Introdução à Cosmovisão Reformada: anotações quase aleatórias (2)

1
3878
Leia antes a parte 1 aqui

2. A Origem, Autoridade e Suficiência das Escrituras

 
Introdução: A Perfeita Vontade de Deus
A Lei do Senhor reflete a natureza do Senhor que Se manifesta na Criação com ordem e beleza. Por isso, após descrever a sinfonia da Criação, o salmista afirma que “a lei do Senhor é perfeita (tamiym)1…” (Sl 19.7). De fato, a Lei do Senhor é perfeita, completa; abarca todas as nossas necessidades físicas e espirituais. Ela tem princípios que sendo seguidos, instruem, previnem e corrigem os nossos caminhos.

No caminho de Deus não há ambiguidade. Por isso, as suas orientações são completas, sem mistura: “O caminho de Deus é perfeito (tamiym); a palavra do SENHOR é provada; ele é escudo para todos os que nele se refugiam” (Sl 18.30).

Assim como o insensato alimenta em seu coração a afirmação de que não há Deus,2  o salmista deseja pro-fundamente algo oposto. Ele diz: “Seja o meu coração (leb) irrepreensível (tamiym) nos teus decretos, para que eu não seja envergonhado” (Sl 119.80). Quando assimilamos de coração a Palavra de Deus e a adotamos com integridade, independentemente das consequências e dos juízos dos outros, não teremos do que nos envergonhar. Não há vergonha em seguir a Deus ainda que os padrões adotados pela maioria apontem nesta direção. Poderão, sem dúvida, nos envergonhar, contudo, nunca nos sentiremos envergonhados.
 
Na integridade da Palavra não há contradição, antes, temos o absoluto de Deus para todos os desafios pró-prios de nossa existência. Por isso, quem segue a Palavra de Deus  buscando praticá-la com integridade de coração será irrepreensível em seu caminho, em todas as circunstâncias. Este será bem-aventurado. As Es-crituras insistem neste ponto: “Bem-aventurado o homem que não anda (halak) no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores” (Sl 1.1). “Bem-aventurados os irrepreensíveis (tamiym) no seu caminho, que andam (halak) na lei do SENHOR. Bem-aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam (darash)3 de todo o coração (leb); não praticam iniquidade e andam (halak) nos seus caminhos” (Sl 119.1-3). “…Bem-aventurado aquele que teme ao SENHOR e anda (halak) nos seus caminhos!” (Sl 128.1).
 
A vontade de Deus é idêntica a Ele mesmo, sendo eticamente perfeita e completa. Deus é perfeito; não mu-da, não se aperfeiçoa nem se deteriora (Mt 5.48; Hb 13.8; Tg 1.17). A perfeição não comporta ganho ou per-da de qualidade. Deus é eternamente perfeito. Assim também é a Sua vontade. Não há um centímetro sequer de toda a Criação que não seja abrangido pela totalidade da Sua vontade. Por isso é que as Escrituras decla-ram que a “lei do Senhor é perfeita” (Sl 19.7; Tg 1.25). Ela abrange de forma completa e absoluta todas as nossas necessidades; nada lhe escapa, nada lhe é estranho. Na Lei de Deus temos os princípios fundamentais para todo o nosso viver, seja em que época for, em que cultura for: A Lei do Senhor é perfeita!.

McGrath constata e faz uma advertência: “Como o surgimento do nazismo e stalinismo já têm tornado mui-tíssimo claro, tendências culturais precisam ser criticadas. Não se pode permitir que sejam normativas. E isso exige que o cristianismo baseie-se em algo que transcenda particularidades culturais – especificamente, a au-to-revelação de Deus”.4

Esta compreensão só é possível por intermédio da Palavra. Por isso mesmo Deus nos convida a um exame de Sua Palavra. Nela temos os Seus ensinamentos e promessas que, de fato, podem iluminar os nossos olhos, apontando e nos capacitando a seguir o Seu caminho. “Porque o mandamento é lâmpada, e a instrução, luz (‘ôr)…” (Pv 6.23). Esta é a experiência do salmista: “Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do SENHOR é puro e ilumina (‘ôr) os olhos” (Sl 19.8). “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz (‘ôr) para os meus caminhos” (Sl 119.105).

A Palavra de Deus nos dá discernimento com clareza: “A revelação das tuas palavras esclarece (‘ôr)  e dá entendimento (bîyn)5  aos simples (pethiy) (= ingênuo, tolo, mente aberta)” (Sl 119.130).

Deus concede este entendimento aos simples, referindo-se às pessoas ingênuas que por não terem desenvol-vido uma mente discernidora, é aberta a qualquer conceito,6  não percebendo as armadilhas e contradições do seu inconsistente mosaico de pensamento. “Um individuo simples é como uma porta aberta – ele não tem discernimento sobre o que pode sair ou entrar. Tudo entra porque ele é ignorante, inexperiente, ingênuo e não sabe discernir as coisas. Pode ser até que tenha orgulho de ter uma ‘mente aberta’, apesar de ser verdadeira-mente um tolo”.7

O escritor da Epístola aos Hebreus declara que “…A Palavra de Deus é viva e eficaz” (Hb 4.12). Ela não é uma verdade morta, que desperta curiosidade apenas por fazer parte do ossuário, das relíquias, da arqueolo-gia ou da historiografia, sendo estudada unicamente como um exercício de reflexão histórica para a nossa mera curiosidade, ou, quem sabe, para entendermos como viviam os povos na Antiguidade. Não, a Palavra de Deus é uma verdade viva, que tem a mesma vivacidade de quando foi revelada por Deus aos seus servos, que a registraram inspirados pelo Espírito Santo. Ela continua com a mesma eficácia para os questionamentos existenciais do homem moderno. Muitas vezes, o problema de nós, homens do século XXI, – e até mesmo para muitos de nós cristãos, e digo isso com pesar –, é que amiúde, sem percebermos, trocamos os preceitos da Bíblia por conselhos de revistas, por modismos veiculados pelos meios de comunicação, pelo modus vivendi e faciendi contemporâneos; substituímos a Bíblia pela psicologia, filosofia, sociologia, antropologia e até mesmo astrologia, colocando-as como o nosso parâmetro de comportamento, em detrimento da inerrante, infalível Palavra de Deus, que é a verdade verdadeira, viva e eficaz de Deus para nós. Isto tudo fazemos, em nome de uma suposta “prática”, esquecendo-nos de que toda e cada parte do ensino bíblico é urgente e necessariamente prática, relevante para nós.
 
