Concursus providencial divino: O problema da determinação dos atos livres

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Introdução

A proposta desse artigo é debater sobre o problema da determinação dos atos livres através de uma análise do concursus providencial divino de acordo com a teologia reformada. A necessidade desse artigo se deve, principalmente, à escassez de trabalhos exaustivos quanto a essa maravilhosa doutrina, que é a doutrina da providência, sendo o concursus uma parte dessa doutrina. O Dr. Heber Campos faz essa notável observação em monumental trabalho sobre a providência divina, ele diz “Não obstante a realidade da providência divina, tem havido um certo desprezo à doutrina da providência nas últimas décadas no mundo chamado cristão. Ela tem sido esquecida ou negligenciada nos ensinos de seminários e das igrejas” (CAMPOS, 2001, p.8) pois grande parte dos poucos materiais que se tem, tem sido superficiais, descritivos e afirmativos, onde são feitas afirmações de que Deus é soberano e a tudo controla e determina, ao mesmo tempo que afirmam que o homem é livre, mas poucos propõem uma forma de como conciliar essas duas afirmações, são raras as propostas a respeito da solução do problema da determinação dos atos livres, o que normalmente nos leva assumir um mistério. Assumir um mistério não é ruim em si mesmo, o próprio apóstolo Paulo assume que certas coisas, dadas a sua grandeza, são misteriosas (1 Co 2.7), no entanto, isso não é motivo para evitarmos uma análise das Escrituras, e, através da direção do Espírito Santo, propor uma tese genuinamente Bíblica e ortodoxa a respeito de um tema que é considerado misterioso. Nosso trabalho terá como fontes, as Escrituras Sagradas, os escritos do grande reformador João Calvino, a Confissão de fé de Westminster e os Cânones de Dort, exatamente nessa ordem de autoridade e prioridade, além das referências de algumas poucas teologias sistemáticas de autores signatários da teologia reformada calvinista. O objetivo do uso restrito de fontes, deve-se à proposta de ter uma doutrina da providência e concorrência que seja genuinamente calvinista, sem correr o risco de imputar a este autor um desvio temerário das doutrinas da reforma.

1 – O que é providência divina?

Para o reformador João Calvino providência é o governo ativo de Deus sobre todas as coisas, como diz:

Portanto, que os leitores apreendam de início que não se chama providência aquela através da qual Deus observa passivamente do céu as coisas que se passam no mundo; ao contrário, é aquela pela qual, como que a suster o leme, governa a todos os eventos. Portanto, ela se estende, por assim dizer, tanto às mãos, quanto aos olhos.[1](CALVINO, S/D, p. 202)

A Confissão de fé de Westminster é mais precisa e didática quando diz:

Pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e imutável conselho da sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a maior até a menor.[2] (CFW, S/D, Cap V.I)

A providência, no ensino da teologia reformada, se estende a tudo que foi criado, Deus, definitivamente controle, rege, sustenta, preserva e move cada evento, objeto e todo o mais que se possa chamar de existente. A doutrina da providência pode ser dividida nos seguintes elementos:

Conservatio que envolve a preservação da criação; Provisio, é o aspecto da providência que faz todas as provisões básicas para a vida das pessoas de forma natural ou sobrenatural; Directio, é o aspecto que trata de como Deus conduz as suas criaturas; Gubernatio envolve a direção de todas as coisas para o cumprimento dos propósitos previamente determinados; Retributio é o aspecto da providência divina que trata da punição dos pecadores, sejam eles justos ou injustos; Concursus envolve a idéia de cooperação de Deus e homens na realização de todos os atos, sejam bons ou maus, para a consecução de tudo o que Deus de antemão escreveu, embora não precise ser considerado mais um elemento da providência, mas sim um modo de Deus trabalhar.”[3] (CAMPOS, 2001, p. 62)

As Escrituras endossam, insistentemente, que a providência divina está sobre absolutamente tudo do que se pode considerar existência, seja inanimado (objetos mortos, mundo físico, leis da natureza), ou vivos irracionais (animais brutos), ou vivos racionais (anjos e homens), como está escrito: “Só tu és Senhor; tu fizeste o céu, o céu dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto neles há, e tu os guardas com vida a todos; e o exército dos céus te adora.” (Neemias 9:6). Também está escrito:

“Mas ao fim daqueles dias eu, Nabucodonosor, levantei os meus olhos ao céu, e tornou-me a vir o entendimento, e eu bendisse o Altíssimo, e louvei e glorifiquei ao que vive para sempre, cujo domínio é um domínio sempiterno, e cujo reino é de geração em geração.

