Karl Rahner e o cristão anônimo: a fenomenologia transcendental

3
4598

No primeiro estudo sobre Karl Rahner e o cristão anônimo, analisamos o que ele chamou de existencial sobrenatural. Na teologia rahneriana, a graça de Deus é este existencial sobrenatural que está em todo ser humano, capacitando-o a, livremente, encontrar-se com Deus.

Além disso, o existencial sobrenatural permite até mesmo que o homem seja salvo sem arrependimento e fé em Jesus Cristo. Isso, caso esse homem desconheça a Igreja Católica Apostólica Romana e o dever de se submeter à autoridade dessa instituição, o sumo pontífice romano.

Tendo exposto a relação entre o existencial sobrenatural e o cristão anônimo, passemos à análise do que Rahner chamou de fenomenologia transcendental.

A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL
A fenomenologia transcendental é parte abundantemente comentada na teologia de Karl Rahner. Devido a sua ligação ao cristão anônimo, tanto na receptividade ao conceito de Deus quanto na própria salvação dele, Rahner investe boa parte de seus escritos tentando, filosoficamente, analisar o fato de que em todas as etnias se constata o fenômeno da busca pelo transcendente.
A escolha desse nome veio devido ao esforço filosófico de Rahner em mostrar que o ser humano é, por natureza, espírito. A ‘Reflexão Transcendental’ foi um instrumento filosófico nas mãos de Rahner usado para dizer que os seres humanos estão abertos para receber a revelação.
Segundo Rahner, todos os seres humanos estão voltados para a transcendentalidade. É algo inerente ao ser humano voltar-se para o mistério da criação e da imanência. Por causa disso, todos transcendem a si mesmos e a natureza todas as vezes que pensam e questionam os fatos. Segundo Stanley J. Grenz e Roger F. Olson,1 “demonstrar essa afirmação de modo filosófico foi a grande tarefa de Rahner, aquela que consumiu grande parte de sua energia teológica”.

Rahner preocupou-se em chamar a atenção à importância do anseio do ser humano em transcender os limites da natureza humana, de ir além.2 Os seres humanos estão cônscios de um sentido de terem sido feitos para mais do que agora são, ou seja, de que há mais além do mundo visível, um mundo, uma realidade que transcende.

Embora essa percepção esteja inerente em todo ser humano graças ao existencial sobrenatural, a Revelação Cristã é a única, segundo Rahner, capaz de suprir explicações corretas quanto a esse mais. Em seu livro lançado em 1978, Foundations of the Christian Faith, Rahner aponta uma lista com vários caminhos nos quais esta “transcendência” se mostra. Vejamos duas apontadas por Alister McGrath:

1. O ato de conhecermos um objeto leva-nos a entender que não estamos limitados ao objeto em si, pois o conhecimento dele nos leva ao questionamento do que está além dele;

2. A busca humana por significado nos presenteia com um paradoxo, no qual nós entendemos que somos radicalmente finitos por um lado, e por outro lado nós temos questões ilimitadas. Embora nós sejamos finitos e limitados, experimentamos a esperança por uma plenitude absoluta de conhecimento.

Por fim, Rahner preocupa-se em mostrar que, embora sejamos limitados e finitos, possuímos um forte senso de algo que é transcendente,3 de algo que vai além de tudo quanto conhecemos e constatamos. É exatamente por isso que a teologia de Rahner é voltada em grande medida para a antropologia e trata dela como de fundamental importância. A busca do homem por um significado final levanta a questão de Deus, e só é totalmente satisfeita quando aquele que é Deus se deixa encontrar.

A fenomenologia transcendental e a salvação do cristão anônimo
O raciocínio de Rahner quanto à salvação do cristão anônimo se dá da seguinte maneira: todos os homens são implicitamente cristãos (anônimos), uma vez que todos apreendem tacitamente o Deus da Revelação. O cristão anônimo não é salvo por sua moralidade natural e intrínseca, mas porque ele experimentou a graça de Jesus Cristo mesmo sem saber que o fazia. Aqui, Rahner faz uma diferenciação entre fé explícita e fé real não articulada.

