Educação Teológica e Missão: uma resposta ao artigo de Jung Mo Sung

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Uma de minhas alegrias é saber que a Teologia Sistemática (doravante TS), que escrevi com meu amigo Alan Myatt, está chegando agora em sua terceira reimpressão e tem recebido boa aceitação, sendo usada como livro-texto ou obra de consulta em seminários e faculdades teológicas no Brasil e, mais recentemente, em Portugal e Moçambique. Nas oportunidades em que tenho falado em instituições, em conferências ou palestras, tenho tido conversas prazerosas sobre o conteúdo e a estrutura desta obra. Dúvidas, perguntas, sugestões e críticas pertinentes têm nos ajudado a fazer correções e pensar numa futura edição revisada, incluindo a elaboração dos índices, tão necessários numa obra desse tipo. Mas, sobretudo, fico feliz com o fato de que a TS tem me proporcionado uma experiência similar àquela de Karl Barth, sobre como sua principal obra estava sendo “lida e estudada em muitas casas pastorais, sendo aproveitada (…) no trabalho de pregação, ensino e poimênica, achando assim indiretamente seu caminho também para dentro da comunidade [cristã] de um modo geral”.1 É fonte de grato contentamento ouvir de pastores e especialmente de membros das igrejas evangélicas que a TS tem sido usada com proveito, para edificação, desafio e aprofundamento dos temas principais da fé cristã.

Recentemente, foi publicada no Brasil uma coletânea de ensaios intitulada Missão e educação teológica (São Paulo: ASTE, 2011). Em um dos capítulos dessa obra, intitulado “Educação teológica e a missão” (p. 143-181, doravante ETM), Jung Mo Sung interage com a seção dos Prolegômenos e da Palavra de Deus da TS (p. 3-52, 86-152). O alvo desse artigo é oferecer um resumo do ensaio ETM, apontar alguns problemas e incompreensões que aparecem na abordagem do autor aos temas da TS e destacar duas questões críticas subjacentes ao ensaio e à sua estrutura teológica. O autor cita vários autores em seu texto, tais como José Comblin, Gustavo Gutiérrez, René Padilla, Paul Tillich, Juan Luis Segundo, Jon Sobrino, entre outros. Não me preocupei em distinguir o pensamento de Sung do destes autores, ao citá-lo, já que ele os menciona em apoio especialmente nas questões mais críticas de seu ensaio.

O argumento de “Educação teológica e a missão”
O que Sung propõe é uma “reflexão sobre os caminhos da educação teológica (…) em função da missão cristã”. Seguindo algumas percepções do bispo episcopal Desmond Tutu, ele propõe uma educação teológica que responda às perplexidades e aos anseios de um contexto específico, preparando candidatos ao ministério para lidar com “desafios contemporâneos urgentes como HIV/AIDS, pobreza, corrupção em instâncias elevadas da sociedade, injustiça, opressão e conflitos perenes”, entre os “seres humanos ameaçados ou mais vulneráveis”. O autor reconhece que esta não é uma lista exaustiva, mas apenas um ponto de partida para considerar as questões metodológicas ligadas ao fazer teológico a serviço da missão. Seu interesse primário não está “ligado à vida interna da igreja”, mas “para serviço do aumento da presença do Reino de Deus no mundo”. E o alvo não é uma teologia contextual, mas uma “contextualização da teologia e da educação teológica”, “com a perspectiva da missão, da transformação da realidade a partir das vítimas da opressão existente”, preparando os estudantes de teologia “para lidar com problemas econômicos e sociais em uma perspectiva teológica-pastoral”. Essa proposta de mudança de eixo é necessária, segundo Sung, pois “teologia e educação ‘genérica’, que debate verdades eternas, atemporais e não contextualizadas, se tornam cínicas por seu próprio método e compreensão do que seja a teologia”. Em sua opinião, aqueles que trabalham nesse último modelo de teologia, diante da lista de problemas proposta acima, “muitas vezes não sabem como articular como teologia, ou melhor, como interpretar e criticar teologicamente os desafios em questão”.

Posto o problema, o autor indica a necessidade de discutir qual a noção de teologia que está por trás dos modelos de educação teológica e sua missão hoje. Para o autor, há três tipos de compreensão do que é teologia, e a primeira é o que ele chama de “uma teologia que tem como tarefa fundamental a ‘defesa da fé’”, passando a interagir com a TS nessa parte do ensaio. Depois de resumir a seção onde a TS trata da importância do estudo teológico, Sung critica a noção afirmada na TS de que o fim último do esforço teológico é o estudo de Deus, pois ele pressupõe que uma noção de Deus como ser pessoal torna-o transcendente, “além das doutrinas”, e esta noção implica “relação e, portanto, em modificação ou dinamismo”. Assim sendo, ele entende que os autores da TS reduzem o estudo teológico à “verdade” revelada, afirmando que, na ótica de seus autores, a “missão essencial da teologia seria a defesa da fé cristã”. Logo, segundo a opinião de Sung, a educação teológica nesse modelo teria apenas a tarefa de ensinar de “modo eficiente as doutrinas corretas”. Em sua interpretação desse modelo, “o caminho principal da teologia e da educação cristã é a aceitação obediente das verdades e a cosmovisão ensinada na Escritura e a sua sistematização em uma lógica racional e a aplicação dessas verdades na vida prática”.

Na seção seguinte do artigo ETM, o autor passa a discorrer sobre o conceito de verdade que está por trás desse primeiro modelo. Tendo rejeitado a noção de infalibilidade e inerrância das Escrituras, Sung sumaria as noções de verdade subjetivas, pragmáticas e positivistas. Diferente dessas concepções, ele atribui aos autores da TS a defesa de um conceito helênico de verdade, isto é, a noção de “verdade como objeto de contemplação”, uma “concepção estática da verdade que não impulsiona à ação”. Em suas palavras, a partir de tal concepção, “uma pessoa pode contemplar o ser de Deus, conhecer a verdade, sem que isso a leve necessariamente a uma ação ou mudança na sua vida”. Portanto, para Sung, “se tirarmos a tradição e Magistério eclesiástico como portadores da revelação, não há diferença fundamental entre a teologia católica moderna e a teologia apologética protestante representada” na TS. Em sua opinião, esse entendimento da verdade está ligado à concepção pedagógica rotulada de “concepção bancária da educação”, que seria incapaz de produzir “criatividade e transformação, pois isso não gera saber, muito menos conversão”. Na perspectiva de Sung, tal concepção de verdade não é bíblica. Ao citar alguns versículos bíblicos (Rm 1.18; Jo 14.6), ele tenta mostrar que a noção bíblica da verdade e da revelação não lida com o erro e a ignorância, mas com a injustiça. Assim, “verdade” seria uma palavra de revelação, de encontro, de transformação, “e não apenas a de transmitir informações corretas”, ou seja, o conceito de verdade sugerido por Sung “não é de ordem puramente intelectual”, antes “a verdade é revelada não somente nas palavras ou nos ensinamentos de Jesus guardados nos evangelhos, mas na própria vida de Jesus e tem a função de salvar, de transformar a vida, e não apenas a de transmitir informações corretas”. Em outras palavras, “Jesus veio para denunciar e combater a mentira que predomina no mundo e justifica, até sacraliza, as injustiças que matam. (…) A verdade de Jesus leva ao caminho que leva à vida em abundância para todos”. Tal verdade é encontrada por meio da “experiência pessoal de vida e as obras que comunicam a vida”. Concluindo, “a ‘revelação’ de Deus não está destinada a que o homem saiba algo (do que, de outra maneira, lhe seria impossível ou difícil saber), mas sim a que o homem seja de outra maneira e viva em um nível mais humano”.