Jesus Cristo, a Palavra encarnada, nos diz: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida” (Jo 8.12/Is 49.6). Somente a Palavra de Deus pode transmitir a alegria real e duradoura ao nosso coração. Ela dispersa as nuvens de incertezas e contradições de uma sociedade per-vertida, nos mostrando os verdadeiros valores. No ato de seguir as veredas de Deus, vamos descobrindo a sensatez e alegria da obediência: os nossos caminhos vão se aclarando: “…a vereda dos justos é como a luz (‘ôr) da aurora, que vai brilhando8 (‘ôr) mais e mais até ser dia perfeito” (Pv 4.18). Assim, gradativamente, esta alegria vai se refletindo até mesmo em nosso semblante: “Quem é como o sábio? E quem sabe a inter-pretação das coisas? A sabedoria do homem faz reluzir o seu rosto (‘ôr), e muda-se a dureza da sua face” (Ec 8.1).

 Quando adotamos esta “prática” destoante das Escrituras, cometemos uma total inversão de valores: assimi-lamos os conceitos humanos que, quando corretos, nada acrescentam à Palavra, mas que, na realidade, na maioria das vezes, estão totalmente equivocados, porque desconhecem a dimensão do eterno, os valores ce-lestiais para a nossa vida aqui e agora e, por isso mesmo, apresentam ensinamentos mundanos, frutos de uma geração corrompida. Tais conceitos assumem na vida da Igreja um papel orientador! A Igreja, ao contrário disso, é chamada a ser uma antítese ativa contra os valores deste século; ela é convocada a viver a Palavra, a considerá-la como de fato é, a Palavra infalivelmente viva e eficaz para a nossa vida: A Palavra final de Deus para a nossa existência terrena.
 
A Lei de Deus continua sendo o princípio norteador de toda a vida cristã; Deus continua ordenando que nós não adulteremos, não roubemos, não matemos, que honremos os nossos pais, que O adoremos com exclusi-vidade… Por isso é que “entre todas as filosofias de vida, a única que nos orientará seguramente para agradá-lo tem de ser aquela ensinada na Bíblia”.9

A. A Autoridade das Escrituras
Inspiração e Inerrância Bíblica são verdades fundamentais da fé cristã, das quais depende toda a nossa for-mulação teológica. Essas verdades permeiam toda a História da Igreja. É pura ingenuidade supor que o ensi-no destas doutrinas seja algo novo, posterior à Reforma, resultante da Ortodoxia do século XVII10 ou fruto do “fundamentalismo” do século XX.11 Na realidade, Jesus Cristo e os apóstolos12 em nenhum momento sugeriram qualquer “engano”, “equívoco” ou “contradição” nas páginas do Antigo Testamento; os Pais da Igreja, os Reformadores e os cristãos em geral – inclusive os Católicos13 até o Vaticano II (1962-1965)14 –, jamais atribuíram à Bíblia qualquer tipo de erro. A Inspiração e a Inerrância das Escrituras, são verdades que fazem parte do “Antigo Evangelho” proclamado por Jesus Cristo, os apóstolos,15 os Reformadores, François Turretini (1623-1687), Archibald Alexander (1772-1851); Charles Hodge (1797-1878); Archibald A. Hodge (1823-1886), B.B. Warfield (1851-1921); J.G. Machen (1881-1937), Louis Berkhof (1873-1957), David M. Lloyd-Jones (1899-1981), J.I. Packer, e tantos outros.16

Estamos convencidos de que um dos problemas fundamentais entre os cristãos do século XXI, está na acei-tação teórica (confessional) e prática (vivencial) da Bíblia como Palavra autoritativa, inerrante e infalível de Deus. Uma visão relapsa deste ponto17  determina o fracasso teológico e espiritual da Igreja. “Uma compre-ensão certa da inspiração e da revelação é essencial para se distinguir entre a voz de Deus e a voz do ho-mem”, observa corretamente MacArthur.18 

 É justamente devido ao fato de muitos cristãos terem negado de modo confessional e/ou vivencial a inspira-ção e inerrância das Escrituras, que tem havido tantas heresias em toda a história do Cristianismo. Esse des-vio teológico, acerca destas doutrinas, tem contribuído de forma acentuada, para que os homens não mais discirnam a Palavra de Deus e, por isso, não possam gozar da Sua operação eficaz levada a efeito pelo Espí-rito (Cf. 1Ts 2.13/Jo 17.17), caindo assim, na “rampa escorregadia”19 da negação de outras doutrinas.

Entendo ainda, que qualquer diálogo teológico produtivo deve começar tendo a inerrância bíblica como um pressuposto essencial. Fora disso, sinceramente, não creio que possa haver um colóquio satisfatório, edifi-cante e esclarecedor; comecemos pois, pela Inspiração e Inerrância das Escrituras, entendendo que a Inerrâ-ncia e a Infalibilidade da Bíblia são decorrentes da sua Inspiração.