E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?” (Daniel 4:34,35)

E mais: “Os homens jogam os dados sagrados para tirar a sorte, mas quem resolve mesmo é Deus, o Senhor.” Provérbios 16.33

Aqui, vale destacar que a crença judaica e apostólica no domínio absoluto de Deus sobre todos os acontecimentos era tão grande, que os mesmos jogaram os dados sagrados e tiraram a sorte para escolher o novo apóstolo: Então tiraram sortes, e a sorte caiu sobre Matias; assim, ele foi acrescentado aos onze apóstolos. (Atos 1:26). Os israelitas também tiraram sorte para descobrir o pecado de Acã (Js 7.16) e também para dividir a herança entre as tribos (Js 15.1-12), portanto, não há motivos para pensar que o versículo de Provérbio de 16.33 seria algum tipo de hipérbole poética, mas deve ser encarado em sua total literalidade, pois o testemunho da Escritura é claro que essa era a crença dos homens de Deus no passado.

2 – Concursus providencial divino

Para entendermos bem o problema, devemos estabelecer as duas verdades que estão propostas, a saber:

1 – Todos os acontecimentos são determinados por Deus, inclusive as ações humanas.

2 – Os homens são livres.

A Confissão de fé de Westminster (CFW) nos diz:

Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas.[4] (Seção III.I)

Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a causa primária, todas as coisas acontecem imutável e infalivelmente, contudo, pela mesma providência, Deus ordena que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias, necessárias, livre ou contingentemente.[5] (Seção V.II)

Notem que é definitivamente um mito que na teologia reformada calvinista, haja qualquer tipo de afirmação de que o homem não goze de liberdade, o homem não só tem liberdade, como também é causa total de tudo que faz, mas também é afirmado que Deus controla, preserva e determina tudo. Trataremos sobre os tipos de liberdade mais à frente.

2.1 – Provas escriturísticas

2.1.1 – Deus determina todas as coisas

Esse é um fato incontestável dentro das Escrituras sagradas: “Este é o propósito que foi determinado sobre toda a terra; e esta é a mão que está estendida sobre todas as nações. Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?” (Isaías 14.26,27)

Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade. Que chamo a ave de rapina desde o oriente, e de uma terra remota o homem do meu conselho; porque assim o disse, e assim o farei vir; eu o formei, e também o farei. (Isaías 46.10,11)

– Deus determina o dia da morte: “Visto que os seus dias estão determinados, contigo está o número dos seus meses; tu lhe puseste limites, e ele não poderá passar além deles.” Jó 14.5

– Determina atos bons: “Quem diz de Ciro: Ele é o meu pastor, e cumprirá tudo o que me apraz; dizendo também a Jerusalém: Sê edificada; e ao templo: Funda-te.” Isaías 44.28

– Determina atos maus: “O Rei, pois, não deu ouvidos ao povo, porque esta revolta vinha do Senhor.” (1 Reis 12.15) “E, na verdade, o Filho do homem vai segundo o que está determinado; mas ai daquele homem por quem é traído!” (Lucas 22:22) “A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos;” (Atos 2:23)

2.2.2 – O homem é livre:

Eles escolheram seus próprios caminhos, e delicie-se com as suas abominações. Mas também vai escolher aflição para eles e enviar-lhes o que eles temem isso. Como ninguém respondeu quando eu chamei, quando eu falava, ninguém ouvia. Pelo contrário, o que era mau aos meus olhos e escolheu o que eu não gosto. (Is 66:3-4).