Mais adiante, Sung trata da relação entre cristianismo e cosmovisão. Ele parece sugerir que os autores da TS sacralizam a cosmovisão e a cultura ocidentais pré-modernas, tornando-as coincidentes do cristianismo medieval, “fruto de uma elaboração teológica realizada principalmente na Europa pré-moderna”, quando a “cosmovisão cristã” tinha por finalidade “sacralizar a precária ordem social do medievo, sem nenhuma perspectiva de missão, de encontrar e dialogar com outras culturas, religiões e civilizações”. Já que não se pode “separar a ‘essência’ da revelação de Deus da cultura e cosmovisão do povo que a recebeu”, então, para Sung, “a missão cristã significa levar junto com a Palavra a cultura ocidental”, o que geraria um “cristianismo-cultura”, e no caso tratado, uma expressão cultural norte-americana, o American Way of Life – e o preço pago seria “a renúncia ao seu papel profético na sociedade”. A suposição é que tal aproximação facilitaria o crescimento numérico da igreja. Por isso, este modelo de teologia seria incompatível com outras culturas não ocidentais, como é o caso da América Latina, da África e da Ásia, lugares que, de acordo com Sung, se “têm noções muito distintas de verdade, cosmovisão e até mesmo de valores morais”.

Sung passa a considerar a questão da hermenêutica e da educação teológica, já que a teologia precisa afirmar a verdade da mensagem cristã e sua respectiva interpretação para uma nova geração. Esse seria o segundo modelo de educação teológica. O que este propõe é uma distinção entre a linguagem e o conteúdo da mensagem. Diante das mudanças filosóficas do século 20, a teologia deve aderir a uma interpretação plural, fundada “em uma nova compreensão da revelação”. A Escritura seria, nesse modelo, um mero “testemunho” ou “registro” da ação de Deus na história e na experiência de fé. Assim, não se trata de uma comunicação do alto. Antes, a revelação alcança o seu sentido “somente na fé que acolhe”. Logo, a tarefa da teologia como hermenêutica consiste em levar a sério a historicidade de toda verdade, tanto da verdade revelada como do ser humano como sujeito interpretante. E a tarefa da teologia consiste em atualizar o sentido da mensagem contida nas Escrituras, sendo “uma das principais alternativas à compreensão apologética ou fundamentalista da teologia e da educação teológica”.

Desse modo, para essa posição, “a verdadeira compreensão ou a compreensão correta do conteúdo da revelação não é aquela da versão fundamentalista ensinada nas suas igrejas (…), mas sim o sentido encontrado após o uso das ferramentas hermenêuticas”. Deste modo, para Sung, a educação teológica oriunda da “ilustração” (sic) europeia também padece de problemas semelhantes aos da teologia conservadora. De acordo com o autor, esse segundo tipo reproduz o mesmo modelo pedagógico já rejeitado anteriormente, retirando e negando “o conteúdo antigo” e depositando o novo. Para ele, os professores que trabalham nesse paradigma não têm a devida sensibilidade ao desconstruir uma “compreensão pré-moderna e pré-reflexiva da fé dos estudantes”, pois não conseguem distinguir “a experiência da fé da linguagem e cosmovisão que se utilizam para compreender e expressar essa experiência”. Daí a necessidade de tato por parte dos que ensinam nesse modelo a fim de não caírem numa leitura literal do discurso religioso dos alunos oriundos de igrejas evangélicas, eivado de linguagem simbólica pré-moderna, apocalíptica “e até mesmo fundamentalista para falar da sua vida de fé”. Após tratar sobre a linguagem, experiência da fé e teologia, o autor afirma que o critério para os que trabalham neste modelo deve levar em conta que “o mais importante no âmbito da experiência da fé não é se esse discurso religioso corresponde à ‘realidade’, mas sim se esse discurso está levando ou não as pessoas a viverem melhor sua missão de testemunhar o amor de Deus ao mundo, de fazer deste mundo um lugar melhor para os pobres e pessoas marginalizadas”.

Por fim, o autor oferece um terceiro modelo de teologia e de educação teológica, isto é, “teologia como reflexão crítica da vida de fé” e diálogo, tarefa que pressupõe a hermenêutica, “mas não se esgota no encontrar o sentido do evangelho para os dias de hoje”, já que a “tarefa da compreensão está antecedida e guiada pela compreensão dos desafios que o nosso contexto e tempo nos colocam no seguimento de Jesus”. Isso significa, para Sung, que os dois modelos anteriores são irrelevantes aos contextos africano e latino-americano. Mas, de acordo com o autor, não basta pensar teologicamente a partir de certo contexto social e religioso, é necessária “reflexão crítica”, que ajudaria os estudantes a superarem uma “visão imediata e também ideológica da compreensão da realidade”, levando-os a suspeitar “do que antes aceitavam como óbvio, certo e inquestionável”.2  Somente assim se supera a noção já rejeitada pelo autor de educação como “aquisição de novos conteúdos”. Portanto, o diálogo é fundamental para superar essa tensão. É justamente tal falta de diálogo entre docentes e discentes em faculdades de teologia “ilustradas” (sic) que levam os alunos, cujas “experiências de seguir a Jesus” são, “geralmente, imediata, não reflexiva, e também marcada pelas ideologias dominantes que penetraram na cultura da população e também na sua religiosidade”, a rejeitarem tal teologia, o que seria um entrave a “uma verdadeira aprendizagem da teologia como reflexão crítica da fé”. Portanto, para que haja verdadeiro aprendizado, os professores “com formação teológica em diálogo com os instrumentos teóricos do mundo moderno precisam se abrir para as diferentes formas de compreensão da fé cristã que trazem os estudantes, geralmente de cosmovisão pré-moderna”.

