“Nas Sagradas Escrituras deve-se buscar a verdade e não a eloqüência (…) Devemos ler, com igual boa vontade, os livros simples e piedosos como os sublimes e profundos. Não te preocupes em saber se aquele que escreve é pessoa nomeada pela sua erudição; seja apenas o amor à verdade que te leve à leitura. Considera o que diz o livro e não leves em conta quem o escreveu. Os homens passam mas a verdade do Senhor permanece eternamente (Salmo 116.2). Deus fala-nos de diversas maneiras, sem acepção de pessoas.”
(Tomás de Kempis, em A Imitação de Cristo , São Paulo: Paumape, 1995, 17)
“A mente do homem, embora arruinada e pervertida em sua totalidade, ainda está revestida e ornada com os dons excelentes de Deus. Se considerarmos o Espírito Santo como único fundamento da verdade, não rejeitaremos a própria verdade, nem a desprezaremos, não importando onde ela apareça, a menos que desejemos desonrar o Espírito de Deus.”
(João Calvino, em Institutas da Religião , II, ii, 15)
Quando falamos em literatura hoje, logo imaginamos livros volumosos, empoeirados e– literal ou metaforicamente – “pesados”. Lembramos ainda de homens barbudos, de óculos tipo “fundo de garrafa”, escondidos atrás deles.
As pessoas mal se dão conta de que literatura não é só a coisa escrita – romances, poesias, contos, obras de referência; mas também a cultura oral, as trovas, as cantigas, as lendas, os mitos, a literatura de cordel e mais modernamente, os filmes e telenovelas. Há quem diga hoje que até um out-door , uma propaganda da televisão, um cartoon ou mesmo uma pichação de muro seja literatura.
E, de fato, lemos no Aurélio que literatura nada mais é, do que “arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso.” Mas é também o “conjunto de trabalhos literários de um país ou de uma época; os homens das letras; a vida literária; a carreira dos homens das letras; conjunto de conhecimentos relativos às obras ou autores literários; qualquer dos usos estéticos da linguagem; irrealidade; ficção; bibliografia; conjunto de escritos de propaganda de um produto industrial.” Assim, estaremos tratando aqui de um campo já bastante vasto e diversificado.
Mas o que pode a literatura ter a ver com a teologia e qual, a sua relação com o real? Esta pergunta nos remete logo às chamadas Sagradas Escrituras. Em que medida elas são literatura é uma questão que vamos deixar para outro momento, adiantando apenas que o assunto já gerou diversos debates e obras literárias.
Vamos nos limitar por hora ao que os antropólogos e filósofos em geral consideram a literatura mais antiga de todas: a mitologia. Apesar da sua etimologia não ser clara – a palavra mythos quer dizer lembrar / solicitação; pensamento ou expressão do pensamento, notícia, mensagem ou história – todos concordam que se trata de uma narrativa, focada em acontecimentos, que têm a pretensão de realidade. Por muito tempo, filósofos com Wundt, Tylor e Frazer, entre outros do final do século XIX e início do século XX, acreditavam que o mito, da mesma forma como a imaginação, considerada sua fonte, era uma expressão pré-lógica e subdesenvolvida do homem, que se contrastava com a realidade. Até no campo teológico passou-se a discutir como é que se deveria entender certos registros do Antigo Testamento, como a travessia do Mar Vermelho, por exemplo. Surgem, então, tentativas de demitização, como as de Rudolf Bultmann e dos organizadores do livro de referência E a Bíblia Tinha Razão , que nada mais são do que racionalizações e esvaziamentos de todo o sentido original dos mitos: o de remeter-nos à transcendência. Para tais autores, não se trataria então de buscar a realidade das narrativas mitológicas, mas tão somente de interpretá-las.
Mais recentemente, a psicanálise entrou no debate acerca dos mitos, associando-os, como fizeram Jung e Campbell, ao mundo psíquico e dos sonhos. Os antropólogos também chegaram à conclusão de que algumas narrativas de estrutura semelhante – como as do dilúvio e da criação, bem como os arquétipos do animus e anima (lado masculino e feminino da personalidade) e do eu – são equivalentes em todas as culturas. Mas como é que todas as culturas podem ter sonhos ou “ilusões”, como queria Freud, tão parecidos um com o outro? Quem explica, em uma sociedade pautada pelo relativismo, como eles se universalizaram?
Já outros pensadores mais recentes, como Mircea Eliade, Roland Barthes e Gaston Bachelard, acreditam que, para além da imaginação, existe algum fundamento dos mitos na realidade objetiva. Eles seriam veículos ou mediadores dos conceitos humanos, seguindo uma lógica própria e remetendo ao transcendente, ao cosmos e, além dele, ao eterno e “numinoso”. Daí a sua estrutura metafórica e busca de sentidos originários tanto do cosmos quanto do próprio homem, em uma íntima solidariedade. Assim, além de veicular sentidos, o mito seria também capaz de atribuir sentido por meio do relato de atos instauradores , o que permitiria que ele se alterasse, sem perder a estrutura una, de acordo com as mudanças históricas.
Infelizmente, porém, a maioria dos que estudam os mitos – como o argentino José Severino Croatto, que afirma que o objetivo do mito é sempre existencial e não intelectual ou didático – ignora a contribuição de pessoas provenientes da própria área de literatura e filologia, como os ingleses C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien, para quem os mitos são a forma mais primitiva da poesia.
A partir da sua leitura e paixão pelos mitos, que se aproximam dos contos de fada e da nossa literatura romântica e idealista em geral, Lewis e Tolkien notaram que todas essas formas de literatura apontam poderosamente para a transcendência. Eles concordam que esse tipo de literatura nos remete àquilo que outros filósofos chamam de mysterium tremendum , ou seja, o maior de todos os mistérios: Deus. A mitologia de qualquer lugar ou época gira em torno de um mesmo tema: um deus que morre, ou seja, descende, e volta a ascender. Lewis chegou a dizer que a própria teologia, ou seja, o logos sobre Deus, é poiesis porque é conhecimento do homem criado à imagem e semelhança do Criador, de acordo com as Escrituras. No original grego de Efésios 2.10, por exemplo, o homem é definido como poiema , palavra que infelizmente foi traduzida em muitas versões brasileiras por “feitura”.
No próximo artigo aprofundaremos a contribuição desses autores, que não amavam só a poesia, mas antes de tudo o Poeta, para lançar luz nesse mistério que une os mitos de todas as culturas e nos remete a temas existenciais, que também se encontram no cerne da teologia (Exemplos: Salmo 19.1 ss, 102.25; Isaías 64.8).