2.3 – Discussão – Determinação de atos livres

Mas como isso acontece? Como pode um ato ser livre e ainda determinado por Deus? A própria Confissão de fé de Westminster nos dá a solução: “Deus ordena que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias”, ou seja, Deus, que é a causa primária, move (concorrência divina) cada criatura, que é a causa secundária de acordo com a própria natureza delas (preservação), pois Deus mantém todas as coisas existindo e preservando as propriedades com as quais ele criou[6], como está escrito: Só tu és Senhor; tu fizeste o céu, o céu dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto neles há, e tu os guardas com vida a todos;(Neemias 9.6), e em Jó 34.14-15: Se ele tem a intenção de retirar o seu espírito, tirar o fôlego da vida, toda a humanidade pereceria, a humanidade seria poeira!  Explicando melhor peguemos o fogo como exemplo. O fogo queima, é de sua natureza queimar, Deus criou e preserva assim, então quando Deus move o fogo, ou energiza o fogo, o fogo não pode molhar, ele vai inevitavelmente queimar, a não ser que Deus, sobrenaturalmente, mude a natureza desse fogo, então ele deixará de ser fogo e será outra coisa, e assim fará o que a nova natureza puder proporcionar. Assim também, Deus move o ser humano de acordo com a natureza que lhe é própria, qual a natureza do homem? O homem é racional, livre, consciente, portanto, quando Deus o move, move de acordo com sua natureza que é racional e livre, portanto, sempre que Deus move o homem, esse ato é livre pela própria natureza do ato.

Ainda assim, reconhecemos que essa explicação não é suficiente para nos mostrar em definitivo que o ato é livre, para isso temos que recorrer a algo chamado – vontade. Lembremos da Confissão de fé de Westminster, já citada anteriormente, que diz que “nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas.”, explicando melhor, cada criatura e, em específico, como tratado aqui, faz aquilo que sua natureza o constrange a fazer, sendo essa atitude tomada, um ato de sua própria vontade, nascida nele mesmo, mas energizada/movida por Deus. Peguemos o exemplo do homem em seu estado natural, o Apóstolo Paulo diz: “Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entende-las, porque elas se discernem espiritualmente”(1 Co 2.14) e , “Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser” (Rm 8:7), notem que o homem natural sequer entende as coisas de Deus, ele simplesmente não tem a opção de fazer diferente, mas sem dúvida tem a vontade de rejeitar a Deus por causa da sua natureza depravada, portanto, a não ser que Deus transforme essa natureza depravada em uma natureza regenerada, ele jamais poderá produzir frutos dignos de arrependimento, mas ele não é coagido a isso, não é forçado, como alguns objetores argumentam, a liberdade dele não foi tirada, é a condição dele que o coloca nesse estado, é a condição de depravado que o constrange a tomar atitudes que são pecaminosas, rejeitando a Deus, pois uma árvore ruim, produz frutos ruins (Mt 7.18) e de uma mesma fonte não pode jorrar água doce e amarga e uma figueira não pode produzir azeitonas (Tg 3,11.12), as atitudes do homem são determinadas pela sua natureza, pelo seu estado interior, seja depravado ou seja regenerado, seja ele nascido de novo ou um homem natural. Aqui fica rejeitada a chamada liberdade libertária (liberdade irrepcepta), pois de uma mesma figueira não produz outro fruto a não ser figo e uma fonte não jorra dois tipos de águas diferentes, assim como o homem não toma dois tipos de decisões por não poder agir contra sua própria natureza, o homem é livre por tomar atitudes de livre vontade, não por ter opções ou por ter capacidade de fazer diferente, tudo que ele faz é de vontade própria, por isso é livre, no entanto o ato é certo, logo é determinado, uma vez que Deus move esse homem a tomar determinada atitude, sem o coagir, pois o homem embora movido, faz exatamente aquilo que a sua própria natureza o constrange a fazer. Também fica devidamente refutada a objeção comum de que a liberdade libertária é o pressuposto para a responsabilidade humana, pois se em estado de depravação total o homem é incapaz de entender o evangelho e portanto de tomar uma atitude diferente da rejeição a Deus, já que o mesmo sequer entende, o mesmo deveria não ser culpado de forma alguma por sua rejeição a Deus, isso transformaria o estado de depravação em um estado de salvação, pois culpa nenhuma poderia ser imposta ao homem natural e ninguém seria condenado, pois já que o poder de fazer diferente é o fator que torna o homem responsável pelos seus atos, o depravado jamais seria responsável.

