Politicamente omitido

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1981
A Teologia latino-americana tem uma dívida com acadêmicos que se engajavam politicamente durante as ditaduras

Participei de um encontro internacional denominado The Institute for Excellence in Christian Education, organizado pelo Overseas Council (OC), que tinha por tema o currículo no campo da Teologia. Fiquei impressionada com o alto nível pedagógico da conversa, já que se falou muito em mudança e adaptação do ensino e da formação de ministros aos novos tempos, principalmente por meio de um repensar crítico do currículo. Houve também vários relatos de experiências concretas de seminários que passaram pela construção coletiva de currículos, como rezam as cartilhas dos mais atualizados educadores contemporâneos. Na verdade, essa discussão encontra-se inserida na problemática do planejamento, que, por sua vez, está intimamente relacionada ao projeto político-pedagógico.

Mas, que pena, a parte “política” não havia sido convidada para o baile. Depois de meus dez anos de formação na notória (para alguns, famigerada) Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, não pude deixar (seria até uma afronta aos meus queridos, por quem sinto profunda gratidão e respeito) de me dar conta dessa falta. Exceto, é claro, por alguns poucos educadores que tive a honra de conhecer mais de perto, para troca de idéias, principalmente nos raros momentos de confraternização que nos restaram, que provaram consciência da importância do assunto, na prática e na teoria. Seria isso devido ao problema intrínseco à cultura latino-americana, e de associação de tudo quanto é cristão, principalmente de ala protestante, à ditadura e direita, que se associa intimamente ao fato de ter passado pela experiência da colonização? Por que todo esse tabu em torno do tema política?

Apesar dos avanços notórios do nível do discurso sobre o vasto tema da educação no campo da Teologia, relegada muitas vezes ao trabalho voluntário – falou-se, inclusive, em “currículo oculto”, termo cunhado há muito tempo, mas que certamente veio para ficar –, é do currículo oculto do evento que gostaríamos de falar. Pois, ironicamente, foi ele que entrou em destaque, já que aquilo que não se fala, o não dito, como diria T.S. Eliot, é o que mais interessa naquele momento. Pois é tão óbvio que, das duas, uma: é tão bom que as palavras só distorceriam e estragariam; ou representa uma ameaça tal que todos preferem aderir à filosofia do “deixa disso”.

Mas o que muitos ignoram é que a Teologia latino-americana tem uma dívida profunda com os acadêmicos que se engajavam politicamente, sendo expropriados em épocas de ditaduras e declarados hereges por cristãos de ambos os lados: entre eles estão Rubem Alves, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Lina Boff, Frei Betto etc.

Não estou aqui defendendo a teologia da libertação, mesmo porque estamos vivendo tempos bem diferentes daqueles em alguns aspectos. E os “teólogos da libertação” mesmos já se deram conta disso. O que defendo é uma Teologia menos alienada do mundo e mais engajada com as coisas que afetam a sociedade e a História. Parodiando C.S. Lewis, não precisamos de mais partidos (ditos) “cristãos”, não precisamos de mais autores de livros devocionais ou de música gospel. Precisamos – ou melhor, estamos desesperadamente necessitados – de autênticos cidadãos autenticamente engajados com os problemas do seu tempo e da sua sociedade, exercendo os seus dons e talentos para fazer diferença nesse mundo, sendo menos coniventes e menos “gado”. 1 Quem sabe assim possamos evitar mais declarações da morte de Deus.

Bem, pelo menos era assim que Jesus agia. Para ele, tanto educação quanto política eram um must , algo tão evidente que as palavras estragariam. Mas o que é educação e o que é política? E por que são tão intrínsecas ao cristianismo? Tudo indica que esquecemos. Falo por experiência própria, pois tive e tenho que ser lembrada constantemente. Então, lembramos instantaneamente das palavras de grandes educadores, como o saudoso Paulo Freire. 2

“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.”
Pedagogia do oprimido , 1968
“Dai a ênfase que dou (…) não propriamente à análise de métodos e técnicas em si, mas ao caráter político da educação, de que decorre a impossibilidade de sua neutralidade.”
Ação cultural para a liberdade , 1976
“A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca.”
Pedagogia da autonomia , 1997
“Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.”
Pedagogia do oprimido , 1968
“Quando penso em minha terra, penso, sobretudo, no sonho possível – mas nada fácil – da invenção democrática de nossa sociedade.”
À sombra desta mangueira , 1995

Esse é um belo motivo para levantarmos e insistirmos no tema.

[1] Metáfora usada por Nietzsche para designar a condição daquele que Proudon batizaria “proletário”, ou seja, o despojado de tudo, exceto a prole, e preparado para uma única coisa: o abate.
2 Frases retiradas do site do Projeto Memória, disponível em http://www.projetomemoria.art.br/PauloFreire/pensamento/06_pensamento_frases.html , acesso em 24/7/2006.

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