunidade norte-americana.[18] Existem, inclusive, as chamadas Office for Immigrant Advancement (Clínicas de Imigração),[19] onde advogados de imigração avaliam os casos, sem custo.[20]

A imigração legal e controlada é algo bom e benéfico, mas o que se vê nos Estados Unidos e sobretudo na Europa é uma invasão. Somente em 2015 entraram cerca de 2 a 3 milhões de imigrantes na Europa, e desde 2000 cerca de 1 milhão de imigrantes tem tentado entrar todo ano nos Estados Unidos (onde há hoje 37 milhões de imigrantes ilegais). A continuar assim, que se escancarem logo as fronteiras, acabe-se com os Estados-nação e que se estabeleça logo um governo mundial sob a ONU, que imponha a “ditadura do pensamento único” e do “fascismo do bem”.

3. Caridade e responsabilidade

A premissa de Deuteronômio 15.4-6 é muito importante para orientar nosso diálogo a respeito dos refugiados. Tratar sobre cosmovisão cristã implica em lembrar da figura de linguagem tecida por Cornelius Van Til, que traz o pecado como óculos amarelados que inviabilizam a visão límpida que Deus deu ao homem. Tal subjetividade não pode afetar nossa visão a respeito dos refugiados, tanto para nos lembrar que devemos estar engajados em promover refúgio aos necessitados, quanto para proteger a nação contra qualquer tentativa estrangeira de dominação.

Entretanto, não haverá pobre algum no teu meio (pois o Senhor certamente abençoará na terra que o Senhor teu Deus, te dá por herança para possuíres), desde que ouças com atenção a voz do Senhor, teu Deus, cuidando para cumprir todo este mandamento que hoje te ordeno. Porque o Senhor, teu Deus, te abençoará, como te prometeu. Assim, emprestarás a muitas nações, mas não tomarás emprestado; e dominarás muitas nações, mas elas não te dominarão.

O mesmo povo orientado por Deus a amar o estrangeiro (Dt 10.17-19) é conduzido a não perder sua soberania. Tal fato nos indica que também não devemos deixar toda a responsabilidade de auxiliar os verdadeiros refugiados nas mãos do Estado.[21] É função do Estado viabilizar a proteção à pessoa humana, e reprimir em casos de inobservância da lei. E nós, no alcance das nossas relações, no âmbito da nossa vocação, também podemos cumprir esta missão dada por Deus.

Usar a ferramenta do empreendedorismo como forte instrumento de inclusão é um dos meios que beneficiam pessoas em situação de risco a viver uma vida com trabalho e dignidade, beneficiando refugiados políticos, religiosos e econômicos. Trata-se de investir em pessoas que possuem soluções inovadoras para os maiores desafios sociais, culturais e ambientais da atualidade.[22] Longe do Estado assistencialista que haverá de arcar com altíssimos custos, tal modalidade de empreendedorismo contribui para a formação de pessoas independentes e conta com o apoio de empresários que desejam investir na formação de pessoas e preservação da dignidade da pessoa humana.

Quando tratamos de liberalismo econômico, duas preocupações são colocadas na mesa: o trato para com os mais pobres, e a metodologia de crescimento econômico para os refugiados. Ambas as questões, nunca foram devidamente resolvidas com políticas socialistas que: (1) aos mais pobres, fornece programas de assistência social defasados, existentes em detrimento dos altos impostos e incapazes de atender toda a demanda; (2) não fornece uma condição de vida digna aos refugiados, que, salvo tenham alguma ideia fenomenal e apoio privado para criar uma microempresa, ficam dependendo dos mesmos programas fracassados do governo que são oferecidos aos mais pobres nacionais. Tanto para a questão da pobreza, quanto para refrear o fracasso de algumas políticas para refugiados, a condução para independência financeira é o segundo passo importante que nós, enquanto participantes do governo, eleitores e fiéis, devemos estar preparados para promover.

O primeiro passo essencial é um bom mecanismo de filtragem – análise de necessidade, facilitação de regularização para pessoas honestas e verdadeiramente necessitadas, firmeza para agir com os mecanismos penais em caso de perigo à soberania nacional. O segundo passo é saber como manter, de forma viável, os nossos hóspedes, ensinando-os a caminhar com independência financeira em relação ao Estado, além de possibilitar o retorno à máquina pública, com a geração de novos empregos, o aumento de empreendedores que atendam a classe baixa, média e alta, e assim por diante. São pontos que podem ser explorados por líderes religiosos, economistas, cientistas políticos e afins – mas só surtirão efeito longe de análise socialista, que alimenta uma dependência doentia ao Estado.[23] Pois o verdadeiro amor pode oferecer um peixe, mas, sobretudo, ensinará a pescar.

_________________________
[1] João XXIII, Carta Encíclica Pacem in terris: http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html.