2.2.4 – O mover de Deus é causal e não simultâneo

A Escritura diz em Hebreus 1.3 – “sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder”, Grudem comenta sobre a palavra sustentar:

A palavra grega traduzida por “sustentar” é phero, “sustentar, manter”. Ela é comumente usada no NT para dar a ideia de carregar algo de um lugar para o outro, como trazer um paralítico em uma maca até Jesus (Lucas 5:18), trazer vinhos ao encarregado de uma festa (João 2:8), ou trazer a capa e os livros a Paulo (2 Tm 4:13). Isso não significa simplesmente “suster”, mas tem o sentido de controle proposital sobre o que está sendo carregado de um lugar para outro.[7](GRUDEM, 1999. p.152)

A palavra pherô, segundo dicionário Strong (5342)[8], significa ser, carregar, gerar, produzir, vir, deixar que ela conduza, ser conduzido, suportar, continuar, liderar, mover, alcançar, correr, sustentar. A palavra phero, nesse texto, de Hebreus 1.3, ratifica tanto a preservação como a concorrência, tendo um sentido muito amplo, sendo o versículo mais completo quanto a descrição da natureza da providência divina. Assim, o texto pode ser traduzido tranquilamente por “movendo todas as coisas pela palavra do seu poder”.

O Dr. Heber Campos afirma que:

Paulo afirma categoricamente que Deus “faz todas as coisas de acordo com o conselho da sua vontade”(Ef 1.11). Isto quer dizer que nada do que acontece neste mundo é à parte do cumprimento da vontade de Deus e sem que ele esteja envolvido. A palavra grega que é traduzida como “faz” é energeo (de onde vem a palavra portuguesa energia, que é a comunicação de poder ou o fato de Deus trabalhar), que indica o fato de Deus energizar cada obra na qual ele participa. Sem a energia ou o poder divino, nenhum evento acontece e nenhuma obra é feita. A vontade de Deus opera de modo que em todas as coisas tem participação. Nenhum evento que acontece no mundo está fora da providência de Deus.[9]

A palavra grega energeo, não significa em hipótese alguma, “cooperar”, como dois homens em igualdade, que iniciam um trabalho, mas significa causar ou tornar possível determinada função – fazer funcionar, dar a capacidade para fazer[10](LOUW, NIDA, 2013, p. 455) logo podemos afirmar que o mover de Deus no homem é causal, ou seja, anterior a atividade da causa secundária, Deus sempre inicia o movimento, mas não só inicia, ele também dirige e está ativo em todo o tempo, portanto, deverá ser rejeitada a ideia de um concursus parcial simultâneo como defendido por molinistas, mas um concursus causal e total, portanto, uma ação da causa primária anterior à causa secundária e uma colaboração de duas causas totais durante a ação concorrente da causa primária e secundária. Algumas passagens paralelas com o uso da palavra energeo, podem ser usadas para ratificar esse posicionamento, além das já citadas, vejamos: “E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.” (1 Co 12:6). Nessa ocasião, o apóstolo Paulo está falando sobre os dons que o Espírito concede ao cristão, será mesmo que alguém poderá dizer que o homem produz o dom juntamente com Deus e independente dele? Ou é mais razoável concluir que Deus causa, age eficazmente, anterior ao movimento do agente, e só depois o agente começa a sua participação?

