O presente ensaio visa demonstrar o problema gerado por Leibniz ao tentar provar que o “melhor dos mundos possíveis” em nada torna as ações livres dos homens como determinadas logicamente por Deus. O ensaio não pretende apresentar uma solução (nem culpa a Leibniz por não a apresentar), mas apenas demonstrar que a questão é de longe de difícil solução, restando para muitos filósofos a procura por um caminho mitigado ou extremado.
O que na Filosofia abarca a física e a metafísica (sob vieses ontológicos e éticos), na Teologia, todavia, acentua-se a questão “ontoteológica”, para lembrar Heidegger. A questão da liberdade envolve dois seres que, ‘teoricamente’, necessitam responder por sua própria ação: Deus como o SER que É, e o homem como o ser que existe como determinação Daquela Vontade anterior. A Essência e a existência têm a mesma realidade acerca da Vontade. A questão é se a Essência (Deus) tem a sua Liberdade dirimida em detrimento à noção da existência que o homem tem de sua liberdade e a representação que ele faz desta em Deus.
O problema parece consistir no fato de que, ao possibilitar a liberdade do homem, o próprio Deus demonstra-se sem liberdade. Para suscitar a questão, será utilizada a obra de Leibniz, Discurso de Metafísica; o artigo “Leibniz, Arnauld e os decretos livres divinos”, de Valéria da Silva Paiva, bem como o artigo de Edgar Marques intitulado “A noção de ‘possível em si’ e a solução leibniziana do problema da liberdade” (nestes artigos, os autores procuram inviabilizar a liberdade, a qual Leibniz julga existir, mesmo no melhor dos mundos possíveis).
Segundo Leibniz, o entendimento divino é a região onde os infinitos mundos possíveis, ainda que só um, tem de ser necessariamente ‘atualizado’. Isto se apresenta como um problema, posto que pareceria que o mundo criado está atravessado por uma fatalidade da qual nenhum de seus componentes poderia escapar.
A teoria de Leibniz separa o plano da possibilidade do da existência, a partir do conceito da liberdade divina, obrigada sempre a escolher “o melhor dos universos possíveis”.
Os princípios fundamentais da metafísica leibniziana parecem, ao menos prima facie, incompatíveis com a concepção enfaticamente defendida por Leibniz, de acordo com o qual, tanto Deus quanto os seres humanos devem ser encarados como agentes livres. Essa presumida incompatibilidade fundamenta-se na consideração de que as condições de possibilidade de atribuição de liberdade de qualquer sujeito aparentemente entram em contradição com a estrutura ontológica da realidade tal como estabelecida pela própria filosofia de Leibniz. Seria assim porque, afirmados simultaneamente, o Princípio da Razão suficiente, o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis e a tese de que a noção completa de uma substância individual contém todos os modos dessa substância não permitiriam a afirmação de que o sujeito de uma ação determinada realmente poderia ter agido de outro modo.1
Para Leibniz, a liberdade não é simplesmente a escolha entre A e B, senão, em agir com a perfeição segundo a razão soberana. E, para constituir-se em mundos possíveis, basta, tão somente, que seja inteligível. Entretanto, tais possíveis constituem maximamente consistentes, isto é, cada conjunto está em relação de disjunção com os demais. Em virtude disto, se faz necessário ver que sucede ao interior de cada conjunto, a partir da noção de substância individual completa, com o fim de estabelecer um ‘super-essencialismo’.2
O filósofo introduz o conceito de noção de substância individual completa (ainda não considerada Mônada),3 para a qual dá uma primeira definição nominal: “quando vários predicados se atribuem a um mesmo sujeito e este sujeito não se atribui a nenhum outro”.4 Pois bem, se se concebe que toda predicação verdadeira goza de algum fundamento na substância, daí que se pode atribuir positivamente a ações pertencentes às substâncias individuais, donde o conceito individual completo contém em si tudo aquilo que corresponde a um indivíduo, bem como tudo o que lhe há de acontecer.
Mas, agora, é necessário que se distinga o predicado do acidente, a saber: “o acidente é um ser cuja noção não encerra tudo o que pode atribuir-se ao sujeito a quem se atribui esta noção”.5 Isto significa que é suficientemente vago para pertencer a vários sujeitos, ou melhor, para não se esgotar tudo o que se pode assinalar ao indivíduo.
