Vita Brevis ou Beata Vita? – parte I

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Depois de tantas reflexões sobre as relações entre teologia e literatura, com destaque à Bíblia, cabe conceder-nos uma pausa para apreciação de uma peça literária menos séria e mais leve. Optamos, dessa vez, pelo famoso romancista norueguês Jostein Gaarder, que se destacou por sua tentativa de elaboração de uma “história da filosofia romanceada” no famoso livro O Mundo de Sofia . Apesar de seus problemas de profundidade e procedência de certos dados, este livro certamente atingiu seu objetivo de acender o interesse dos adolescentes pela filosofia e leitura. Mas neste artigo, o livro que chama nossa atenção é o posterior Vita Brevis (Companhia das Letras, 230 pp., R$ 34).

Nesta obra, o escritor pretende esquadrinhar um aspecto bastante obscuro da vida de um dos filósofos e teólogos mais destacados da história: Santo Agostinho (354-430), Bispo de Hipona. Trata-se do seu envolvimento amoroso com Flória Emília, com a qual viveu por mais de 12 anos antes de se tornar um dos maiores líderes da Igreja. Teve com ela um filho, Adeodato, que morreu ainda jovem. Ao que tudo indica, puxando para o pai, Adeodato acabou assumindo, desde cedo, uma importante participação como interlocutor em diversos livros e ensaios do pai, tais como uma de suas primeiras obras, escrita depois de sua conversão, De Vita Beata , que pretendemos contrapor à obra de Gaarder, além de O Mestre e Solilóquios .

Como nos explica Gaarder no prefácio do livro, Vita Brevis é baseado em um manuscrito chamado Codex Floriae , descoberto pelo autor “por acaso” em uma feira de livros de Buenos Aires no ano de 1995. Gaarder alega ter pago US$ 12 mil pela carta, supostamente escrita por Flória a pedido – segundo ela mesmo – de um “padre de Cartago” que lhe havia dado acesso às Confissões (398) – obra que viria a se tornar central no pensamento de Agostinho. Depois de algumas pesquisas, Gaarder teria descoberto que se tratava de um documento do século XVI, provavelmente uma cópia de originais mais antigos que remontavam à época de Agostinho. Certas pistas o levam a concluir que só podia ser uma cópia feita e guardada a sete chaves nos mosteiros sul-americanos. “De minha parte, não tenho mais dúvidas sobre a autenticidade da carta. Tanto a sintaxe como o vocabulário do manuscrito são como se tivessem sido escavados da Antigüidade tardia, como também a mistura de sensualidade e reflexão religiosa quase desesperada de Flória”, escreve Gaarder (p. 12-13), dando mais uma pitada de suspense ao tema que viria a tratar.

Como conhecedor que é da sua arte, no pósfácio, o autor retoma o prefácio, frisando a aura de mistério tecida em torno do documento. Assim, ele conclui a obra deixando abertas uma série de questões e hipóteses, como a de que o documento tenha sido descoberto pelos árabes durante sua ocupação do norte da África, no século VII. Posteriormente, ele podia ter ido parar na Espanha e, de lá, trazido para a América Latina pelos conquistadores espanhóis. Mas a grande questão, ou “pulo do gato” do autor é a seguinte: “Terá Flória enviado sua carta a Aurel? Ou quando chegou o momento, não teve coragem? (…) Existirá ainda o pergaminho original? Estou, porém, interessado em outra questão: como Agostinho terá reagido à carta de sua amante de outrora? Que fez ele com essa carta? E que fez ele com Flória?” (p. 223-224) O autor encerra com uma chave de ouro de bom humor, citando uma carta desconhecida, que teria sido descoberta de fato por um estudioso, e lamenta a sua ingenuidade de não ter solicitado um recibo da Biblioteca do Vaticano. Ora, perguntamo-nos como ele poderia solicitar o comprovante se nem sequer foi essa entidade que lhe vendera a obra. Além desse tipo de inconsistência, o mais notório em tudo isso é que toda essa história baseia-se em uma única referência a Flória. “Sendo arrancada do meu lado (…) aquela com quem partilhava o leito, o meu coração, onde ela estava presa, rasgou-se, feriu-se e escorria sangue”, escreveu o filósofo. Não há nada mais registrado a respeito dessa mulher, nem sequer o seu nome, além de que “retirara-se ela para África, fazendo-vos voto de jamais conviver com outro homem e deixando-me o filho natural que dela tivera”.