O posicionamento que defende um concursus não causal, mas simultâneo, que nos leva à causas parciais, foi rejeitado pelo Sínodo de Dort:

Erro 9 – Graça e livre vontade são as causas parciais que operam juntas no início da conversão. Pela ordem destas causas a graça não precede à operação da vontade do homem. Deus não ajuda efetivamente a vontade do homem para sua conversão, enquanto a própria vontade do homem não se move e decide se converter. (Cânones de Dort, Rejeição de Erros)

Fica também rejeitada a tese de que, embora o mover de Deus seja causal, o agente seque sozinho a partir disso, ou seja, que Deus apenas “empurra” o agente livre. O grande reformador também diz:

Contudo não repudio totalmente o que se diz acerca da providência geral, mas que, por sua vez, me concedam que o universo é regido por Deus, não apenas porque vigia sobre a ordem da natureza por ele estabelecida, como também porque exerce peculiar cuidado de cada uma dentre suas obras. Realmente é verdade que as espécies das coisas são movidas, uma a uma, por instinto secreto da natureza, como que a obedecerem ao eterno mandato de Deus, e que o que Deus uma vez estatuiu emana naturalmente. E aqui pode-se evocar o que Cristo diz, ou, seja, que ele e o Pai estiveram sempre em ação desde o início [Jo 5.17]; e o que Paulo ensina: que “nele vivemos, nos movemos e existimos” [At 17.28]; e o que também o autor da Epístola aos Hebreus, querendo provar a deidade de Cristo, afirma: todas as coisas são sustentadas por seu poderoso arbítrio [Hb 1.3].[11] (CALVINO, S/D, p. 203)

2.2.5 – O mover de Deus, além de causal não é indiferente

João Calvino diz:

E de fato Deus reivindica para si onipotência, e quer que reconheçamos que ela lhe é inerente, não como a imaginam os sofistas, indiferente, ociosa e semi-entorpecida; mas, ao contrário, vigorosa, eficaz, operosa e continuamente voltada à ação; tampouco uma onipotência que seja apenas um princípio geral de movimento indistinto, como se a um rio ordenasse que flua por leito uma vez preestabelecido; mas, antes, de modo que se ajuste a movimentos individuais e distintos. Por isso, pois, ele é tido por Onipotente, não porque de fato possa agir, contudo às vezes cesse e permaneça inativo; ou, por um impulso geral de continuidade ao curso da natureza que prefixou, mas porque, governando céu e terra por sua providência, a tudo regula de tal modo que nada ocorra senão por sua determinação. Pois, quando se diz no Salmo [115.3] que “Ele faz tudo quanto quer”, trata-se de uma vontade definida e liberada. Ora, seria insipiente interpretar estas palavras do Profeta à maneira dos filósofos, ou, seja, que Deus é o agente primário, visto ser o princípio e a causa de todo movimento, quando, antes, nas coisas adversas, os fiéis se confortam neste alento: que, já que estão debaixo de sua mão, nada sofrem senão pela ordenação e mandado de Deus. Pois, se o governo de Deus assim se estende a todas as suas obras, é pueril cavilação limitá-lo ao influxo da natureza.[12]  (CALVINO, S/D, 200-201)

Embora Deus mova a causa secundária segundo sua própria natureza, não podemos afirmar que Deus esteja limitado a agir somente assim, como se a natureza de tal ser pudesse limitá-lo. A razão de rejeitar uma concorrência indiferente, ou seja, que Deus apenas se move de acordo com a natureza da criatura, sem poder incliná-la para poder fazer Sua vontade, nos levaria a conclusão de que os acontecimentos seriam determinados pela criatura e não por Deus. Se a criatura é quem detém o poder de determinar o evento a se seguir, então Deus passa a ser um agente passivo na concorrência e, portanto, um agente determinado, ao invés de determinante. Isso nos levaria a conclusões absurdas, pois tornaria a criatura a verdadeira governante, não Deus. Isso é rejeitado pelas Escrituras, que diz que Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR, que o inclina a todo o seu querer. (Provérbios 21:1), ou “…porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2:13). Deus não poderia inclinar a vontade do homem, caso a sua operação sobre a criatura, estivesse sujeita totalmente a natureza da mesma, e como mostramos anteriormente, nas Escrituras, Deus é continuamente quem determina, Deus nunca é determinado por outro. Para que Deus incline a vontade do homem para fazer isso ou aquilo, Deus age na natureza deste, para que ao ser movido o seja de vontade própria, preservando a liberdade humana, ou seja, Deus pode tanto não alterar a natureza humana, entregando o ser humano ao seu próprio prazer, como acontece com os ímpios reprovados e suas atitudes más, como Deus pode mudar a natureza do homem para que ele agir conforme Deus quer, lembrando que sempre que Deus atua na natureza do homem é para que o mesmo faça o bem, pois a maldade e depravação já é inerente ao homem desde que nasce, devido à depravação total. Por esse mesmo motivo, não se pode ter o que chamamos de liberdade libertária, uma liberdade autônoma, onde o homem poderia fazer diferente daquilo que foi movido por Deus, já que o mesmo é escravo de sua natureza. Exploraremos esse ponto no próximo tópico.