B. A Origem Divina e Humana das Escrituras
A Bíblia não é um livro qualquer; a sua origem está em Deus que falou por intermédio de homens que Ele mesmo separou para registrar a Sua Palavra. Sabemos que a questão do caráter humano das Escrituras não é algo acidental ou periférico: os homens escolhidos por Deus para registrarem as Escrituras eram pessoas de carne e osso como nós, com personalidades diferentes, que viveram em determinado período histórico – num espaço de aproximadamente 1600 anos –, enfrentando problemas específicos, dispondo de determinados conhecimentos, etc.20  Aqui, sabemos, não há lugar para nenhum docetismo:21  os autores secundários tiveram um papel ativo e passivo.22  No entanto, devemos também acentuar, e este é o nosso ponto neste texto,23  que o Espírito chamou Seus servos, revelou-Se a Si mesmo e a Sua mensagem, dirigiu, inspirou24  e preservou os registros feitos por esses homens. “O Espírito Santo habitou em certos homens, inspirou-os, e assim dirigiu-os que eles, em plena consciência, expressaram-se na sua singular maneira pessoal. O Espírito capacitou homens a conhecer e expressar a verdade de Deus. Ele impediu-os de incluir qualquer coisa que fosse contrária a essa verdade de Deus. Ele também impediu-os de escrever coisas que não eram necessárias. Assim, homens escreveram como homens, mas, ao mesmo tempo, comunicaram a mensagem de Deus, não a do homem”.25  Esta compreensão que nos advém da própria Escritura caracteriza distintamente o Cristianismo: os profetas não falaram aleatoriamente o que pensavam; antes, “testificaram a verdade de que era a boca do Senhor que falava através deles”.26  Ainda que Calvino não tenha detalhado este assunto no que se refere ao processo de inspiração, um conceito fica claro em seus escritos: os autores secundários das Escrituras não foram simplesmente autômatos; Deus se valeu livre e soberanamente de seus conhecimentos e personalidade. Contudo, tudo que foi escrito o foi conforme a vontade de Deus. Os profetas e apóstolos tiveram em seus corações “gravada a firme certeza da doutrina, de sorte que fossem persuadidos e compreendessem que procedera de Deus o que haviam aprendido”.27 Em outro lugar: “Eis aqui o princípio que distingue nossa religião de todas as demais, ou seja: sabemos que Deus nos falou e estamos plenamente convencidos de que os profetas não falaram de si próprios, mas que, como órgãos do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram do céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras de-vem antes aceitar isto como um princípio estabelecido, a saber: que a lei e os profetas não são ensinos pas-sados adiante ao bel-prazer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como uma fonte, senão que foram ditados pelo Espírito Santo”.28

Argumentando em prol do conceito de Calvino concernente à participação humana no registro das Escrituras, Puckett resume:

“Os comentários de Calvino, sobre o estilo literário do texto bíblico, refletem sua crença que a mente dos autores humanos permaneciam ativas na produção da escritura. Ele atribui variações de estilos pelo fato de que vários escritores são responsáveis por diferentes porções da Bíblia. Ele rejeita a autoria Paulina da epístola de Hebreus porque ele encontra estilos diferentes entre esta e as epístolas que ele crê serem genuinamente Paulinas”.29 

Numa linha semelhante, resume Crampton:

“A visão que Calvino mantinha sobre os autores da Escritura é que o Espírito Santo agiu neles em um caminho orgânico, em acordo com suas próprias personalidades, caráter, temperamentos, dons e talentos. Cada autor escreveu em seu próprio estilo, e todos eles foram movidos pelo Espírito Santo para escreverem a verdade infalível. Realmente cada estilo de autor foi nele mesmo produzido pela providência de Deus”.30

 Nas Escrituras temos todos os Livros que Deus quis que fossem preservados31 para a nossa edificação: “Aquelas [epístolas] que o Senhor quis que fossem indispensáveis à sua Igreja, Ele as consagrou por sua providência para que fossem perenemente lembradas. Saibamos, pois, que o que foi deixado nos é suficiente, e que sua insignificância não é acidental; senão que o cânon das Escrituras, o qual se encontra em nosso poder, foi mantido sob controle através do grandioso conselho de Deus”.32

C. A “insuficiência” das Escrituras?
Durante toda a história a Palavra de Deus foi alvo dos mais diversos ataques: entre eles, o mais comum é a suposição de sua falibilidade. No entanto, um ataque mais sutil que também permeou boa parte da história da Igreja é a concepção, ainda que muitas vezes velada, de que as Escrituras não são suficientes para nos dirigir e orientar.

Melanchthon (1497-1560) e Lutero (1483-1546) depararam-se explicitamente com esse problema bem no início da Reforma Protestante. Por volta de 1520, na pequena, porém, próspera e culta cidade alemã de Zwickau,33 surgiu um grupo de homens “iluminados” – chamados por Lutero de “profetas de Zwickau”  –, que alegava ter revelações especiais vindas diretamente de Deus, entendendo ter sido chamado por Deus pa-ra “completar a Reforma”. A sua religião partia sempre de uma suposta revelação interior do Espírito. Acre-ditavam que o fim dos tempos estava próximo – os ímpios seriam exterminados –, e que por isso, não era necessário estudar teologia visto que o Espírito estaria inspirando os pobres e ignorantes. Combatiam também o batismo infantil. Assim pensando, esses homens diziam: “De que vale aderir assim tão estritamente à Bíblia? A Bíblia! Sempre a Bíblia! Poderá a Bíblia nos fazer sermão? Será suficiente para a nossa instrução? Se Deus tivesse tencionado ensinar-nos, por meio de um livro, não nos teria mandado do céu, uma Bíblia? Somente pelo Espírito é que poderemos ser iluminados. O próprio Deus fala dentro de nós. Deus em pessoa nos revela aquilo que devemos fazer e aquilo que devemos pregar”.34