[2] A Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a suspensão da portaria, através de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), alegando que a portaria viola princípios constitucionais e promove tratamento injusto ao estrangeiro. Discordamos da posição da Procuradora, por se tratar de uma portaria que vem para garantir proteção ao Brasil contra qualquer ameaça terrorista, assim como atos que venham a ferir a soberania nacional em face de pessoas perigosas e desobedientes às leis do Brasil. 2.1 A portaria também sofreu alterações depois de muita pressão de instituições progressistas; o termo “deportação sumária” foi retirado – veja mais em: < https://www.oantagonista.com/brasil/moro-altera-portaria-666/ >

[3] David Platt, Contracultura (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 218.

[4] “Immigrants Among Us – A report of the commission on theology and church relations. A Lutheran Framework for Addressing Immigration Issues”, The Lutheran Church-Missouri Synod, p. 12 (tradução livre).

[5] Roland De Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 100: “Do ponto de vista religioso, Dt 14.21 certamente diz que um ger pode comer de um animal morto, mas Lv 17.15 proíbe isto aos estrangeiros residentes como aos israelitas. Por outro lado, estão sujeitos às mesmas prescrições de pureza, Lv 17.8-13; 18.26; Nm 19.10. Devem observar o sábado, Êx 20.10; Dt 5.14, o jejum do Dia da Expiação, Lv 16.29. Eles podem oferecer sacrifícios, Lv 17.8; 22.18; Nm 15.15,16 e 29, e tomam parte nas festas religiosas, Dt 16.11-14. Eles até podem celebrar a Páscoa com os israelitas, desde que sejam circuncidados, Êx 12.48,49; cf. Nm 9.14.”

[6] Aaron Armstrong, O fim da pobreza: o Evangelho, a nova criação e a necessidade de um Salvador (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 57.

[7] Não deixa de ser irônico alguns “cristãos progressistas” defenderem a imigração porque estrangeiros eram protegidos no Antigo Testamento, ao mesmo tempo que a Bíblia Hebraica também ensina temas que causam horror a estes: a legítima defesa, a guerra justa e a pena de morte. Assim também, a balança enganosa e o juiz que aceita peita são duramente condenados no texto bíblico; será que estes estão também empenhados em atacar a corrupção, pecado que indiretamente leva à miséria e degradação humana?

[8] “Immigrants Among Us – A report of the commission on theology and church relations. A Lutheran Framework for Addressing Immigration Issues”, The Lutheran Church-Missouri Synod, p. 14 (tradução livre).

[9]  Dr. Gerald B. Kieschnick and Rev. Matthew Harrison, A Statement Regarding Immigration Concerns  (June 2, 2006). (tradução livre).

[10] Theodore Dalrymple, A vida na sarjeta: o círculo vicioso da miséria moral (São Paulo: É Realizações, 2015), passim.

[11] Franklin Ferreira, A Igreja Cristã na história: das origens aos dias atuais (São Paulo: Vida Nova, 2013), p. 308-309.

[12] Franklin Ferreira, A Igreja Cristã na história: das origens aos dias atuais, p. 308-309.

[13] Princípio da cooperação internacional: um ato de mútua ajuda entre dois ou mais Estados-Nação para a finalidade de um objetivo em comum, que pode ser das mais diversas espécies: políticos, culturais, estratégicos, humanitários, econômicos. Veja mais em: https://jus.com.br/artigos/26542/principio-da-cooperacao-internacional.

[14] Também deve-se lembrar que a Síria, a Venezuela e o Haiti são exemplos de “estados falidos”. Estes não possuem os meios para controlar o fluxo de entrada e saída de seu território, de garantir a autenticidade dos documentos de seus nacionais, e de uma série de outras capacidades necessárias para a avaliação eficiente dos riscos envolvidos na admissão de um estrangeiro em outro país. A Europa já não está pagando preço alto por políticas migratórias de teor parecido?

[15] Franklin Ferreira, A Igreja Cristã na história: das origens aos dias atuais, p. 308.

[16] As congressistas são consideras pela mídia como “esquadrão alvo” de críticas feitas pelo presidente Trump. Veja mais em: https://noticias.r7.com/internacional/quem-sao-as-4-jovens-congressistas-que-trump-atacou-com-mensagens-consideradas-racistas-16072019.

[17] O deputado democrata Ted Deutch, da Flórida, fundador de uma forçatarefa bipartidária para combater o antissemitismo, disse que algumas das declarações de Omar e Tlaib “coincidem com argumentos antissemitas tradicionais”. Ver mais em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/02/deputadas-muculmanas-dos-eua-sao-acusadas-de-antissemitismo-por-republicanos.shtml.

[18] Aliás, a atual lei anti-imigração dos Estados Unidos – que reza que as pessoas encontradas entrando ilegalmente no país pelas forças de imigração são alvo de um processo criminal e permanecem detidas até uma decisão judicial – foi criada por Bill Clinton, aplicada por George W. Bush, Barack Obama e, agora, Donald Trump. A situação ocorrida em junho de 2018, quando imigrantes ilegais adultos foram separados dos menores, ocorreu porque o governo americano foi processado por mantê-los juntos, daí a origem do Flores Agreement, de 1997, durante o mandato de Clinton. Obama transformou a legislação para deportação em uma bagunça. E Trump terminou por revogar esse Acordo por meio de uma ordem executiva.