Nesse sentido Rahner argumenta em Theological Investigations:

O cristão anônimo, em nosso sentido do termo, é o pagão após o início da missão cristã, que vive no estado da graça de Cristo através da fé, da esperança e do amor, ainda que não tenha tido nenhum conhecimento explícito do fato de que sua vida é orientada na graça dada para a salvação para Jesus Cristo… Deve haver uma teoria cristã para responder pelo fato de que todo indivíduo que não age em nenhum sentido absoluto ou último contra a sua própria consciência pode dizer e diz em fé, esperança e amor Abba dentro de seu próprio espírito e é, sobre estas bases, em toda verdade, na visão de Deus, um irmão aos cristãos.4

As ideias de Rahner são muito influentes em nossos dias. De modo especial, o conceito de que alguém pode ser um cristão anônimo sem nenhum tipo de envolvimento ou compromisso religioso. Segundo Lane,5 o cristão anônimo é alguém que ‘o aceita em uma decisão moral’, até mesmo se aquela decisão não foi feita em um sentido religioso e teísta. Assim Rahner diz:

A pessoa que aceita uma demanda moral de sua consciência como absolutamente válida para ele e a abraça de tal forma num livre ato de afirmação – não importa quão irrefletido – declara o absoluto ser de Deus, quer ele conheça ou o conceitua, quer não, como a velha razão, porque pode haver tal coisa como uma demanda moral absoluta de qualquer modo.6

A fenomenologia transcendental e a receptividade humana a Deus
Rahner, em sua teologia antropocêntrica vai tentar provar que todos os seres humanos são receptivos a Deus e só encontram realização pessoal no relacionamento com Deus por meio de Jesus Cristo como Salvador.

Segundo Rahner, essa receptividade natural do homem a Deus é devido ao existente sobrenatural que há em todos os seres humanos: a graça. Assim se dá sua linha de raciocínio: Deus deseja que todos sejam salvos (1Tm 2.4) e, fé em Cristo é necessária para a Salvação. Por isso, todos podem crer. A graça de Deus está em todos os homens, até que o homem ou a mulher sejam efetivamente impactados pelo Evangelho.

Rahner dizia que a graça de Deus está operando até mesmo nos ateístas, os quais podem possuir fé, esperança e amor, embora continuem sendo ateus. Dizia Rahner, “até mesmo um ateu…. não está excluído de possuir a salvação, dado que ele não tem agido contra sua consciência moral como um resultado de seu ateísmo”.

Battista Mondin argumenta que, para a teologia rahneriana, quem não conhece a Revelação histórica e não dá assentimento à Igreja Católica Apostólica Romana e aos seus sacramentos, mas que se aceita a si mesmo e que procura agir e viver de acordo com a sua própria consciência e com todas as determinações que Deus lhe deu, mesmo sem saber, tal pessoa possui a fé cristã. Segundo Rahner, a própria fé salvadora.

Toda essa atração quanto ao sobrenatural se dá devido àquilo que é chamado por Karl Rahner de fenomenologia transcendental. Ou seja, é possível ser salvo sem jamais saber quem foi Jesus Cristo. Como já analisei, fé, para Rahner, é tanto universal, quanto são universais a graça e a Revelação.

CONCLUSÃO

Concluindo, desejo enfatizar dois pontos assim como são enunciados no título desse artigo e do anterior tratando do cristão anônimo na teologia de Karl Rahner.

O primeiro é sobre a obra e influência do teólogo alemão, padre jesuíta, Karl Rahner, sobre a teologia católica no século vinte. Embora Rahner tenha sabido como acolher em seu sistema filosófico todos os conceitos chaves da filosofia alemã (o conceito transcendental de Immanuel Kant, o conceito de alienação de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o conceito existencial de Martin Heidegger e a orientação antropocêntrica do pensamento moderno),7 ele não deixou de se inspirar em alguns princípios de Tomás de Aquino.

Ninguém é capaz de discutir sobre o profundo e duradouro impacto de sua teologia sobre a teologia contemporânea e sobre, especialmente, a própria teologia da Igreja Católica Apostólica Romana. Grenz e Olson afirmam que “é possível que Rahner tenha oferecido o maior impulso e direcionamento desde Tomás de Aquino, durante o século 13, para uma renovação fiel da teologia católica”.8

O segundo ponto que desejo enfatizar é sobre o impacto da doutrina da graça em Rahner, sobretudo em sua aplicação aos cristãos anônimos. A ideia do cristão anônimo e de que, fora da Igreja Católica Apostólica Romana, pode haver salvação, foi uma reinterpretação radical da antiga bula do Papa Bonifácio VIII, a Unam Sanctam, onde se declara que “é completamente necessário à salvação para toda a criatura humana o estar sujeito ao pontífice romano [Papa]”.

Por trás de toda a teologia que abraça a ideia do cristão anônimo, o existencial sobrenatural, e a fenomenologia transcendental, percebe-se que a motivação que percorre todos os seus escritos é o mistério. Segundo Justo Gonzalez, o mistério torna o teólogo cheio de reverência ante o estudo da teologia.

