A Bíblia como literatura: entrevista com Leland Ryken

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A Bíblia é um tesouro inestimável que, além de sua natureza sobrenatural, se destaca como uma obra-prima de literatura. Em outubro, Edições Vida Nova lançará a primorosa obra Uma introdução literária à Bíblia, de Leland Ryken, estudioso da Bíblia e Literatura, e, para explorar mais sobre o assunto, convidamos o autor para uma entrevista exclusiva à revista Teologia Brasileira.

Leland Ryken (PhD, University of Oregon) é professor emérito de Literatura Inglesa no Wheaton College. É orador frequente nos encontros anuais da Evangelical Theological Society e serviu como orientador de estilo para a edição da English Standard Version Bible. É autor, coautor ou editor de quase quarenta livros, entre eles, A complete handbook of literary forms in the Bible, Effective Bible teaching e Pastors in the classics.

Teologia Brasileira: Que tipo de livro é a Bíblia?

Leland Ryken: Para os fins desta entrevista, a resposta correta é que, em sua forma externa, a Bíblia é uma antologia literária. Uma antologia é uma coleção de textos escritos por múltiplos autores ao longo de muitos anos ou séculos. Além disso, uma antologia geralmente é composta por múltiplos gêneros ou formas literárias. É exatamente isso que encontramos na Bíblia. O resultado é que a Bíblia é um livro notável por sua variedade, em contraste com a tendência comum de reduzir a Bíblia a um único tipo de material.

Teologia Brasileira: O que significa ler a Bíblia como literatura?

Leland Ryken: Este é um tópico muito amplo, mas o princípio fundamental é que ler a Bíblia como literatura requer que a leiamos de acordo com o tipo de livro que ela é. É assim que devemos ler qualquer obra escrita. A Bíblia é em grande parte composta por textos literários, portanto, para lê-la de acordo com o tipo de livro que é, precisamos aplicar métodos comuns de análise literária. Isso começa reconhecendo que uma obra literária não é um sistema de entrega de uma ideia, mas sim a apresentação da experiência humana, retratada de forma tão concreta que vivemos as experiências vicariamente em nossas mentes. Um segundo traço fundamental da literatura é que ela é expressa em gêneros distintamente literários, como história e poesia, portanto, isso também faz parte de nossa definição de como ler a Bíblia como literatura. Uma resposta mais detalhada sobre como ler a Bíblia como literatura pode ser encontrada em meu livro “Uma introdução literária à Bíblia”.

Teologia Brasileira: Existe uma unidade literária na Bíblia?

Leland Ryken: Apesar da diversidade de suas partes, a Bíblia possui vários elementos unificadores. A estrutura geral da Bíblia é uma história ou narrativa que possui um começo, um meio e um fim, como todas as histórias. De uma perspectiva, a história predominante da Bíblia é a narrativa da história universal da raça humana. Também é a história da salvação de Deus da humanidade caída, comumente chamada de história da salvação. O personagem central e unificador na história é Deus, e nenhuma pessoa ou ação pode ser compreendida sem referência a esse poderoso protagonista. Todas as histórias têm um conflito central na trama e, na Bíblia, é um conflito entre o bem e o mal. Um ponto final importante de unidade é que a Bíblia tem a unidade de uma antologia de diversos autores escrevendo em múltiplos gêneros ao longo de muitos anos.

Teologia Brasileira: Você afirma que a interpretação literária é um ato de descoberta, em vez de invenção. Pode elaborar sobre esse conceito e sua relevância para a leitura da Bíblia?

Leland Ryken: Dizer que a leitura e interpretação da Bíblia é um processo de descoberta significa simplesmente que a interpretação de um texto bíblico precisa ser indutiva. Isso significa que todas as conclusões que tiramos do texto devem surgir do próprio texto, em vez de serem impostas a ele. Existe uma tendência em nossos círculos de começar um sermão ou estudo bíblico afirmando uma ou mais ideias e, em seguida, buscar provas de apoio no texto. A premissa central de uma abordagem literária da Bíblia é o oposto disso. A primeira tarefa de um leitor ou intérprete é experimentar e reviver o texto o mais plenamente possível. Antes de tudo, um texto literário nos dá uma experiência de vida. Grande parte de seu significado é transmitido pelo próprio ato de reviver o texto. A história de Caim em Gênesis 4.1-16 transmite a maior parte de seu significado à medida que vivenciamos vicariamente os eventos da narrativa. Uma generalização resumida no final do processo é importante, mas captura apenas uma fração do que a narrativa como um todo representa.

Teologia Brasileira: Você explora a ideia da integridade do texto na análise literária. O que você quer dizer com isso e como isso se aplica ao estudo da Bíblia como literatura?

Leland Ryken: A integridade do texto significa que ele precisa ser permitido a revelar seus significados usando os métodos apropriados ao tipo de escrita que possui, ou seja, seu gênero. Uma narrativa revelará seus significados à medida que revivemos a ação. Um aspecto disso é que precisamos fazer justiça à especificidade do texto, começando com (mas não se limitando a) seu gênero ou gêneros. Isso é exatamente o que se perde quando cada texto bíblico é abordado como se pertencesse a um único gênero amorfo, que geralmente é assumido como um conjunto de ideias. A primeira coisa que precisa chamar nossa atenção quando começamos a ler uma história bíblica são considerações sobre enredo, cenário e personagem. Para fazer justiça a um poema bíblico, precisamos interagir com as imagens e figuras de linguagem.