Por outro lado, os estudantes “precisam se abrir para o diálogo com formas críticas de compreender a tradição teológica cristã”, pois ambos, professores e alunos, “precisam estar em acordo sobre o objetivo de transformar, humanizar, o nosso mundo”, isto é, “estar de acordo sobre a missão de anunciar a Palavra que liberta e converte; sobre a missão de anunciar o Reino de Deus”. E continua: “Se professores pensam que a missão da educação teológica é transmitir as verdades eternas e imutáveis ou desconstruir a compreensão pré-moderna da revelação por parte dos estudantes através de hermenêutica moderna, um diálogo verdadeiro e frutífero não será possível”. Esse conceito de educação em diálogo pressupõe amor às pessoas e ao próprio mundo, humildade e “também fé nos seres humanos”. Daí a necessidade de se repensar a missão, os “desafios e problemas concretos da nossa realidade concreta”, que enfatiza “não só nos conteúdos, mas fundamentalmente nos métodos pedagógico e teológico”, e que entende a revelação divina não “como um depósito de informações corretas”, mas como um processo pedagógico verdadeiro, que permite o crescimento da humanidade, “onde o ser humano aprende a ser mais humano e a realizar melhor as missões que Deus lhe dá nos dias de hoje, no nosso contexto concreto”, isto é, anunciar o Reinado de Deus, “na defesa da dignidade humana e vida dos excluídos e do meio ambiente, como também ao diálogo com pessoas e grupos de outras religiões e espiritualidades que se unem para assumir os grandes desafios do nosso tempo”.

Questões críticas e pressupostos
Passo a tratar agora dos problemas e incompreensões presentes no texto de Sung. O leitor deve ter em mente que o autor do ensaio ETM é um católico-romano adepto da teologia da libertação. Em contrapartida, minha resposta se dá no âmbito da tradição agostiniana, reformada e evangélica.

1. Em primeiro lugar, o autor defende um conceito não bíblico de revelação, em que esta se dá por meio de um processo de acomodação, cujas respostas teológicas são ditadas não mais pela Escritura, como norma normans, mas por alguns temas previamente tratados como dogma por certa ideologia política – uma reminiscência do método de correlação de Paul Tillich. Ironicamente, em lugar da Escritura, que é a Palavra de Deus, o autor aparentemente toma o construtivismo crítico como cânone — uma variante de uma teoria do ensino considerada hoje ultrapassada em países em que os indicadores de desempenho dos estudantes é o mais elevado, como Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha.3  Assumindo, então, o axioma do construtivismo de que o saber é construído a partir do sujeito, Sung rejeita a revelação como algo “de cima”, em que o ser humano a recebe por fé. Mas, no que se refere à revelação, a tradição cristã assume uma perspectiva oposta: “Tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes” (1Ts 2.13). Portanto, ao rejeitar a revelação, Sung oferece aos seus leitores a busca helênica por Deus, esboçada de forma ambígua. Mas, em lealdade às Escrituras, devemos afirmar que a “revelação é ação soberana de Deus no homem. Se não, não é revelação”.4  Pois, como Ireneu de Lyon escreveu: “Não foi, portanto, por ninguém mais que tivemos conhecimento da economia da nossa salvação, mas somente por aqueles pelos quais nos chegou o Evangelho, que eles primeiro pregaram e, depois, pela vontade de Deus, transmitiram nas Escrituras, para que fosse para nós fundamento e coluna da nossa fé”.5

Na sequência, ele escreve que conservadores negam “a noção de tempo histórico no interior da Escritura”, assim como não lidam com os “ensinamentos contraditórios ou incoerentes” supostamente encontrados na Bíblia. Essa é uma crítica recorrente feita em círculos liberais, que parece ignorar ou desconhecer que eruditos protestantes têm desenvolvido o entendimento da revelação progressiva e unidade bíblica desde meados do século 17, tratando com seriedade estas aparentes contradições.6  Ao que parece, há uma nítida má vontade por parte dos teólogos liberais em dialogar com a tradição biblista evangélica, na medida em que afirmações assim demonstram falta de familiaridade com esta tradição exegética e hermenêutica.

O leitor deve ter em mente que foi justamente a rejeição do ensino cristão da revelação, isto é, de que Deus fala por meio das Escrituras (cf. Gl 3.8), que lançou as teologias contemporâneas numa crise de transitoriedade.7  Isso pode ser exemplificado na própria teologia da libertação (doravante TdL). No auge da Guerra Fria, seguindo a velha esquerda, a TdL supunha que a classe que salvaria o mundo seriam os pobres. Com a derrocada do socialismo no leste europeu, que culminou com a derrubada do muro de Berlim em novembro de 1989, a TdL entrou em crise, perdendo seu discurso. Agora, seguindo a nova esquerda, a TdL entende que a classe que salvará o mundo será a dos “excluídos” e minorias: mulheres, negros, homossexuais, índios, etc. Portanto, esses sistemas liberais, ao abandonar o Deus transcendente que se revela nas Escrituras, colocaram em seu lugar, num salto de fé, uma série de sistemas filosóficos que aspiram à transcendência, mas que são tão transitórios quanto tudo o que é humano é transitório e relativo.

A questão epistemológica pode ser tratada aqui por meio de perguntas: se as Escrituras não são a revelação de Deus a nós, então, sobre qual fundamento pode-se falar, por exemplo, do amor de Deus? Ou, se as Escrituras não são infalíveis, que segurança há de que o que ela ensina sobre Cristo é a verdade? É bem típico dos teólogos liberais se refugiarem no misticismo semântico para se evadir dessas questões.

2. Em segundo lugar, o autor defende um conceito não bíblico de verdade. Ao rejeitar uma caracterização reducionista da “tese bastante difundida de que a mente de Deus é lógica, racional”, o autor oferece uma concepção de verdade, apresentada de forma imprecisa e ambígua, por meio da citação de textos bíblicos usados de forma seletiva – o que não deixa de ser um apelo curioso, já que Sung não aceita a autoridade das Escrituras – ainda que ele ousadamente afirme que “a noção que aparece no evangelho de João ou na carta do Paulo apóstolo não é compatível com a concepção da verdade” como algo, segundo sua interpretação, “meramente ou fundamentalmente intelectual, racional”.