Certo alfaiate, Nícolas Storck († 1525), escolheu doze apóstolos e setenta e dois discípulos, declarando que finalmente tinham sido devolvidos à Igreja os profetas e apóstolos.35  Ele, acompanhado de Marcos Stubner e Marcos Tomás foi a Wittenberg (27/12/1521) – que já enfrentava tumultos liderados por Andreas B. von Carlstadt (c. 1477-1541) e Gabriel Zwilling (c. 1487-1558) –, pregar o que considerava ser a verdadeira religião cristã, contribuindo grandemente para a agitação daquela cidade. Stubner, antigo aluno de Wittenberg, justamente por ter melhor preparo, foi comissionado a representá-los. Melanchthon que conversou com Stubner, interveio na questão, ainda que timidamente. Storck,36 mais inquieto, logo partiu de Wittenberg; Stubner, no entanto, permaneceu, realizando ali um intenso e eficaz trabalho proselitista; “era um momento crítico na história do cristianismo”.37 Comentando os problemas suscitados pelos “espiritualistas”, o histori-ador D’aubigné (1794-1872) conclui: “A Reforma tinha visto surgir do seu próprio seio um inimigo mais tremendo do que papas e imperadores. Ela estava à beira do abismo”.38 Daí ouvir-se em Wittenberg o clamor pelo auxílio de Lutero. E Lutero, consciente da necessidade de sua volta, abandonou a segurança de Warteburgo retornando à Wittenberg39 a fim de colocar a cidade em ordem (1522), o que fez, com firmeza e espírito pastoral.40 Mais tarde, Lutero escreveria: “Onde, porém, não se anuncia a Palavra, ali a espirituali-dade será deteriorada”.41

Não nos iludamos, essa forma de misticismo ainda está presente na Igreja e, tem sido extremamente pernici-osa para o povo de Deus, acarretando um desvio espiritual e teológico, deslocando o “eixo hermenêutico” da Palavra para a experiência mística, nos afastando assim, da Palavra e, consequentemente, do Deus da Pala-vra. O trágico é que justamente aqueles que supõem desfrutarem de maior “intimidade” com Deus, são os que patrocinam o distanciamento da Palavra revelada de Deus. Davi enfatiza: “A intimidade do Senhor é pa-ra os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança” (Sl 25.14). Portanto, a nossa intimidade com Deus revela-se em nosso apego à Sua Palavra, à Sua aliança. Nesse texto, Calvino faz uma aplicação bastante contextualizada: “…. É uma ímpia e danosa invenção tentar privar o povo comum das Santas Escri-turas, sob o pretexto de serem elas um mistério oculto, como se todos os que o temem de coração, seja qual for seu estado e condição em outros aspectos, não fossem expressamente chamados ao conhecimento da ali-ança de Deus”.42

Nós somos herdeiros dos princípios bíblicos da Reforma; para nós, como para os Reformadores, a Palavra de Deus é a fonte autoritativa de Deus para o nosso pensar, crer, sentir e agir: A Palavra de Deus nos é sufi-ciente.

D. Tradição & Escritura

1) NOVO EIXO HERMENÊUTICO
Como vimos, na Reforma deu-se uma mudança de quadro de referência. O “eixo hermenêutico” desloca-se da tradição da igreja para a compreensão pessoal da Palavra sem, contudo, desconsiderar a tradição. Há aqui uma mudança de critério de verdade que determina toda a diferença. No entanto, conforme acentua Popkin, Lutero inicialmente confrontou a igreja dentro da perspectiva da própria tradição da igreja, somente mais tarde é que ele “deu um passo crítico que foi negar a regra de fé da Igreja, apresentando um critério de co-nhecimento religioso totalmente diferente. Foi neste período que ele deixou de ser apenas mais um reforma-dor atacando os abusos e a corrupção de uma burocracia decadente, para tornar-se o líder de uma revolta in-telectual que viria a abalar os próprios fundamentos da civilização ocidental”.43

2) “SOLA SCRIPTURA” X TRADIÇÃO?
O Sola Scriptura foi considerado pelos reformadores como o princípio formal que dá substância a tudo o mais. Portanto, a tradição nunca foi rejeitada pelo simples fato de ser tradição. Na própria Escritura encon-tramos ênfase e crítica à tradição [para/dosij] (2Ts 2.15).44 A questão básica é: a que tradição estamos nos referindo?. Como vimos, “Lutero e os reformadores não queriam dizer por Sola Scriptura que a Bíblia é a única autoridade da igreja. Pelo contrário, queriam dizer que a Bíblia é a única autoridade infalível dentro da Igreja”.45 A Reforma revoltou-se quanto à suposta autoridade da tradição independente da Escritura e pre-tensamente nivelada com ela. “Os reformadores restauraram a Bíblia como tradição cristã autorirária”.46 Deste modo, a autoridade dos Credos (Apostólico, Nicéia, Calcedônia) era indiscutivelmente considerada pelos reformadores – tendo inclusive Lutero [O Catecismo Maior (1529) e O Catecismo Menor (1529)] e Calvino [Catecismo de Genebra (1536/37 e 1541/2) e Confissão Gaulesa (1559)] elaborado Catecismos para a Igreja –; contudo, somente as Escrituras são incondicionalmente autoritativas.47 Os dizeres da Confissão Gaulesa (Capítulo 5) resumem bem o espírito que orientou a aceitação dos Credos pelos Reformadores:

“Concluímos que nem a antiguidade, nem os costumes, nem a maioria, nem sabedoria humana, nem julgamentos, nem prisões, nem as leis, nem decretos, nem os concílios, nem visões, nem milagres podem se opor a esta santa Escritura, mas ao contrário, todas as coisas devem ser examinadas, regulamentadas e reformadas por ela. Neste espírito, nós reconhecemos os três símbolos, a saber: O Credo dos Apóstolos, de Nicéia, e de Atanásio, porque eles estão de acordo com a Palavra de Deus” (Destaques meus).48

Wallace acentua que Calvino “sempre insistiu que a tradição precisava ser constantemente corrigida pelo en-sino das Sagradas Escrituras e ser subordinada a elas. Porém, ele sempre foi cuidadoso e criterioso em exa-minar minuciosamente dentro da tradição o que devia ser rejeitado e o que devia ser aceito. Ninguém foi mais obstinado em manter aquilo que ele tinha experimentado como algo bom, qualquer que fosse sua ori-gem, contanto que sua retenção não atrapalhasse a total sujeição de sua mente e de sua vida à Palavra de Deus ou o desviasse de seguir a Cristo”.49