[19] “Nova Política de Imigração nos Estados Unidos”, Consulado Geral do Brasil (Boston). Disponível em: https://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/Boston/pt-br/file/Material%20informativo%20imigra%C3%A7%C3%A3o%20-%20fachada.pdf.

[20] Em abril de 2017 o Senado Federal, comandado pelo PMDB e PSDB, aprovou uma nova Lei de Migração, apoiada majoritariamente por partidos, ONGs e lobistas adeptos da esquerda e extrema-esquerda. Esta preconizava, segundo o Comitê Nacional de Refugiados (CONARE), tornar o Brasil o único país do mundo a igualar o imigrante ao cidadão. A lei estabelecia “condições de igualdade” entre brasileiros e estrangeiros, como o direito à Previdência Social, escolas e universidades públicas, atendimento no SUS, carteira de trabalho, bolsa família, seguro-desemprego e título de eleitor. Inclusive foi retirada da lei um inciso que incluía a proteção ao mercado de trabalho nacional. Em maio de 2017 o então presidente Michel Temer sancionou a Lei de Migração, com cerca de 30 vetos, dentre eles o artigo que liberava o trânsito de indígenas na fronteira, o que revogava as expulsões sumárias de quem houvesse cometido crime no Brasil e a anistia a ilegais que entraram no Brasil até julho de 2016. Temer, que ouviu as queixas da PF, do Ministério da Defesa e de diferentes setores da sociedade, também vetou a permissão para estrangeiros ocuparem cargos públicos. Foi suprimida, ainda, a concessão de residência a criminosos em liberdade provisória e a extensão do benefício a pessoas sem vínculo familiar direto. Em dezembro de 2018 foi lançado no Marrocos pela ONU o Pacto Global para a Imigração, que passa a considerar a imigração como um direito fundamental, orienta os estados signatários a fomentá-la e determina, até mesmo, a perseguição das opiniões contrárias a ele. Entre os países que se retiraram do acordo estão Estados Unidos, Chile, Israel, Itália, Liechtenstein, Hungria, Eslováquia, Polônia, Croácia, Bulgária, Romênia, Letônia, República Checa, Áustria, Austrália, Singapura e Argélia. Mas em telegrama emitido em 8 de janeiro de 2019, o Ministério das Relações Exteriores pediu a diplomatas brasileiros que comuniquem à ONU que o país saiu do Pacto Global para a Imigração. Ernesto Araújo, o novo ministro das Relações Exteriores, classificou o documento como “instrumento inadequado para lidar com o problema”. Para ele, “imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país”. Esse Pacto é uma interferência na soberania das nações. Aceitar um imigrante é uma prerrogativa do país anfitrião. Ninguém pode obrigar uma nação a receber imigrantes, como ocorreu na União Europeia.

[21] Em 2014 – quando já havia 42 mil imigrantes recebendo o benefício do Bolsa Família no país – a Secretaria Municipal de Direitos Humanos estimava que havia cerca de 370 mil imigrantes irregulares na cidade de São Paulo. Na atualidade o número de imigrantes irregulares nesta cidade pode chegar a um milhão. Em 2016 o número de imigrantes registrados pela Polícia Federal em todo o país teve um aumento de 160% em dez anos. O Estado brasileiro é incapaz de resolver seus problemas humanitários, milhares de pessoas morrendo na fila do SUS, cerca de 13,5 milhões de desempregados e violência sem controle. Desde quando um país neste estado tem condições de receber fluxo imigratório?

[22] Veja mais em: https://www.ashoka.org/pt-br/focus/empreendedorismo-social.

[23] Se já é preocupante, do ponto de vista da ética cristã do trabalho, a distribuição do bolsa família aos brasileiros sem critérios razoáveis que estimulem o beneficiário a sair da dependência do Estado, quanto mais perigoso é receber imigrantes iludindo-os com programas sociais que lhes garantiriam a sobrevivência. Na prática, a “terceirização” do amor ao próximo para o Estado está sendo estendida também à assistência e ao cuidado pelo estrangeiro.

"Direito Religioso" aborda questões teóricas profundas sem perder o olhar prático da experiência profissional dos autores, Thiago Vieira e Jean Regina, advogados especializados no atendimento a inúmeras igrejas e entidades confessionais no país.

Nosso desejo, ao publicar esta obra — agora em sua terceira edição revisada e ampliada —, é que ela seja uma ferramenta prática para pastores, presbíteros e demais líderes religiosos, auxiliando-os especialmente nas questões jurídicas diárias da igreja.

Publicado por Vida Nova

4 COMENTÁRIOS

  1. Gostei muito do artigo, conteúdo enriquecedor. Conteúdo da matéria Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Unicesumar onde Curso Teologia.

  2. Muito esclarecedora esta matéria,pois nos remete a uma visão mais ampla sobre os casos dos refugiados e as decisões de governantes do Brasil e de outros sistemas internacionais. observando com bastante clareza ao raciocínio e de uma
    forma minuciosa o conflito em uma decisão pode provocar na soberania de um país. Sem contar que este material foi muito importante para a minha pequisa universitária.

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