Um exemplo do tratamento bíblico por parte do autor dessa questão serve de ilustração. O versículo de Romanos 1.18 é citado como apoio à noção de que o problema real não é a ignorância ou o erro, mas a injustiça, entendida como “sistema injusto”. Mas Sung simplesmente cita os versículos bíblicos sem tratá-los em seu contexto canônico. Esta seção na epístola aos Romanos trata dos limites da revelação geral e da necessidade da revelação especial, noções que ele rejeita. Ao afirmar que os homens “detêm a verdade pela injustiça”, o texto bíblico ensina que Deus pode ser conhecido, que “se revela do céu”, e por isso os seres humanos são indesculpáveis, merecedores da ira divina, pois distorceram a revelação clara preferindo adorar a “imagem de homem corruptível, bem como aves quadrúpedes e répteis”, mudando “a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente” (Rm 1.25). Por isso, os seres humanos são incapazes de alcançar a Deus por meio da criação, pois “se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-lhes o coração insensato”, isto é, perderam a capacidade de conhecer a Deus. Portanto, Deus os entregou ao seu próprio pecado, “a paixões infames” (1.24-32), por não reconhecerem a glória de Deus. Daí a necessidade da “justiça de Deus [que] se revela no evangelho, de fé em fé” (Rm 1.17) como o único meio de salvação – somente a justiça proveniente de Cristo pode tornar justos os injustos. Deve-se notar que o autor passa ao largo das exortações presentes nas epístolas paulinas sobre o uso da mente, o que pressupõe que o Deus que se revela nas Escrituras se comunica em categorias racionais.8

No evangelho de João, Jesus Cristo afirma a certeza da veracidade da Palavra de Deus: “A tua palavra é a verdade. (…) E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade” (Jo 17.17, 19). O texto não diz que a Palavra se harmoniza com algum outro padrão distinto decorrendo daí a sua veracidade, antes, o que é afirmado é que a Palavra é a própria verdade, o padrão de verdade ao qual qualquer alegação pretensamente verdadeira deve se adequar. Portanto, em termos bíblicos, o conceito de verdade inclui “fidedignidade”, “aquilo que é real” ou “a verdade de uma asseveração”, com implicações intelectuais, morais e espirituais (cf. Gl 2.6, 14; Ef 4.21), em contraste com a mentira, o engano e a falsidade – sendo, inclusive, usada como sinônimo do evangelho. Assim, as Escrituras nos falam de verdade absoluta, acessível, verificável e vivenciável. E somos desafiados a conhecer a verdade e a praticá-la como testemunho de fé. E ao fazê-lo, saberemos que a Palavra é a verdade: “Respondeu-lhes Jesus: O meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo por mim mesmo” (Jo 7.16-17).9

Diferente da caricatura apresentada, a teologia protestante não propõe um conhecimento puramente intelectual da verdade. A vida eterna é conhecer a Deus, e esta relação não se inicia com uma experiência, antes por um conhecimento salvador, que se manifestará gradativamente em nossa experiência de obediência e submissão: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). A salvação implica uma nova relação com Deus. Antes os seres humanos estavam num estado de rebeldia; agora, aqueles que creem são reconciliados mediante o conhecimento de Deus por meio de Jesus Cristo. Curiosamente, a tentativa de rotular como helênico o método teológico esposado pela tradição evangélica também está presente no discurso dos adeptos do teísmo aberto.10

Infelizmente, num texto que se propõe programático, Sung não trabalha com a questão ontológica da verdade. Mas, diante dos três modelos teológicos que ele resume, qual seria de fato o verdadeiro? O que garante a veracidade de tal método? Esta seria determinada simplesmente por ser pós-moderna? E qual o seu fundamento final? Nas Escrituras, respondemos. E o autor?

3. Outro problema identificado no artigo é que Sung faz uma caricatura do entendimento cristão do Deus pessoal e infinito, descartando a possibilidade de que Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – seja pessoal e imutável. Há dois erros aqui: o primeiro é a afirmação arbitrária de que, “por ser transcendente, [Deus] está além das doutrinas” — sem levar em conta, com a devida seriedade, que a tradição cristã afirma tanto a transcendência quanto a imanência, tanto a majestade divina quanto a aliança graciosa, Deus por nós. O segundo refere-se à possibilidade de “modificação ou dinamismo” em Deus, quando o testemunho apostólico afirma: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). A tradição cristã reconhece os limites e a inadequação da linguagem humana para se falar sobre Deus. Mas até o presente momento não apareceu nenhum termo alternativo para se falar de Deus, então a linguagem cristã tradicional se mantém, apesar de suas limitações. Portanto, falamos sobre Deus porque Deus mesmo falou sobre si na Escritura, se revelando como aquele que ama em santidade e age em graça soberana, “que preserva a vida de todas as coisas, (…) bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver” (1Tm 6.13-16). Deus é um ser pessoal imutável, mas não inativo. Então, frases de efeito do tipo “um Deus que não se esvazia é um diabo” não passam de retórica vazia sem significado, na medida em que se evadem das implicações teológicas e bíblicas em questão ⎯ além de ser, obviamente, um afastamento do ensino bíblico sobre Deus. Aliás, o leitor deve ter em mente que a noção de que há mudança na divindade tem sua origem na filosofia do processo, cujas raízes remontam à filosofia grega. E que a noção de que Deus é dipolar fatalmente implicará a negação da distinção Criador–criatura, da Trindade, da presciência e da predestinação, assim como conduzirá seus adeptos ao maniqueísmo dualista.

Nesse contexto, surpreende a afirmação do autor de que ele não vê diferença entre a teologia católica e o que é exposto na TS. Isso talvez aponte para um aparente desconhecimento do autor justamente daquilo que realmente separa a teologia católica da protestante: a ênfase católica na analogia entis, que difere da ênfase protestante — e especialmente reformada — na analogia fidei,11 tema presente do começo ao fim tanto na TS quanto em outra obra que escrevi recentemente, a Teologia cristã. Esse problema da linguagem bíblica sobre Deus, e que possibilita falarmos dele, também se manifesta em círculos liberais no campo da expiação, principalmente no tocante ao ressurgimento da noção medieval de que na expiação Deus sofreu com a humanidade, não para pagar a penalidade do pecado, nem para satisfazer a justiça divina, mas para revelar seu amor. Os adeptos dessa posição supõem erroneamente que a linguagem bíblica sobre Deus é unívoca, quando esta linguagem é, na verdade, analógica.  Ainda no tocante à questão da salvação, o autor em momento nenhum define o que é “vida” ou “vida em abundância”, citadas em seu texto sem qualificação. Essas expressões bíblicas são conectadas no evangelho de João à vida eterna e ressurreição do corpo, temas não mencionados em momento algum no ensaio.