______________________________________________________________________________________________

1 A ideia da palavra traduzida por perfeita é de: integridade (Sl 15.2); aperfeiçoar (Sl 18.32); retidão (Sl 101.6); irrepreensível (Sl 119.1,80); inculpável (2Sm 22.24).
2Diz o insensato (nabal) no seu coração (leb): Não há Deus (elohim)….” (Sl 14.1).
3   Procurar com integridade e compromisso.
4 Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 60.
5 O verbo (bîyn) e o substantivo (bîynâh) apresentam a idéia de um entendimento, fruto de uma observação demorada, que nos permite discernir para interpretar com sabedoria e conduzir os nossos atos. “O verbo se refere ao conhecimento superior à mera reunião de dados. (…) Bîn é uma capacidade de captação julgadora e perceptiva e é demonstrada no uso do conhecimento” (Louis Goldberg, Bîn: In: Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 172). Bîyn permite diversas traduções (ARA): Acudir (Sl 5.1) (No sentido de considerar); Ajuizado (Gn 41.33,39); Atentar (Dt 32.7,29; Sl 28.5); Atinar (Sl 73.17; 119.27); Considerar (Jó 18.2; 23,15; 37.14); Contemplar (Sl 33.15); Cuidar (Dt 32.10); Discernir (1Rs 3.9,11; Jó 6.30; 38.20; Sl 19.12); Douto (Dn 1.4); Ensinar (Ne 8.7,9); Entender/entendido/entendimento (Dt 1.13;4.6; 1Sm 3.8; 2Sm 12.19; 1Rs 3.12;1Cr 15.22; 27.32; 2Cr 26.5; Ed 8.16; Ne 8.2,3,8,12; 10.28; Jó 6.24;13.1; 15.9; 23.5; 26.14; 28.23; 32.8,9; 42.3); Fixar no sentido de pensar detidamente (Jó 31.1); Inteligência (Dn 1.17); Mestre (no sentido de expert) (1Cr 25.7,8); Penetrar (com o sentido de discernir) (1Cr 28.9; Sl 139.2); Perceber (Jó 9.11;14.21; 23.8); Perito (Is 3.3); Pro-curar (Sl 37.10); Prudentemente (2Cr 11.23); Reparar (1Rs 3.21); Revistar (procurar atentamente) (Ed 8.15); Saber/Sabedoria (Ne 13.7; Pv 14.33); “Sisudo” em palavras (1Sm 16.18); Superintender (por ter maior conhecimento) (2Cr 34.12). A LXX geralmente emprega a palavra syniêmi para traduzir o verbo hebraico. Syniêmi envolve a idéia de reunir as coisas, analisá-las, tentando chegar a uma conclusão por meio de uma conexão das partes (*Mt 13.13,14,15,19,23,51; 15.10; 16.12; 17.13; Mc 4.12; 6.52; 7.14; 8.17,21; Lc 2.50; 8.10; 18.34; 24.45; At 7. 25 (duas vezes); 28.26,27; Rm 3.11; 15.21; 2Co 10.12; Ef 5.17). Paulo instrui aos efésios: “…Vede prudentemente como andais, não como néscios, e, sim, como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus. Por esta razão não vos torneis insensatos, mas procurai compreender qual a vontade do Senhor” (Ef 5.15-17).
6O simples (pethiy) dá crédito a toda palavra, mas o prudente atenta (biyn) para os seus passos” (Pv 14.15).
7 John MacArthur, Adotando a Autoridade e a Suficiência das Escrituras. In: John MacArthur, ed. ger., Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 39.
8 A grafia de “luz”, “ser luz”, “tornar-se luz” e “brilhar” é a mesma no hebraico.
9 R.P. Shedd, Lei, Graça e Santificação, São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 90.
10 Conforme entendia, por exemplo, Karl Barth (1886-1968). (K. Barth, Church Dogmatics, Edinburgh: T. & T. Clark, 1960, I/1, p. 126-128). Também sustentam este ponto Rogers e McKim (Vejam-se: Jack Rogers, Inerrancy: In: Donald W. Musser; Joseph L. Price, eds. A New Handbook of Christian Theology, Nashville: Abingdon Press, 1992, p. 255; Jack Rogers; Donald McKim, Authority of the Bible: An Historical Approach, New York: Harper & Row, 1979, p. 176ss., 273).
11 Conforme sugere Karen Armstrong (Ver: Karen Armstrong, Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 199).
12 Veja-se: Edwin A. Blum, The Apostle’s of Scripture: In: Norman L. Geisler, ed. Inerrancy, Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, 1980, p. 39-53.
13 Mais uma vez encontramos uma descrição objetiva da questão, em George: “No século XVI, a inspiração e a autoridade das Escrituras Sagradas não era um ponto de debate entre católicos e protestantes. Todos os reformadores, até mesmo os radicais, aceitavam a origem divina e o caráter infalível da Bíblia. A questão que surgiu na Reforma foi sobre o modo como a autoridade divinamente comprovada das Escrituras Sagradas estava relacionada à autoridade da igreja e da tradição eclesiástica (católicos romanos), por um lado, e ao poder da experiência pessoal (espiritualistas), pelo outro” (Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 312). (Do mesmo modo, Gleason L. Archer, Enciclopédia de Dificuldades Bíblicas, São Paulo: Vida, 1997, p. 19).
14 O Concílio Vaticano II declarou o seguinte: “Deve-se professar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (Compêndio do Vaticano II, 5ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, (1971), II.3.11. § 179, p. 129). Todavia, J.I. Packer observa com acuidade, que esta assertiva “foi redigida com o propósito de funcionar como buraco no dique da inerrância bíblica, e é certamente assim que os teólogos católicos romanos a partir do Vaticano II têm feito uso desta afirmação” (J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos Nossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 83. Veja-se, por exemplo, De Fraine, Inspiração: In: A. Van Den Born, redator. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1977, seção IV, p. 734.
 15 Alan Richardson (1905-1975), mesmo não compartilhando do conceito de “inerrância”, teve de admitir que “A crença na inspiração total das Escrituras, bem como as próprias Escrituras, herdara-a a Igreja Apostólica do Judaísmo. Nos tempos do Novo Testamento, tanto os judeus da Palestina como em geral os da diáspora achavam que os Profetas e as Escrituras tinham aquela mesma autoridade incondicional que em tempos anteriores somente se dava à Lei (…). Os escritores do Novo Testamento pensavam, como os judeus em geral, nesse assunto da autoridade das Escrituras. Citavam a Bíblia grega, ou Septuaginta, como escritura inspirada: Deus falara pelos seus profetas nas Santas Escrituras, e estas são citadas como sendo a expressão direta do próprio Deus” (Alan Richardson, Apologética Cristã, 2ª ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1978. p. 163-164).