3 – A Liberdade Libertária é impossível

Vários são os motivos pelo qual a liberdade libertária é impossível, colocaremos pelo menos dois deles. Já foram expostos argumentos escriturísticos, agora exporemos argumentos filosóficos contra tal ideia.

Liberdade Libertária é aquela que o agente racional sempre pode tomar uma decisão diferente da que ele tomou, ou pelo menos ter a capacidade de tomar uma decisão diferente caso haja opções. Esse tipo de liberdade é impossível de existir por pelo menos dois fatores, são eles:

3.1 – A presciência de Deus se torna falível

Imaginemos que qualquer um dos habitantes da terra (Homens), pudesse estar com Deus antes da criação, e esse mesmo habitante perguntasse a Deus o que ele estaria fazendo no dia 07/06/2018, só como exemplo, Deus poderia infalivelmente responder? Suponhamos que Deus dissesse que esse homem estaria em um restaurante comendo, como esse homem poderia decidir estar em outro lugar? Se a liberdade libertária é verdadeira, o conhecimento de Deus sobre o futuro é falível, como o conhecimento de Deus sobre o futuro é infalível e exaustivo, a liberdade libertária não pode ser verdadeira. Há quem possa dizer que Deus apenas contempla o futuro, sem determina-lo, isso nos leva a problemas mais graves, pois atribui a Deus potência passiva, tornando Deus um ser incompleto e, portanto causado, explique-se: Deus é o Ser que tem todas as perfeições, por isso mesmo Ele é causa de todas as causas, a causa primeira, pois não depende de coisa alguma fora Dele e não pode possuir carência alguma das criaturas. Se dissermos que Deus contempla o futuro para saber o que terá no futuro, então esse conhecimento vem de fora de Deus, e não Dele mesmo, esse conhecimento viria das criaturas e de suas ações livres, se Deus recebe algo das criaturas então ele não pode possuir todas as perfeições, pois foi aperfeiçoado recebendo conhecimento de fora. Se Deus contempla o futuro e depois os decreta, quem determinou o futuro na verdade foram as criaturas e não Deus, e Deus passa a ser um Ser determinado e não um determinante, isso seria um total desgoverno da parte daquele que é soberano sobre todo o universo.

3.2 – Gera absurdos lógicos e tornaria o Homem igual a Deus

Deus, sendo causa primeira, não pode ser movido por ninguém, pois não carece de absolutamente nada, tendo todas as perfeições. Todo movimento no universo criado é energizado por Deus, não há movimento que não seja causado por ele (vide tópico 2.2.4), toda atitude humana é movida por Deus, esse mover é causal. Para que a liberdade libertária seja verdadeira, é necessário que o próprio Homem possa iniciar seu movimento, saindo do estado de “não volição” para o estado de “volição”, esse movimento independente, autônomo, tornaria o Homem um motor imóvel, e, portanto igual a Deus. Para que a liberdade libertária seja verdadeira a vontade humana deve ser capaz de poder atualizar-se sem à causalidade divina, isso nos gera, além do problema de tornar o Homem um motor imóvel (pois teria a capacidade de passar da potência para o ato sem ser movido anteriormente) e portanto Deus (pois somente o eterno é motor imóvel), nos leva também a absurdos lógicos uma vez que é impossível que a vontade humana atualize a si mesma, já que nada passa da potência ao ato senão por um ser em ato (à água com potência de evaporar, só atualiza esta potência quando é movida a tal pelo calor do fogo), ora a não ser que assumamos que o nada pode atualizar o móvel (sabemos que do nada, nada vem), ou que o móvel contêm de antemão o ato e a perfeição para qual está em potência (e então cairíamos no absurdo de dizer que algo é motor e móvel ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto), isso nos levaria direto à rejeição da lei da não contradição e portanto seria falso, seria como se Pedro tivesse o ato (ou perfeição) de saber o teorema de Pitágoras, e tivesse a potência de saber o teorema de Pitágoras, logo Pedro saberia e não saberia a mesmíssima coisa, o que é absurdo e portanto devemos rejeitar a liberdade libertária pelo bem da lógica. O segundo absurdo lógico é que absolutamente nada pode ser causa de si mesmo, pois toda causa precede seu efeito, assim sendo, se a vontade é auto-causada ela teria que anteceder a ela mesma, o que é também absurdo. Concluímos assim que a liberdade libertária não pode ser verdadeira.