Entendo ser necessário tocar em outro ponto. Não há como separar Cristo e a Escritura, como se Cristo fosse a revelação e a Escritura fosse meramente o veículo dessa revelação. Essa é, na verdade, uma distinção artificial, pois tudo o que sabemos sobre Cristo está nas Escrituras. Então, se estas não são confiáveis, as crenças que a igreja professa sobre Cristo também não serão confiáveis. Ou, parafraseando Martinho Lutero, a Escritura é o berço sobre o qual Cristo repousa. Se o berço for frágil, ele não sustentará o bebê. Se somente o Cristo revelado na Escritura salva, então esta precisa ser um documento confiável para encontrarmos o verdadeiro salvador nela (cf. Jo 7.37-39). Portanto, Cristo é o centro da Escritura – tudo gira em torno da pré-existência, promessa, encarnação, morte expiatória, ressurreição corporal, ascensão e a segunda vinda em glória e poder do Verbo de Deus. A mensagem de toda a Escritura gira em torno do tema Was Christum Treibet – toda a mensagem da Escritura aponta para Cristo e dele deriva, e aquele que se aproxima da Escritura deve encontrar Cristo em cada uma das suas páginas, pois a Escritura é “aquilo que promove Cristo”. Nele temos o modelo de interpretação e conhecimento da verdade; a verdade absoluta personificada e a verdade que serve de padrão absoluto e final para a nossa existência. Logo, o apelo último da fé cristã não é à razão ou à experiência, mas ao Deus encarnado como revelado nas Escrituras ⎯ nele encontramos a verdade e o sentido de todas as coisas.

Como motif de seu texto, Sung usa o reino/reinado de Deus como categoria da missão, mas esse tema bíblico implica reconhecer que “reina o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso” (Ap 19.6), e que seu único Filho, Jesus Cristo, “regerá com cetro de ferro” as nações e, “pessoalmente, pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso”, tendo em “seu manto e na sua coxa um nome inscrito: REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES” (Ap 19.15-16) ⎯ imagens de poder e realeza que causam reações alérgicas severas em adeptos da TdL e do teísmo aberto. Assim, a descrição de H. Richard Niebuhr sobre o velho liberalismo sintetiza bem a noção do reino sem Rei destes movimentos contemporâneos: “Um Deus sem ira levou homens sem pecado para um reino sem julgamento através das ministrações de um Cristo sem uma cruz”.12

Em tudo isso permanece um problema desconcertante e, de certa forma, recorrente em cientistas da religião. Pressupondo uma suposta neutralidade ou isenção de preconceitos diante de seus objetos de estudo e que todas as expressões de fé são idênticas, eles não aceitam as crenças cristãs como ponto de partida para o estudo da religião, atribuindo de modo constante e arbitrário categorias estranhas à fé cristã, na intenção de “interpretá-la”, criticá-la e descartá-la, uma vez que a preocupação de tal ciência é apenas estudar como o homem reage ou responde ao fenômeno religioso. Eles não conseguem aceitar que “considerada a partir da revelação, a religião criada pelos homens é uma contradição feita à revelação. Contradiz a revelação porque a verdade somente pode chegar ao homem por meio da verdade. Ao tratar de tomá-la por si mesmo, o homem peca indefectivelmente. O homem teria de crer, teria de ouvir. (…) Mas na religião o homem fala, não escuta. (…) Por isso [a religião] é a expressão concentrada da incredulidade humana. (…) O que faz o homem é fabricar para si um substituto da revelação, com a qual pretende se antecipar ao que Deus haveria de dar-lhe”.13 Os três pilares da tradição cristã são Deus, revelação e graça – estes são inegociáveis e aqueles que quiserem estudar o cristianismo precisam levar estas crenças em conta, na medida em que estas são basilares aos que abraçam a fé cristã.

4. Outro ponto crítico no texto de Sung é a interpretação que ele faz a respeito do lugar dos enunciados doutrinais na TS e na tradição protestante. Já que Sung citou as Escrituras, isso nos dá oportunidade de remeter o leitor a outros textos do Novo Testamento que ensinam a importância da doutrina. Por exemplo, enfatiza-se a necessidade de se conservar “o mistério da fé com a consciência limpa” (1Tm 3.9), em se manter “firme na palavra fiel, conforme a doutrina” (Tt 1.9) e na necessidade de se falar “em harmonia com a sã doutrina” (Tt 2.1). Portanto, o ministro cristão deve pregar estas doutrinas, pois algum conhecimento delas é essencial à salvação: “Venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseverais; por ele também sois salvos, se retiverdes a palavra tal como vo-la preguei, a menos que tenhais crido em vão. Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1Co 15.1-4), porquanto, “graças a Deus porque, outrora, escravos do pecado, contudo, viestes a obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues” (Rm 6.17).

Para a tradição evangélica, as verdades doutrinais não são um fim em si, mas têm como alvo a comunhão com o Deus pessoal e a transformação ética. Portanto, o fim da tarefa teológica é a glória de Deus, não somente ou meramente “a defesa da fé cristã”, como Sung insiste. E o anseio pela glória de Deus é o principal impulsor do cristão para a transformação da sociedade – um aparente paradoxo que surpreendeu Christopher Hill em seus estudos sobre a guerra civil inglesa do século 17, o que levou a chamá-la de primeira revolução moderna.14

5. Um quinto problema é a proposta do autor de uma inversão da tarefa da teologia ⎯ em vez da reforma eclesial, a transformação da sociedade. Este tem sido o caminho que alguns clérigos têm trilhado na tentativa de tornar a igreja relevante e justificar a fé na esfera pública. Mas há alguns problemas: quando ministros tentam transformar a sociedade, abandonando a reforma da igreja, perde-se no processo a igreja como comunidade cristã e também não se transforma a sociedade. O padrão bíblico e histórico é que, quando a igreja é reformada, a sociedade é modificada. Uma ilustração que posso citar é o avivamento inglês do século 18, que ao mesmo tempo renovou a vida interna da igreja, salvou a sociedade inglesa de um banho de sangue de terror, como na Revolução Francesa, e disparou mudanças sociais profundas, como a libertação dos escravos, reforma prisional, educação gratuita, etc. Mas há outro fator: quando clérigos, descuidando das igrejas locais, tentam transformar a sociedade, traem seu chamado e a própria razão de ser da igreja ⎯ esta foi chamada para ser comunidade da Palavra e do sacramento, não uma espécie de organização não governamental “cristã”. E aqueles que se reúnem numa comunidade de fé o fazem na pressuposição de que serão visitados, cuidados e guiados por meio da Palavra em sua peregrinação. E não negligenciados em suas necessidades espirituais e afetivas, usados em um movimento por mudanças na sociedade ⎯ tarefa essa legítima e que deveria ser conduzida, não por um clero político, mas por cristãos vocacionados e nutridos por igrejas saudáveis, habilitados para esse fim e dedicados a tal tarefa, por meio de ONGs ou OSCIPs agindo de forma independente da igreja.