Teologia Brasileira: Qual é o papel da imaginação ao ler a Bíblia?

Leland Ryken: O papel da imaginação não se aplica principalmente ao leitor, mas sim ao autor e à natureza literária do texto. A literatura é uma apresentação da experiência humana em uma forma artística. A palavra “imaginação” tem a palavra “imagem” embutida nela. A literatura representa seu objeto. Também atribuímos os elementos de forma em um texto à imaginação. Portanto, o trabalho da imaginação foi principalmente realizado pelos autores da Bíblia, que incorporaram seu conteúdo da maneira usual na literatura. Como leitores, exercitamos nossa imaginação seguindo o contorno que os autores traçaram. Por exemplo, se os poetas bíblicos pensam em imagens, nós, como leitores, também devemos fazê-lo. Isso é um ato de imaginação tanto pelo autor quanto pelo leitor.

Teologia Brasileira: Quais são os perigos de ler a Bíblia literalmente, ignorando seus mistérios, paradoxos e aspectos imaginativos?

Leland Ryken: É um princípio do discurso escrito e oral que declarações precisam ser interpretadas de acordo com a intenção do autor e a natureza inerente de uma declaração. Declarações literais precisam ser interpretadas literalmente, e declarações figurativas precisam ser interpretadas figurativamente ou não literalmente. Se violarmos esse princípio, simplesmente interpretaremos uma declaração de maneira equivocada. Deus não é literalmente um pastor, e Jesus não é literalmente luz. Eu ousaria dizer que, se tentarmos interpretar uma declaração figurativa literalmente, estaremos distorcendo completamente a declaração.

Teologia Brasileira: Você já falou sobre a importância da imaginação na leitura da Bíblia. Mas como a Bíblia em si pode moldar nossa imaginação, e qual é o impacto de uma imaginação formada pela Escritura na forma como nos envolvemos com outras obras literárias e artísticas em geral?

Leland Ryken: Tive uma carreira tão frutífera na área da Bíblia na literatura quanto na área da Bíblia como literatura. Eu vejo a relação entre a Bíblia e a literatura como uma via de mão dupla. Por um lado, lidaremos com os aspectos literários da Bíblia de maneira muito mais precisa se aplicarmos a eles o que sabemos sobre literatura em geral. Uma metáfora é uma metáfora, onde quer que a encontremos. Conflitos de enredo que se movem em direção à resolução de conflitos em narrativas bíblicas são semelhantes aos enredos de narrativas fora da Bíblia. Explorando a outra via, o que sabemos sobre a Bíblia e suas formas pode informar nossa compreensão da literatura em geral. Acredito que há algo elementar e prototípico na literatura da Bíblia. No meu ensino de literatura, quando apresento aos meus alunos de literatura inglesa uma forma como metáfora e narrativa, muitas vezes uso um texto bíblico para ilustrar minhas afirmações, como o Salmo 23 para metáfora e a história de Caim para narrativa ou história.

Teologia Brasileira: Quais autores você recomendaria para nutrir nossa imaginação?

Leland Ryken: Qualquer um dos autores clássicos ensinados em cursos de literatura nas escolas são bons mentores para nutrir nossa imaginação. Qualquer autor, mesmo um autor infantil, que evita explicar tudo de maneira detalhada e, em vez disso, incorpora ou personifica a experiência humana de forma concreta, afirma o princípio essencial da literatura. Além disso, alguns autores são melhores do que outros em nos proporcionar beleza verbal e uma arte cuidadosamente elaborada.

Teologia Brasileira: Como você vê a abordagem de pregação centrada em Cristo? É possível pregar Cristo em passagens da Bíblia onde a presença de Cristo não é muito evidente, respeitando ao mesmo tempo o gênero literário do livro?

Leland Ryken: Acredito em uma abordagem indutiva para um texto bíblico. Quando um texto do Antigo Testamento não é cristológico por natureza, deve ser permitido que ele seja o que realmente é e não forçado a dizer algo que não diz. Os pregadores, de fato, devem pregar Cristo, mas se um texto em si não possui esse elemento, a mensagem cristocêntrica deve ser claramente anunciada como um “acréscimo” ou aplicação do texto. Manipular um texto para extrair uma mensagem cristocêntrica — em vez de adicioná-la como uma explicação mais completa da fé cristã — não é uma maneira correta de lidar com a Palavra de Deus. Não precisamos mostrar e inculcar maneiras erradas de ler textos bíblicos individuais para pregar Cristo.

Teologia Brasileira: Às vezes, em suas pregações, pastores gastam muito tempo explicando o significado das palavras, discutindo o contexto histórico e explorando outros detalhes técnicos incorporados naquela passagem específica, o que pode fazer com que a pregação pareça uma palestra. Como nossa abordagem de leitura da Bíblia como literatura pode melhorar a pregação expositiva de uma maneira que evoca beleza e admiração?