Conclusão

Concluímos que não há um paradoxo entre a determinação divina e os atos livres, e sim, uma concepção errada do que seja um ato livre, assim como uma concepção errada do que seja uma determinação divina. Um ato livre não torna o homem apto a tomar decisões diferentes da que ele tomaria, pois o mesmo é escravo de sua natureza. A determinação divina, não coage a vontade humana, nem força o ser humano a escolher A ou B contra sua própria vontade, pois quando Deus inclina o homem a fazer isso ou aquilo, opera em sua natureza, de dentro da para fora, fazendo com o que homem aja de livre vontade, no entanto a determinação divina torna o ato certo e portanto determinado, mas não o torna necessário, logo não é fatalista, já que poderia ter sido de outra forma de acordo com o livre arbítrio de Deus. Concluímos que a liberdade libertária é impossível, gerando absurdos lógicos e teológicos.

Referências

1 – CALVINO, J. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. vol. 1. Ed. clássica (latim). Cap XVI.IV. S/D. p. 202

2 – Ibid 1. Cap XVI.III. p. 200 – 201.

3 – Ibid 1. Cap XVI.IV. p. 203.

4 – Cânones de Dort. Rejeição de Erros. Erro 9. S/D.

5 – CAMPOS, H.C. O Ser de Deus e as suas obras: A Providência e sua realização histórica. Cultura Cristã, 2001. p. 8.

6 – CAMPOS, H.C. O Ser de Deus e as suas obras: A Providência e sua realização histórica. Cultura Cristã, 2001. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/providencia/concursus_heber.htm

7 – Ibid 3. P. 62.

8 – Confissão de Fé de Westminster. Seção V.I. S/D.

9 – Ibid 8. Seção III.I.

10 – Ibid 8. Seção V.II

11 – Dicionário Grego do Novo Testamento de James Strong: Anotado pela AMG. Bíblia de estudos Palavras Chave: Hebraico – Grego. CPAD. 2010. p. 2443

12 – GRUDEM. W. Manual de Teologia: uma introdução aos princípios da fé cristã. Vida. 1999. p.152.

13 – LOUW, J. NIDA, E. Léxico Grego-Português do Novo Testamento. Sociedade Bíblica do Brasil. Referência 42.4. p. 455.

 Notas

[1] CALVINO, J. As Institutas. Livro I, cap XVI.4

[2] Confissão de Fé de Westminster. Cap V.I

[3] CAMPOS, H.C. O Ser de Deus e as suas obras: A Providência e sua realização histórica. Cultura Cristã, 2001. p. 62

[4] CFW III.I

[5] CFW, Cap V.2

[6] GRUDEM. W. Manual de Teologia: uma introdução aos princípios da fé cristã. Vida. 1999. P.152

[7] Ibid 5.

[8] Dicionário Grego do Novo Testamento de James Strong: Anotado pela AMG. Bíblia de estudos Palavras Chave: Hebraico – Grego. CPAD. 2010. p. 2443

[9] CAMPOS, H.C. O Ser de Deus e as suas obras: A Providência e sua realização histórica. Cultura Cristã, 2001. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/providencia/concursus_heber.htm

[10] LOUW, J. NIDA, E. Léxico Grego-Português do Novo Testamento. Sociedade Bíblica do Brasil. Referência 42.4.

[11] CALVINO, J. Institutas, Livro I, cap XVI.3

[12] Ibid 12

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