Decorre, pois, que o conceito individual completo lhe corresponde num duplo estatuto: o possível, a partir do ponto de vista do entendimento divino, é existente quando Deus quer a noção atualizar, a fim de conceder-lhe o estatuto de natureza individual. O entendimento divino rege o princípio da não contradição — não implica contradição, ainda que se negue o que se tem afirmado, pois há um possível onde esse sujeito carece de tal propriedade —, entretanto o passo da possibilidade à existência está governado pelo princípio da razão suficiente6 (nada é sem razão; Deus opta pelo “melhor dos mundos possíveis”).
Parece ser especificamente neste ponto que, para Valéria Paiva, consiste o problema que a leva à negação da liberdade: quer de Deus, quer dos seres humanos. O problema que se apresenta é que se a ‘noção de substância individual completa’7 contém em si todos os predicados que um indivíduo teve, tem e terá, pareceria que se cai em um necessitarismo estrito, uma vez que suprimiria o plano da liberdade. O próprio Leibniz parece perceber o inconveniente, pois diz que, “pareceria que com isso a liberdade humana não terá já lugar algum e que uma fatalidade absoluta imperará em todas as nossas ações o mesmo que no resto de todos os acontecimentos do mundo”.8
Pode-se exemplificar a questão do seguinte modo: Napoleão invadiu a Rússia, a saber, o predicado de invadir a Rússia está contido no mesmo conceito do sujeito Napoleão, pelo que resultará numa verdade necessária. Seria razoável crer que Napoleão não é livre, uma vez que não escolheu invadir a Rússia. Do mesmo modo, Deus não poderia ter escolhido fazer Napoleão de outro modo diferente do que existe e, no mesmo sentido, nem mesmo Ele é livre.
Leibniz procura elucidar este problema mediante dois elementos terminológicos, os quais ele denomina de Verdades Necessárias e Contingentes.9 As primeiras são aquelas verdades que não mudam em nenhum mundo possível (como, por exemplo, a matemática). Nessas, se percebe que o predicado está contido no sujeito por um número infinito de passos.
O mesmo não se diz das Verdades Contingentes, uma vez que tais verdades são aquelas cuja identidade não pode obter-se mediante um número finito de passos. Logo, Deus é o único capaz de ver as verdades contingentes que o predicado está contido no sujeito, porém o faz mediante uma análise de passos infinitos. Como os elementos discutidos fazem parte do mundo criado — portanto, verdades fáticas, já existentes no mundo atual —, estabelecer a verdade de tais proposições exige repassar toda a análise divina da criação e chegar aos Decretos Divinos de Deus. Segundo Leibniz.
Há que se distinguir entre o que é certo e o que é necessário: todo mundo está de acordo em que os futuros contingentes são seguros, posto que Deus os prevê, porém, não se reconhece, por isso, que sejam necessários. Porém, se alguma conclusão se pode deduzir infalivelmente de uma definição ou noção, será necessária. E, nós afirmamos que, tudo o que tem de ocorrer a alguma pessoa está, já, compreendido virtualmente em sua natureza ou noção, como as propriedades o estão na definição de círculo; deste modo, a dificuldade subsiste ainda. Para resolvê-la solidamente, digo que a conexão ou consequência é de duas classes: uma é absolutamente necessária e seu contrário implica contradição, e esta dedução se realiza nas verdades eternas, como são as de geometria; a outra só é necessária ex hipothesy, e, por assim dizê-lo, acidentalmente, e é contingente em si mesma quando o contrário não implica contradição.10
Com isso, o filósofo argumenta que o fato de Deus saber que algo vai ocorrer, não o torna necessário, senão, que é, tão somente, uma amostra de determinismo. Como as Verdades Contingentes variam segundo os diferentes inteligíveis, aparece o problema da identidade entre mundos possíveis. Em sua onisciência, Deus vê todos os possíveis desde infinidades de ângulos e cada substância manifesta justamente essa possibilidade da visão divina. Ademais, há uma correspondência entre todas e cada uma das perspectivas individuais, que Leibniz afirma
Que as expressões ou percepções de todas as substâncias se correspondem entre si, de forma que, seguindo cada um, cuidadosamente, certas razões, ou leis que tem observado, se encontraria com outro que fizesse outro tanto […]. Porém, ainda que todos expressem os mesmos fenômenos, não faz falta que suas expressões sejam perfeitamente semelhantes, senão, que basta que sejam proporcionais; do mesmo modo que vários expectadores creem ver a mesma coisa e se entendem entre si. Com efeito, ainda que, cada um veja e fale segunda a medida de sua vista. Porém, só Deus […] é a causa dessa correspondência de seus fenômenos.11