Mas, este mistério, “longe de ser uma desculpa para a indolência intelectual ou para um obscurantismo fideísta, é um chamado para o estímulo e para a reflexão”.9 E Rahner foi alguém que saiu serena, contudo, obstinadamente atrás desse mistério. Em uma de suas afirmações em Foundatinos of the Christian Faith, Rahner define sua busca:

A antiga teologia da fé sempre soube que trazer o simples ou o não-educado à fé, através de uma adequada reflexão sobre todos os fundamentos da credibilidade intelectual não é possível e não é necessário. Então eu gostaria de formular que, na situação de hoje, todos nós, com todo o nosso estudo teológico, sejamos e permaneçamos inevitavelmente simples em um certo sentido, e que nós o admitamos francamente e corajosamente para nós mesmos e também para o mundo.10

Sem dúvida, há beleza em todo o relato de Rahner. Contudo, muitos entendem que ele não tenha conseguido resolver o dilema da transcendência e da imanência. Muitos o veem como se estivessem olhando para um panenteísta devido a toda sua especulação metafísica na qual Rahner deixou pairar ao fundo a impressão de uma certa interdependência panenteísta entre o próprio Criador e toda a sua criação.

Conforme nos sugere Tony Lane, talvez a grande fraqueza da teologia de Rahner tenha sido a transformação de uma possibilidade excepcional (a de que alguém que não tenha ouvido o evangelho possa estar em um estado de graça) em uma norma – de modo que a Igreja devesse tratar a todos os seres humanos como cristãos anônimos, embora todos os caminhos dentro das Escrituras Sagradas tendem a tratá-los não como cristãos, mas como pessoas que estão perdidas.

Karl Rahner morreu em Innsbruck, Áustria, em 30 de Março de 1984 com 80 anos de idade. Ele foi, sem sombra de dúvida, o grande teólogo católico romano de sua geração. Nenhum outro teólogo influenciou mais a teologia católica romana do século 20, e talvez de toda a era moderna, do que ele.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FORD, David F. The modern theologians: an introduction to Christian theology in the twentieth century. Oxford: Blackwell Publisher, 1997
GRENZ, Stanley J., OLSON, Roger E. Teologia do século 20. Trad. Suzana Klassen. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.
GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. Trad. Vanuza Helena Freire de Mattos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004.
LANE, Tony. Exploring Christian thought. Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1984.
MACGRATH, Alister E. Historical theology: A introduction to the history of Christian thought. Oxford: Blackwell Publishers, 1998.
MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. Trad. José Fernandes. São Paulo: Edições Paulinas, 1979.
OLSON, Roger E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida, 2001.
RAHNER, Karl. Theological investigations. New York: Herder and Herder, 1971.
RAHNER, Karl. Foundations of Christian faith: an introduction to the idea of Christianity. New York: The Seabury Press, 1978
RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1969.

___________________________________________________
1GRENZ, Stanley J.; OLSON, Roger E. Teologia do século 20. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p. 290.
2MCGRATH, Alister E. Historical theology: an introduction to the history of Christian thought. Oxford: Blackwell Publishers, 1998. p. 336
3Ibid.
4RAHNER, Karl. Theological Investigations. In: LANE. Op.Cit. p. 239.
5Ibid.
6RAHNER, Karl. Theological Investigations. In: LANE. Ibid.
7MONDIN. Op.Cit. p. 119.
8GRENZ e OLSON. Op.Cit. p. 304.
9GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 471.
10RAHNER, Karl. Foundations of the Christian faith: an introduction to the idea of Christianity. p. 9. In: GONZALES. Ibid.

3 COMENTÁRIOS

  1. Eu estou pesquisando Karl Rahner o grande teólogo, preciso fazer uma trabalho sobre seus pensamentos: o caminho indicado por Karl Rahner A trindade imanente: comunicação pessoal, As pessoas no di logo, A criação do mundo, O mundo- Reflexo do Filho e do Espirito estou adorando as leituras, vou pesquisando e anotando, depois faço um resumo para o curso de Mater Ecclesiae, Ilha do Governador- Igreja São José Oper rio- RJ. A irmã Luciana mandou ler o livro, nós na trindade, que fala sobre Karl Rahner, mais preciso saber sobre ele também. Muito bom, obrigado pela ajuda.

  2. Muito interessante o seu artigo.Gostaria de saber mais sobre Karl Rahner,pois a doutrina da graça me fascina.Vc Pode me indicar algum livro? Grata

DEIXE UM COMENTÁRIO

Please enter your comment!
Please enter your name here