Além de toda a discussão sobre a mudança de paradigma moral de Agostinho, da uma filosofia epicurista para uma aparentemente ascética e moralista, há um aspecto filosófico mais sutil em Vita Brevis. Trata-se da crítica velada ao machismo da época. Em certa altura da carta, Flória manifesta seu receio de enviar a carta, temendo as punições que poderia sofrer. Ela também demonstra mágoa na sua denúncia contra o interesse da mãe de Agostinho em conseguir um casamento “arranjado” para ele com uma moça rica, entre outras coisas, para que ele se livrasse da “plebéia” Flória.

Ela ainda se queixa da concepção que ela – ou melhor, que Gaarder – acreditava que Agostinho tivesse de Deus. Ela levanta a grave acusação de que essa era uma das razões que a impedia de querer batizar-se, apesar de ter entrado para a classe de catecúmenos. Nessa altura, Flória lembra de uma obra menos conhecida de Agostinho sobre o casamento, Dos Bens do Matrimônio . Neste livro, ele afirma que o casamento com uma segunda mulher é sempre adúltero, mesmo quando a primeira não passava de uma amante, desde que o amor tivesse sido autêntico. Flória queixa-se: “Tu me empurraste para longe porque me amavas demais, disseste. É normal, evidentemente, ficar ao lado de um parceiro amado, mas fizeste o oposto. Foi porque já tinhas começado a desdenhar do amor apaixonado entre homem e mulher. Pensaste que eu te levava para o mundo dos sentidos e assim não tinhas paz e calma para te concentrares na salvação de tua alma. Em conseqüência, nada aconteceu também em relação a esse casamento proposto. Deus deseja sobretudo que o homem viva em continência, escreves. Não tenho fé em um Deus assim. Que infidelidade, Aurel! De que traição sublime foste culpado quando me mandaste embora! De teu coração me apartaste, e teu coração ficou ferido e sangrou. Meu coração sofreu o mesmo ferimento, naturalmente, se isso significa alguma coisa, pois éramos duas almas rasgadas, ou dois corpos, se quisermos, ou, na verdade, duas almas em um corpo. Teu ferimento não sarava, ficou inflamado e terrivelmente doloroso até que acabou gangrenando e ficaste menos sensível à dor. Mar por quê? Bem, porque amavas a salvação da tua alma mais do que a mim. Que tempos, estimado bispo, que costumes!” (24-25). A denúncia de que a sua alma podia ter valido mais do que o amor por Flória pode ser pertinente até certo ponto, se considerarmos os vários escritos do autor sobre a alma (sua “potencialidade”, sua origem, etc.). Eles lhe renderam a fama de defender a inexistência de alma nas mulheres. Soma-se a isso o tratamento que era dado às mulheres na sociedade da época. Por outro lado, a forte impressão que se tem é que, ao invés de trazer “continência” à sociedade da época, que, como se sabe, era dominada pelas práticas pagãs de ritos e orgias, Agostinho empenhou-se em trazer “dignidade” não apenas à mulher, mas também ao casamento, que ainda era uma instituição pouco conhecida e praticada nos moldes atuais.

Em uma de suas obras centrais, Cidade de Deus , por exemplo, Agostinho advertia as comunidades que rejeitavam as mulheres que haviam sido vítimas de estupros pelos vândalos e perseguidores da Igreja. E nos dois tratados escritos “contra a mentira” e “sobre a mentira” ele arrola a mentira ou negação da fé sob a ameaça de punições corpóreas – como as sofridas pelos mártires da sua época –, particularmente pelas mulheres, como uma das falhas mais amenas e perdoáveis, ainda que não deixasse de ser mentira.

Na segunda parte deste artigo, abordaremos a rejeição de Agostinho a qualquer espécie de dualismo.

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