Leland Ryken: Gosto da forma como você formulou a pergunta, especialmente seu comentário de que um sermão pode parecer uma palestra. Tendo em vista que muitos pregadores e professores não sabem como analisar um texto de acordo com sua natureza inerente, eles recorrem a substitutos. Um deles é abandonar o texto em favor de vários tipos de contexto, incluindo contexto histórico. Outra maneira de evitar o texto é extrair uma ideia dele e depois desenvolvê-la. O antídoto é experimentar e reviver o texto o mais plenamente possível. Isso nunca soa como uma palestra.

Teologia Brasileira: Certos gêneros da Bíblia, como poesia, parábola e profecia, empregam linguagem figurativa, que você discute em seu livro. Você pode fornecer exemplos que demonstrem como a linguagem figurativa afeta a experiência do leitor?

Leland Ryken: Este é um tópico multifacetado, então fornecerei apenas o início de uma resposta. A primeira coisa que a linguagem figurativa faz por nós é nos ativar no processo de leitura e interpretação. Por exemplo, uma metáfora ou comparação afirma que A é como B — assim como a metáfora de Deus como um pastor. Tudo o que o poeta faz é nos entregar a comparação. Cabe a nós decidir como A é como B. Por meio desse ato, somos participantes no processo de comunicação. Além disso, os poetas pensam em imagens, que podem ser definidas como qualquer palavra que nomeie uma ação ou coisa concreta. Os leitores também precisam pensar em imagens, e quando o fazem, entram em contato com a experiência cotidiana — com pastos verdejantes e águas tranquilas, por exemplo. A escrita expositiva ou informativa, como a usamos no discurso cotidiano, é transparente e carrega seu significado de maneira evidente. O discurso literário, como poesia e narrativa, é indireto e requer que o leitor desvende os significados.

Teologia Brasileira: Qual é o papel das emoções na literatura, incluindo a Bíblia? Como você analisa os aspectos emocionais dos textos bíblicos, e como os leitores podem se conectar com essas emoções?

Leland Ryken: O ponto de partida é desenvolver uma consciência dos sentimentos que despertam em nós quando lemos uma obra de literatura. Outra forma de dizer isso é que precisamos ser leitores introspectivos. Acredito que nomear essas emoções é uma forma legítima de análise literária. O discurso literário é afetivo (envolvendo as emoções) por sua própria natureza. Ao longo de meus anos ensinando literatura, tenho citado um estudioso literário que disse que a literatura comunica sua verdade afetando o leitor, e que o leitor sabe o que está sendo comunicado sendo receptivo aos seus efeitos.

Teologia Brasileira: O que é o realismo literário e como os cristãos devem lidar com ele na Bíblia?

Leland Ryken: O realismo significa várias coisas nos círculos literários. Uma delas é o impulso de retratar ou registrar o que realmente acontece em nosso mundo, em contraste com a fantasia, que se especializa em se afastar dos fatos empíricos da vida. Além disso, o realismo acredita em não ignorar os aspectos não idealizados da vida. Na verdade, à medida que o realismo se consolidava cada vez mais como a voz dominante na literatura moderna, passou a se concentrar nas experiências feias e sórdidas da vida. O realismo na Bíblia significa que os escritores incluem os aspectos depravados da vida no mundo caído, garantindo assim que a veracidade da vida tenha sido plenamente expressa. Mas o realismo da Bíblia nunca aprova o mal ou sugere que não podemos superá-lo, e oferece uma mensagem compensadora ou equilibradora de como a experiência caída pode ser superada. Também é importante notar que a Bíblia contém elementos de fantasia abundantes em suas seções visionárias e poéticas. A linguagem figurativa é semelhante à fantasia, afirmando que o que sabemos não é literalmente verdadeiro em nosso mundo.

Teologia Brasileira: Existe um gênero na Bíblia que é tipicamente mais “amigável ao leitor” para alguém que nunca leu a Bíblia e deseja começar?

Leland Ryken: O apelo da narrativa ou história é universal, em todas as idades. Um dos impulsos humanos mais universais pode ser resumido na frase “Conte-me uma história”. Portanto, as histórias da Bíblia são um bom ponto de partida para começar a se aprofundar na Bíblia como literatura. No entanto, preciso acrescentar a ressalva de que precisamos experimentar histórias como histórias — como uma interação de enredo, cenário e personagem, por exemplo. Ver uma história como um sistema de entrega de uma ideia não é experimentá-la como uma história. Outra ressalva que eu adicionaria é que não devemos ignorar a poesia da Bíblia simplesmente porque não é nossa forma comum de discurso. Aproximadamente um terço da Bíblia consiste em poesia. Deus obviamente espera que entendamos e desfrutemos a poesia. Acrescentaria também que, em praticamente todas as culturas, a poesia precedeu a prosa como uma forma bem-sucedida de escrita. Precisamos resistir à pressão em alguns círculos de não ensinar ou pregar a partir da poesia da Bíblia.

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