16  Vejam-se: R. Laird Harris, Inspiration and Canonicity of the Scriptures, Greenville: SC. A. Press, 1995, p. 55-64; John H. Gers-tner, A Doutrina da Igreja Sobre a Inspiração Bíblica: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 25ss. Para uma visão panorâmica da discussão contemporânea a respeito da autoridade da Bíblia, veja-se: Harvie M. Conn, A Historical Prologue: Inerrancy, Hermeneutic and Westminster: In: Harvie M. Conn, Inerrancy and Hermeneutic, 2ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1990, p. 15-34.
17 Uma das formas sutis de desviar a nossa atenção deste ponto, é dizer-nos que este assunto não é algo realmente sério. (Veja-se: Gleason L. Archer, Enciclopédia de Dificuldades Bíblicas, p. 30).
18 John F. MacArthur, Os Carismáticos, São Paulo: Fiel, 1981, p. 19. Veja-se também, J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos Nossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 76-77.
19 Vejam-se: J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos Nossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 76,77,88,89;  P.D. Feinberg, Bíblia, Inerrância e infalibilidade da: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1990, Vol. I, p. 182-183. Agostinho (354-430), que na questão do Cânon nem sempre foi dos mais lúcidos, raciocina de forma lógica e objetiva na questão da inerrância, dizendo: “Numa autoridade tão alta (i.é, a Escritura), a admitir uma só mentira oficiosa não deixará sobrar uma só passagem daquelas que parecem difíceis para praticar ou crer, que, segundo a mesma regra altamente perniciosa, não possa ser explicada como mentira feita pelo autor deliberadamente para servir a algum propósito…” (Apud J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos Nossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 88). Para Agostinho, ser “canônico”, significa ser verdadeiro. (Santo Agostinho, A Cidade de Deus Contra os Pagãos, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, Vol. II, XVIII.38. p. 355).
20 Encontramos uma abordagem útil e esclarecedora deste ponto em: Augustus Nicodemus Lopes, A Bíblia e Seus Intérpretes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 23-29.
21 Ver: Robert Laird Harris, Inspiração e Canonicidade da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 96.
22 Vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 93ss.; Gordon R. Lewis, A Autoria Humana da Escritura Inspirada: In: Norman Geisler, org. A Inerrância Bíblica. São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 268-312. (Especialmente, p. 287-312); J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 75-83.
23 Para uma perspectiva mais ampla, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.
24 Como sabemos, no Novo Testamento, a palavra “inspirada” é decorrente de uma tradução interpretativa do texto de 2Tm 3.16, que diz: “Toda Escritura é inspirada por Deus…”. A expressão “inspirada por Deus” provém de um único termo grego, Qeo/pneustoj, que só ocorre em 2Tm 3.16. (Não aparece na LXX). Todavia, a tradução que temos (Almeida, Revista e Atualiza-da), segue aqui a Vulgata, que traduz, “Divinitus Inspirata”. A palavra teopneustoi não significa “ins-pirado” mas, sim “ex-pirado”; ou seja, ao invés de soprado para dentro, soprado para fora. Este adjetivo, comenta Colin Brown, “não significa qualquer modo específico de inspiração, tal qual alguma forma de ditado divino. Nem sequer dá a entender a suspensão das faculdades cognitivas normais dos autores humanos. Do outro lado, realmente quer dizer algo bem diferente da inspiração poética. É um erro omitir o elemento divino no termo, transmitido por theo (The New English Bible faz assim, ao traduzir a frase; ‘toda escritura inspirada’). É claro que a expressão não dá a entender que algumas escrituras são inspiradas, enquanto outras não são. Todas as Sagradas Escrituras expressam a mente de Deus; fazem assim, no entanto, com o alvo da sua operação prática na vida” (Colin Brown, Escritura: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. II, p. 103-104). O que Paulo quer dizer, é que toda a Escritura Sagrada é soprada, exalada por Deus. Ou, se tomarmos a palavra apenas no sentido passivo, diremos que “Deus em sua revelação é soprado pelas páginas das Escrituras”. Deste modo, podemos dizer que Deus é o Autor e o Conteúdo das Escrituras. Benjamin B. Warfield (1851-1921), comentando o texto de 2Tm 3.16, diz: “Numa palavra, o que se declara nesta passagem fundamental é, simplesmente, que as Escrituras são um produto divino, sem qualquer indicação da maneira como Deus operou para as produzir. Não se poderia escolher nenhuma outra expressão que afirmasse, com maior saliência, a produção divina das Escrituras, como esta o faz. (…) Paulo (…) afirma com toda a energia possível, que as Escrituras são o produto de uma operação especificamente divina” (B.B. Warfield, The Inspiration of the Bible, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (The Work’s of Benjamin B. Warfield), 2000 (Reprinted), Vol. I, p. 79). Podemos definir a Inspiração como sendo a influência sobrenatural do Espírito de Deus sobre os homens separados por Ele mesmo, a fim de registrarem de forma inerrante e suficiente toda a vontade de Deus, constituindo este registro na única fonte e norma de todo o conhecimento cristão. Com isto, estamos dizendo que o Deus que Se revelou, esteve “expirando” os homens que Ele mesmo separou para registrarem esta revelação. A inspiração bíblica garante que seja registrado de forma veraz aquilo que a inspiração profética fazia com respeito à palavra do profeta, para que ela correspondesse literalmente à mente de Deus; em outras palavras: a Palavra escrita é tão fidedigna quanto a Palavra falada pelos profetas; ambas foram inspiradas por Deus. De fato, assim lemos na The New English Bible: New Testament, Great Britain: Oxford University Press, 1961: “Every inspired scripture”. Mesmo equívoco comete ARC. Veja-se uma boa discussão sobre este ponto In: Edwin A. Blum, The Apostles’ of Scripture: In: Norman L. Geisler, ed. Inerrancy, Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, 1980, p. 45ss.