Ao rejeitar uma ênfase na “doutrina correta”, Sung escreve que “quando se assume o método dedutivo na relação teoria-prática (…) os problemas concretos e angústias das pessoas envolvidas são desconsiderados”, um juízo de valor que demonstra pouca familiaridade com a prática pastoral evangélica em nosso país. A maioria dos pastores que conheço, como aqueles ligados às igrejas assembleias de Deus, batistas, Betel brasileiro, carismáticas, cristãs evangélicas, estão situados entre os de nível socioeconômico baixo ou médio-baixo, servindo em favelas e nas periferias dos grandes centros urbanos no sudeste ou nos ribeirinhos e sertões no norte e nordeste do país. Mesmo com suas limitações (não raro, esses pastores precisam equilibrar o ministério com algum outro trabalho para complementar a renda), têm exercido seu papel com coragem, lutando para se manter fiéis à tradição cristã. Muitos dos problemas listados pelo autor são tratados por estes pastores, não por um foco ideológico, mas por meio da Palavra, que cativa e liberta. Afastando-se das sugestões mágicas do ensino neopentecostal e da utopia da TdL, a pregação desses pastores gera nos membros de suas comunidades aquelas virtudes já descritas como a ética protestante do trabalho: vocação, frugalidade, disciplina, santidade do trabalho e a valoração dos estudos seculares. Aqueles que têm servido em comunidades carentes, de forma leal à mensagem evangélica, têm testemunhado mudanças sociais dramáticas entre os membros destas igrejas. Isso é ilustrado no belo documentário Santa Cruz, produzido pelo canal GNT. E a ironia é que, na medida em que a TdL “colocou os pobres no lugar de Cristo”,15  estes lhes viraram as costas, abraçando o pentecostalismo.

Por causa das questões peculiares do Brasil (violência, concentração de renda numa classe política obtusa e corrupta, desigualdades sociais abissais, aparelhamento e omissão do Estado em áreas-chave, etc.), tratamos na TS do pecado estrutural, que tem sua origem no pecado original e pessoal — um tema muitas vezes negligenciado em livros similares e mesmo na pregação evangélica —, assim como sugerimos pistas para o serviço político do cristão na sociedade. 

6. Sung não compreendeu o tratamento oferecido na TS ao tema das cosmovisões e, especialmente, ao papel controlador dos pressupostos sobre nossa interpretação do mundo. Não raro, os conservadores sacralizam ou reproduzem certas expressões culturais – ainda que este não seja um erro exclusivo a este grupo.16  Mas o tema das cosmovisões foi retirado de seu contexto, na TS, para sugerir que a cosmovisão da teologia conservadora é mera reprodução de uma cosmovisão pré-moderna, o que, obviamente, é uma boa ilustração do típico argumento “espantalho” — inventa-se uma caricatura para depois rejeitá-la. Mas isso oferece a possibilidade de testarmos a cosmovisão do liberalismo teológico, que subjaz ao ensaio ETM. Usando o método que estrutura a TS, podemos citar alguns dos principais temas liberais enfatizados em escolas teológicas pelo Brasil: 

(a) ênfase numa interpretação científica da Bíblia, onde o método histórico-crítico ou uma hermenêutica de suspeita são as únicas ferramentas que podem descobrir a mensagem bíblica;
(b) negação da inspiração das Escrituras, da encarnação, da morte expiatória, da ressurreição corporal; dos milagres, que são negados ou reinterpretados;
(c) as doutrinas cristãs se tornam apenas símbolos ou metáforas;
(d) ética situacional ou relativista;
(e) soteriologia universalista.  

Mas quais são os pressupostos que estão por trás dessas afirmações? Quais são aquelas pré-compreensões assumidas como verdade por parte dos teólogos liberais e que controlam esse programa metodológico? Podemos citar alguns desses axiomas:

a) completa negação da transcendência, ênfase no imanentismo;
(b) anti-sobrenaturalismo;
(c) o ser humano finito se torna o critério último da verdade;
(d) o existencialismo, a fenomenologia ou o marxismo (entre outros) passam a ser a chave para a interpretação da Escritura e do mundo.

No fim, qual a cosmovisão que, no liberalismo teológico, governa a interpretação de Deus, da Escritura e do mundo? Nesse caso, é o ateísmo, que pode ser descrito como um sistema filosófico que nega a existência de Deus, que afirma que o universo existe como uma uniformidade de causa e efeito num sistema fechado e que aspira à objetividade científica. Portanto, a cosmovisão da teologia liberal em suas muitas variantes é naturalista, e seus pressupostos/axiomas são basicamente ateístas. E a TdL é uma profunda marxização do cristianismo, cujos adeptos retiram “do homem toda e qualquer capacidade de se ver como responsável pelo mal, a menos que ele seja rico, oprima sua mulher e seja homofóbico”. Mas que, “ao retirar a contradição moral de ‘dentro’ do homem e colocá-la na política, ‘fora dele’”, roubam “do homem a possibilidade de angústia moral verdadeira, dizendo para ele que a culpa é dos ricos, e com isso elas apagam toda a tradição cristã de reflexão espiritual e moral centrada na consciência moral”,17  assim como a experiência de redenção e restauração em Cristo crucificado e ressurreto.

A abordagem que seguimos na TS reconhece que nenhum fato, histórico ou não, pode ser interpretado de maneira coerente sem pressupor o Deus trino revelado nas Escrituras. Portanto, avançamos a partir das pressuposições das Escrituras, através das proposições das Escrituras, chegando às conclusões das Escrituras. Essa abordagem descarta a noção ingênua de “neutralidade científica”. E podemos sugerir dois argumentos a seu favor: (1) “Metodologicamente, não podemos esperar que sequer entendamos, e muito menos que aceitemos”, a mensagem da Escritura “se impusermos sobre ela pressuposições estranhas”; (2) “Devemos, portanto, permitir que nosso pensamento, pelo menos temporariamente, seja moldado pelas pressuposições da própria Escritura, simplesmente a fim de entendê-la”, pois, em última análise, as Escrituras apresentam “não meramente uma descrição plausível do mundo e dos princípios de ordem que o governam, como também a verdade objetiva revelada pelo Autor da realidade”. Portanto, “a aceitação das pressuposições bíblicas” nos preservará da tentação da idolatria intelectual “e nos levará a um conhecimento” da verdade e da realidade como reveladas nas Escrituras.18

7. Por outro lado, diferente do que o autor sugere no texto, de que a teologia conservadora é irrelevante em contextos não ocidentais, é justamente essa fé que tem crescido maciçamente no sul do globo, não as teologias liberais ou de suspeita hermenêutica. Ele afirma que na Ásia “somente 3% da população são cristãs”, mas este é um dado impreciso – hoje 8.75% da população asiática são cristãs. Na atualidade, o cristianismo é a maior religião formal da China. As várias obras de Philip Jenkins sobre o atual crescimento da fé cristã são obrigatórias para o estudo desse fenômeno.19  Em 1900 havia entre oito e dez milhões de cristãos na África, mas na atualidade há cerca de 515 milhões de cristãos, o que representa cerca de 62.60% da população africana. Em termos quantitativos, este é o maior crescimento religioso que já ocorreu em toda a história. O mesmo pode ser dito sobre o Oriente Médio e a América Latina. E o perfil dessa nova cristandade é descrito por Jenkins nesses termos: “Essas novas igrejas pregam uma fé pessoal profunda e uma ortodoxia comunal, assim como o misticismo e o puritanismo, todos calcados na clara autoridade das Escrituras”. Na atualidade o liberalismo teológico está circunscrito a bolsões no norte dos Estados Unidos e no oeste da Europa — locais onde a fé cristã está se tornando periférica e irrelevante para a cultura ao seu redor.