25 Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1995, p. 64-65. Ve-ja-se também: J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 78-79.
26 João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16), p. 262.
27 João Calvino, As Institutas, I.6.2.
28 João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16), p. 262. Do mesmo modo: João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, Vol. 1, p. 29; John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprin-ted), Vol. 2 (Preface), p. 14; (Ex 3.1), p. 59; Vol. XVII (Jo) (Argument), p. 22; João Calvino, As Institutas, IV.8.6). Em outro lugar Calvino diz que os Apóstolos foram “certos e autênticos amanuenses do Espírito Santo” (As Institutas, IV.8.9). No entanto, devemos entender que Calvino usa esta expressão não para sustentar o “ditado” divino, mas sim, para demonstrar que os Apóstolos não criaram de sua própria imaginação a sua mensagem, antes, a receberam diretamente do Espírito. Ou seja, ele se refere ao resultado do registro, não ao processo em si. Entendia que Moisés escreveu os cinco livros da Lei “não somente sob a orientação do Espírito do Deus, mas porque Deus mesmo os tinha sugerido, falando-lhe com palavras de sua própria boca” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. III, (Ex 31.18), p. 328. Vejam-se também: John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. X (Jr 36.28), p. 352). Veja-se uma boa exposição sobre este ponto em: B.B. Warfield, Calvin and Calvinism, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (The Work’s of Benjamin B. Warfield), 2000 (Reprinted), Vol. V, p. 63ss.; Edward J. Young, Thy Word Is Truth, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1957, p. 66-67; Wilson Castro Ferreira, Calvino: Vida, Influência e Teologia, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1985, p. 356-257; David L. Puckett, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press (Columbia series Reformed Theological), 1995, p. 25ss. Curiosamente, o Concílio de Trento, na sua quarta sessão (08/04/1546), usa esta expressão para as Escrituras: “Spiritu Sancto dictante” (Ver: P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6ª ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), Vol. II, p. 80; Robert Laird Harris, Inspiração e Canonicidade da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 18 e 306).
29 David L. Puckett, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press (Columbia series Reformed Theological), 1995, p. 27.
30 W. Gary Crampton, What Calvin Says, Maryland: The Trinity Foundation, 1992, p. 23.
31 Ver João Calvino, As Institutas, I.8.10-12.
32 João Calvino, Efésios, (Ef 3.3), p. 86.
33 Os principais líderes eram: Nícolas Storck, Marcos Tomás e Marcos Stubner. Tomás Munzer (c. 1490-1525), tornar-se-ia o mais famoso dos que foram influenciados por esse círculo, tendo mais tarde as suas idéias próprias, ainda que fiel aos mesmos princí-pios. (Veja-se: George H. Williams, La Reforma Radical, México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 66ss; Jean Delumeau, O Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 101).
34 Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, (s.d.), Vol. III, p. 64. Mais tarde, Calvino escreveria, possivelmente referindo-se aos “libertinos”, também conhecidos como “espirituais”: “Ora, surgiram, em tempos recentes, certos desvairados que, arrogando-se, com extremada presunção, o magistério do Espírito, fazem pouco caso de toda leitura da Bíblia e se riem da simplicidade daqueles que ainda seguem, como eles próprios a chamam, a letra morta e que mata. “Eu, porém, gostaria de saber deles que tal é esse Espírito de cuja inspiração se transportam a alturas tão sublimadas que ousem desprezar como pueril e rasteiro o ensino das Escrituras? Ora, se respondem que é o Espírito de Cristo, cer-teza dessa espécie é absurdamente ridícula, se, na realidade, concedem, segundo penso, que os Apóstolos de Cristo e os demais fiéis na Igreja Primitiva não de outro Espírito hão sido iluminados. O fato é que nenhum deles daí aprendeu o menoscabo da Palavra de Deus; ao contrário, cada um foi antes imbuído de maior reverência, como seus escritos o atestam mui luminosamente…     “… Não é função do Espírito Que nos foi prometido configurar novas e inauditas revelações ou forjar um novo gênero de doutrina, mediante quê sejamos distraídos do ensino do Evangelho já recebido; ao contrário, Sua função é selar-nos na mente aquela própria doutrina que é recomendada através do Evangelho” (J. Calvino, As Institutas, I.9.1). Veja-se também: As Institutas, I.9.2-3. McNeill explica que o termo “libertino” foi usado por Calvino para “designar uma seita religiosa que se espalhou na França e na Península Dinamarquesa, a qual, dando ênfase ao Espírito, rejeitava a Lei. Posteriormente, o termo veio a ser aplicado em Genebra, àqueles que se opunham à disciplina, os quais incluíam pessoas que desconsideravam a lei moral e outros, mais motivados politicamente em resistir a Calvino” (John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, New York: Oxford University Press, 1954, p. 169).
35 Cf. J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, Vol. III, p. 64-65; Heinrich W. Erbkam, Munzer: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: Or Dictionary of Biblical, Historical, Doutrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk  & Wagnalls, Publishers, (revised edition), 1887, Vol. II, p. 1596a.
36 Como resultado das supostas revelações diretas de Deus, Storck e seus companheiros sustentavam que “dentro de cinco a sete anos os turcos invadiriam a Alemanha e destruiriam os sacerdotes e todos os ímpios. Storck via-se como cabeça de uma nova igreja, designada por Deus para completar a Reforma que Martinho Lutero deixara inacabada” (J.D. Weaver, Profetas de Zwickau: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, Vol. III, p. 657).
37 James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, 2ª ed. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 254.
38 J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, Vol. III, p. 71.
39 Justificando-se com o príncipe o motivo da sua volta, escreveu-lhe no dia de sua chegada a Wittenberg, 7 de março de 1522: “Não são acaso os Wittemberguenses as minhas ovelhas? Não mas teria confiado Deus? E não deveria eu, se necessário, expor-me à morte por causa delas?” (Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, Vol. III, p. 83).
40 Lutero, iniciando no dia 09/3/1522, pregou oito dias consecutivos em Wittenberg. Veja-se o seu primeiro sermão In: Martinho Lutero, Pelo Evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma, Porto Alegre/São Leopoldo, RS.: Concórdia Editora/Editora Sinodal, 1984, p. 153-161. Quanto aos detalhes da sua volta, Vejam-se: J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, III, p. 72ss.; James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, p. 254ss.
41 Martinho Lutero, Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola (1530): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo/Porto Alegre, RS.: Sinodal/Concórdia, 1995, Vol. 5, p. 334.
42 João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 25.14), p. 558.
43 Richard H. Popkin, História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p. 26.
44 A tradição oral (paradosis) (“transmissão”, “entrega”, “tradição”. A palavra é formada de “para” (“junto a”, “ao lado de”) & “didômi” (Conforme o contexto: “dar”, “trazer”, “conceder”, “causar”, “colocar”, etc.) consistia basicamente no que Jesus Cris-to, os apóstolos e outros servos de Deus ensinavam, transmitiram por meio de seus sermões, orientações e comportamento (1Co 11.2, 23-25; Gl 1.14; 2Ts 2.15; 3.6/Rm 6.17; 16.17; 1Co 15.1-11; Fp 4.9; 1Ts 2.9, 13; 4.11,12). Significava, portanto, uma en-trega oral ou escrita. Nestes textos, evidenciam-se que a “tradição” recebida e ensinada amparava-se numa certeza quanto à sua origem divina. Portanto, as “tradições” mencionadas por Paulo distinguem-se daquelas inventadas e transmitidas pelos homens, as quais são recriminadas por Cristo, visto que estes ensinamentos anulavam a Palavra de Deus (Cf. Mt 15.2,3,6; Mc 7.3,5,8,9,13). A para/dosij é rejeitada todas as vezes que entra em choque com a Palavra de Deus.
45 R. C. Sproul, Sola Scriptura: Crucial ao Evangelicalismo: In: J.M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 122. Timothy George coloca a questão nestes termos: “O sola scriptura não pretendia desprezar completamente o valor da tradição da igreja, mas sim subordiná-la à primazia das Escrituras Sagradas. Enquanto a Igreja Romana recorria ao testemunho da igreja a fim de validar a autoridade das Escrituras canônicas, os reformadores protestantes insistiam em que a Bíblia era autolegitimadora, isto é, considerada fidedigna com base em sua própria perspicuidade, comprovada pelo testemunho íntimo do Espírito Santo” (Timothy George, Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 312). A observação de Packer é pertinente como princípio que deve servir de parâmetro: “Dentro dessa abordagem, e com base na percepção comum de que tanto o Espírito de Deus como também o pecado humano estão sempre trabalhando dentro da igreja, espera-se que as tradições cristãs sejam parcialmente certas e parcialmente erradas” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998,  p. 234).
46 Frank B. Stanger, Tradição: In: Carl Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 583.
47 Ver: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Pu-blicações, 2005, p. 109-110. Referindo-se aos primeiros séculos do Cristianismo, McGrath afirma: “A tradição era vista como um legado dos apóstolos, por meio da qual a igreja era guiada em direção a uma correta interpretação das Escrituras. Ela não era encarada como uma ‘fonte secreta de revelação’, em acréscimo às Escrituras, uma idéia que Irineu rejeitava e considerava ‘gnóstica’. Antes, a tradição era vista como um meio de assegurar que a igreja permanecia fiel aos ensinamentos apostólicos, em vez de adotar interpretações bíblicas que fossem idiossincráticas” (Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 50). (Igualmente: Alister E. McGrath, Teologia Histórica: uma introdução à história do Pensamento Cristão, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 44).
48 Esta Confissão, também conhecida como Confissão de Fé de La Rochelle encontra-se traduzida na íntegra no site: http://www.monergismo.com/textos/credos/Confissao_Franca_Rochelle.pdf (consulta: 14/03/2012). Schaff, (The Creeds of Christendom, 6ª ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), Vol. III, p. 356-382) traz o Documento em francês e inglês.
49 Donald S. Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 11-12.  Boettner resume bem  a posição protestante: “Não rejeitamos todas as tradições, mas antes usamo-las judiciosamente até onde elas concordam com as Escrituras e se fundamentam na verdade. Podemos, por exemplo, tratar com respeito e estudar com cuidado as confissões e os pronunciamentos dos concílios de diversas igrejas, particularmente aquelas da antiga Igreja e as do tempo da Reforma. (…) Mas não concedemos a nenhuma igreja o direito de formular novas doutrinas ou tomar decisões contrárias aos ensinamentos das Es-crituras. A história da igreja prova de maneira geral e muito claramente que os líderes da igreja e os concílios da igreja podem cometer erros e os cometem, alguns deles sérios” (Loraine Boettner, Catolicismo Romano, São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1985, p. 67).

continue lendo

1 COMENTÁRIO

  1. Oh. profundidade das riquezas e do Conhecimento de Deus.Quem conheceu a mente do Nosso Senhor? Porque dEle, por Ele e para Ele são todas as coisas.Halleluia.Amem.Soli Deo Gloria. É disto que a Igreja necessitou sempre e continua necessitando em pleno s‚culo XXI.

DEIXE UM COMENTÁRIO

Please enter your comment!
Please enter your name here