Conclusões
Para encerrar, gostaria de tratar de duas questões críticas que ultrapassam o texto ETM, mas que oferecem ocasião para tratar brevemente do programa teológico liberal:

Não deixa de ser irônico que Sung tenha escolhido pontuar críticas à TS, uma obra que propõe uma teologia em diálogo — a começar pela metodologia integrativa empregada. Na seção de agradecimentos, mencionamos nominalmente dezoito pessoas que leram partes ou mesmo todo o manuscrito. Entre esses há especialistas em Antigo Testamento e Novo Testamento, hermenêutica, teologia sistemática, história, filosofia, matemática, física, biologia, pedagogia, direito, psiquiatria, literatura, psicologia, formados em pelo menos três continentes. Há eruditos e leigos, homens e mulheres. Travamos intenso e frutífero debate com esses irmãos e irmãs, que nos ajudaram em vários momentos específicos, enquanto a escrevíamos e a revisávamos. E, conscientemente, em todo o livro, dialogamos intensa, respeitosa e criticamente com alguns dos principais escritores cristãos, especialmente com Ireneu de Lyon, Atanásio de Alexandria, Agostinho de Hipona, Anselmo de Canterbury, Martinho Lutero, João Calvino, Jonathan Edwards, John Wesley, Dietrich Bonhoeffer, Karl Barth e Cornelius van Til. Os principais documentos confessionais cristãos também são citados em quase todas as páginas da TS. Quando pontuamos nossas discordâncias na TS, fizemos com respeito, seja com irmãos na fé, seja com aqueles que estão em posição antagônica. Mais diálogo que isso é impossível, não é mesmo? Portanto, a conclusão que chego é que Sung, ao rejeitar um modelo representado por um livro construído em diálogo e que almeja ser uma confissão de fé evangélica, parece simplesmente oferecer um roteiro para desconstruir de forma amena a linguagem (e a experiência) de fé daqueles oriundos de “igrejas evangélicas fundamentalistas”, como ele as chama em seu texto.

Devemos lembrar que, como escreveu J. Gresham Machen, “liberalismo não é cristianismo”.20  O liberalismo teológico é episódico em nosso país. Gerou divisão entre presbiterianos na década de 1930, mas ganhou mais visibilidade por volta de 1950, por meio de missionários estrangeiros, se fixando em escolas teológicas ligadas às igrejas protestantes históricas em meados de 1960. Depois, brasileiros que estudaram no exterior a reintroduziram nessas escolas no fim da década de 1970. Em meados da década de 1990 ressurgiu nessas mesmas instituições teológicas. E mais uma vez reaparece, desta vez em setores à margem da corrente principal do protestantismo brasileiro. O que precisa ser dito é que uma teologia que descarta a inspiração das Escrituras, Deus e o pecado, a pessoa de Cristo e a redenção por meio de sua morte e ressurreição, e a nova vida como obra do Espírito Santo, perdeu o direito de ser reconhecida como “uma resposta cristã” aos desafios que enfrentamos no Brasil. Como Robinson Cavalcanti escreveu: “Lamentavelmente, o secularismo-liberalismo se consolidou nos espaços protestantes. Não somente a Reforma foi abandonada, mas também o próprio cristianismo, como entendido desde a sua origem. Uma coisa é atualizar linguagem, métodos, ênfases, estratégias; outra é substituir conceitos e preceitos de uma religião que se pretende de revelação. Doutrinas e padrões de comportamento são relativizados, e esses aloprados ainda esperam que uma pessoa humana normal adira a essa mixórdia!” 21

Nesse sentido, a teologia liberal é mais propriamente uma heresia, mera variante do gnosticismo enfrentado pela igreja em seus primórdios.22  Pois tornar a leitura bíblica dependente de pressupostos filosóficos estranhos à fé cristã é torná-la um sistema esotérico, é tornar a leitura do texto bíblico dependente de uma gnose: o oposto, certamente, de uma leitura “inclusiva” e aberta aos humildes, que são em teoria o alvo preferencial da TdL.23  Logo, o liberalismo opera da mesma forma que o antigo gnosticismo, mantendo os enunciados cristãos, mas mudando seu significado/conteúdo, em que a pessoa pode ser “salva” por meio do conhecimento de uma suposta verdade filosófica/ideológica oculta à grande maioria das pessoas. Os “cristãos positivos” alemães eram fervorosos adeptos da teologia liberal. E a resposta a esse movimento foi dada por Karl Barth em 1934, e faríamos bem em escutá-la: “Vocês têm uma fé diferente, um espírito diferente, um deus diferente”.24  Não há como cristãos subestimarem o liberalismo teológico. Como já se sugeriu, esta corrente teológica é parasitária. Liberais não plantam igrejas, não fundam seminários, não constroem hospitais nem escolas. Pelo contrário, eles os fecham. Os monumentos do liberalismo são as esvaziadas faculdades de teologia, as igrejas paroquiais e as catedrais das igrejas estatais europeias, vivas apenas como vestígios de lembranças melancólicas de um tempo que não volta mais. É verdade: eles promovem uma ilusão (2Tm 4.4) e abraçam “uma fé diferente, um espírito diferente, um deus diferente”.

“A palavra do Senhor, porém, permanece eternamente” (1Pe 1.25).

___________________________

1 Karl Barth, “How My Mind Has Changed”, em Walter Altmann (ed.), Karl Barth – Dádiva e louvor; artigos selecionados. São Leopoldo: IEPG & Sinodal, 1996, p. 427.
2 Um eco da distinção entre a consciência ingênua e a consciência crítica, em Paulo Freire, Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
3 Desde meados de 1980, especialmente nos Estados Unidos, começou um debate acalorado sobre métodos pedagógicos, e tratá-lo está além do alcance desse ensaio. Para uma revisão da bibliografia sobre este debate, toda ela ainda inédita em português, recomendo o ensaio de João Batista Araujo e Oliveira, “Lereis como deuses: a tentação da proposta construtivista”, Revista Sinais Sociais. No 1, Ano 1, Maio-Agosto de 2006, p. 146-178.
4 Karl Barth, Revelação de Deus como sublimação da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 32. Originalmente esta obra é uma nova tradução de Church Dogmatics I/1, §17, feita para o inglês por Garrett Green.
5 Adv. Haer. 3.1.1.
6 Cf., por exemplo, Geerhardus Vos, Teologia bíblica; Antigo e Novo Testamentos. São Paulo: Cultura Cristã, 2010 e Herman Ridderbos, A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
7 Para uma introdução ao assunto, cf. Hermisten M. P. Costa, Raízes da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004 e Stanley J. Grenz & Roger E. Olson, A teologia do século 20. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
8 Cf., por exemplo, John R. W. Stott, Crer é também pensar. São Paulo: ABU, 1994.
9 Para um estudo detalhado sobre o significado bíblico deste vocábulo, cf. Gordon H. Clark, “Verdade”, em Walter A. Ewell (ed.), Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 613-615 e A. C. Thiselton, “Verdade”, em Lothar Coenen & Colin Brown (ed.), Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 2601-2630.
10 Michael S. Horton, “Helênico ou hebreu? O teísmo aberto e o método teológico reformado”, John Piper, Justin Taylor & Paul K. Helseth (ed.), Teísmo aberto. São Paulo: Vida, 2006, p. 243-286.
11 Cf. Franklin Ferreira & Alan Myatt, Teologia sistemática. São Paulo; Vida Nova, 2007, p. 37-44.
12 H. Richard Niebuhr, The Kingdom of God in America. Nova York: Harper & Row, 1959, p. 193.
13 Karl Barth, Revelação de Deus como sublimação da religião, p. 46-47. Algumas críticas perceptivas à ciência da religião podem ser lidas em Karl Barth, Palavra de Deus, palavra do homem. São Paulo: Novo Século, 2004, p. 141-166.
14 Cf. especialmente Christopher Hill, O eleito de Deus; Oliver Cromwell e a revolução inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 e Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça; idéias radicais durante a revolução inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
15 Devo esta percepção ao ensaio de Clodovis M. Boff, “Teologia da libertação e volta ao fundamento”, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 67, nº 268 (2007), p. 1001-1022. Cf. também Clodovis M. Boff, “Volta ao fundamento: Réplica”, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 68, nº 271 (2008), p. 892-927.
16 Para a tipologia da relação entre evangelho e cultura, ainda é obrigatória a leitura de H. Richard Niebuhr, Cristo e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. Evangélicos fundamentalistas agem sob o modelo “Cristo contra a cultura”, enquanto liberais adotam o modelo “Cristo da cultura”. O modelo assumido na TS é o de “Cristo transformador da cultura”. Cf. Franklin Ferreira & Alan Myatt, Teologia sistemática, p. 669-675, 689-695.
17 Luiz Felipe Pondé, Guia politicamente incorreto da filosofia; ensaio de ironia. São Paulo: Leya, 2012, p. 153-154.
18 Harold O. J. Brown, “A opção conservadora”, Stanley Grundry (ed.), Teologia contemporânea. São Paulo: Mundo Cristão, 1987, p. 354-355.
19 Cf. Philip Jenkins, The Next Christendom: The Coming of Global Christianity. New York: Oxford University Press, 2011, The New Faces of Christianity; Believing the Bible in the Global South. New York: Oxford University Press, 2006 e Mark Noll, The New Shape of World Christianity; how Americans experience reflects global faith. Downers Grove, Il: IVP, 2009. Para os sofrimentos da igreja chinesa sob os quase 60 anos de regime do Partido Comunista da China, cf. Liao Yiwu, Deus é vermelho. São Paulo: Mundo Cristão, 2011. Para os que quiserem conferir o tipo de teologia que tem recebido imensa aceitação na África subsaariana, recomendo Tokunboh Adeyemo (ed. geral), Comentário bíblico africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.
20 J. Gresham Machen, Cristianismo e liberalismo. São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 157.
21 Robinson Cavalcanti, “Igreja – o futuro está no resgate do passado”, Revista Ultimato, nº 318 (Maio-Junho 2009), p. 42.
22 A definição empregada aqui para “heresia” é uma negação ou comprometimento de uma doutrina cristã essencial à salvação.
23 Craig M. Gay,A sociologia do conhecimento e a arte da suspeita (uma interpretação sociológica da interpretação)”, em Elmer Dyck (ed.), Hermenêutica; uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica. São Paulo: Shedd, 2012, p. 97-124.
24 Cf. Franklin Ferreira, A Igreja Confessional Alemã e a ‘Disputa pela Igreja’ (1933-1937)”. Fides Reformata, vol. 15 (2010), p. 9-36.

8 COMENTÁRIOS

  1. parabéns professor pela capacidade e a dignidade, na qual exp“s a verdade. Deus ‚ fiel e tem levantado homens como o senhor para combater os pseudos cristãos.

  2. O marcante nessa dissertação foi como o prof. Franklin se mant‚m fiel ao princípio de partir de uma cosmovisão estruturada sobre a verdade bíblica. Excelente!

  3. A luz do genuíno evangelho de Cristo resplandece destruindo as trevas da mentira e fazendo brilhar sua verdade. Graças a Deus pela vida do Pr Franklin e pelo artigo aqui exposto, resposta firme, clara e acima de tudo bíblica. Deus defende a sua causa e tem usado servos fiéis como instrumentos nesta empreitada e nosso irmão Franklin ‚ um destes instrumentos. Pr Franklin foi ao cerne da questão, se o homem ‚ o ponto de partida da reflexão teológica então a conclusão ser  atropocentrica, glorificadora do homem, deificadora deste. Toda nossa reflexão tem que partir de Deus e da Sua Palavra, somente assim estaremos resguardados das heresias liberais.

  4. Extremamente relevante a fala do reverendo Franklim, uma vez que a transcendência ‚ substituida por uma imanencia pressuposta no existencialismo francês que norteia boa parte da teologia da libertação e de Jung.

  5. Li e gostei, principalmente porque Franklin reafirma a linguagem humana para a teologia – apesar de limit -la (analogias, antropomorfismos – discordo que a Bíblia contenha só isso), afinal, que outra linguagem temos casa ‚ casa, jumentinho ‚ jumentinho e Deus ‚ Deus, etc!

    Sung e liberalismo ‚ teologia de artimanha – minhas crianças disseram: Manda embora essa estranha

    Abraços
    Orlando
    souteologico.blogspot.com

  6. Louvor a Deus por pessoas como Dr. Russel Shedd.
    Os líderes cristãos precisam beber mais dessa fonte, pois serão melhores direcionados a uma doutrina Bíblica.

  7. Tenho profunda admiração pelo DR.Russel ,simplicidade, pelo conhecimento de DEUS,e sua humildade de servo,posso dizer com certeza pois convivi com ele alguns dias na IBMC

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