Assim, para o filósofo, Deus está acima da perspectiva das mônadas criadas, e não só isso, é também o seu fundamento; ao mesmo tempo em que esboça em citação a ideia da harmonia pré-estabelecida,12 entendida como “o enlace ou acomodamento de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as demais”,13 de modo tal que, cada substância, desde sua ótica, reflete todas as relações do mundo levado à atualidade. Assim como dentro do universo criado existe uma conexão entre os pensamentos e percepções dos distintos indivíduos, cada um dos últimos tem um conceito correlativo nos outros possíveis.14
Este tema lembra novamente a discordância de Valéria Paiva acerca da liberdade que Leibniz julga garantir a Deus e aos homens. Pode-se problematizar tal discordância ao tomar o exemplo do próprio Leibniz acerca de Julio César: Nós dizemos que certas propriedades de Júlio César são essências para ele (por exemplo, sua chegada a Roma) e outros acidentes. Algumas das acidentalmente variadas formas poderiam ser realizadas — um César que cruza o Rubicão e um César que não o cruza. Ambas podem ser realizadas, porém, não juntamente. Nós estamos preparados para ver a ambas possibilidades realizadas conjuntamente em um mundo onde César não o cruza, porém, não estamos preparados para ver a ambas possibilidades realizadas conjuntamente em um mundo onde César cruza e não cruza o Rubicão — donde uma mesma pessoa tem e não tem, ao mesmo tempo, a mesma forma. Quer dizer, dentro de um dos possíveis, o indivíduo não pode ter o mesmo predicado afirmado e negado ao mesmo tempo.
Entretanto, um indivíduo de determinado possível pode ter uma noção correlativa em outros dos inteligíveis, no qual, alguma de suas propriedades pareça negada. Desta forma se apresenta o problema da identidade entre possíveis, ou seja, até que ponto segue sendo o mesmo indivíduo? Não é razoável pensar que um indivíduo está definido por todas as suas propriedades? Assim, não há mais espaço para sustentar a identidade entre mundos.15
Mas, vale a pena ressaltar que, um mundo possível não é um agregado de qualquer de possíveis indivíduos, antes, um conjunto compossível16 de possíveis indivíduos pode ser qualificado como um mundo possível. Este mundo deve encontrar não só as condições lógicas de compossibilidade, senão, também, as condições de compossibilidade metafísica já especificadas.
Desta forma, destaca-se que, dentro de cada mundo possível estão todos os predicados de um indivíduo neste mundo. Tome-se novamente, por exemplo, Napoleão. Este invadiu a Rússia, se casou com Josefina, se autodenominou imperador da França etc. Isto está, por sua vez, em relação com todos os predicados possíveis dos demais indivíduos pertencentes ao mesmo mundo. Desta maneira, se se muda ao menos o predicado, o mundo possível já é outro. Ademais, estes conjuntos disjuntos de elementos maximamente consistentes competem pela existência segundo seu grau de perfeição, isto é, em função da harmonia reinante entre todas as noções individuais completas.
Aqui aparece novamente o problema da necessidade, que explicaremos como segue: Leibniz entende que as Verdades de Fatos são contingentes, no entanto seus contrários podem pertencer a outro dos possíveis. Não obstante, Napoleão não pode ter um substituto de si no mesmo possível com suas propriedades negadas, entenda-se que isto é possível.17 Isto é, Napoleão só pode existir com os predicados que lhe correspondam em virtude de sua natureza individual, que é o mesmo que dizer que sua forma só pode ser aquela que tem sido atualizada. Os espíritos finitos não podem rever (perfazer o caminho de volta) todas as coisas que moveram Deus a dar-lhes existência com os atributos com os quais os conhecemos; é verdade que os espíritos finitos são capazes de entender a necessidade de que seja assim e não de outra maneira. E é isto, justamente, o que nos assegura que estamos no melhor dos mundos possíveis — fundamento da liberdade divina — e tem-se que aceitá-lo com todos os predicados que o constituem.
Há que se assinalar, pois, que o conhecimento de Deus acerca dos futuros de cada indivíduo nada tem a ver com a necessidade; entretanto, as razões que levam Deus a atualizar este mundo são necessárias, do mesmo modo que é necessário o inteligível existente. É este o nó da questão: em primeiro lugar, há um deslocamento da região dos possíveis do pensamento divino para o humano. No estado de coisas atual, Leibniz afirma que os diferentes mundos não são, senão, as perspectivas de cada mônada de um e o mesmo universo existente (em contrapartida, não é incorreto acreditar que os mundos inteligíveis são parte do exercício constante do entendimento humano, movido a produzir incessantemente diversas hipóteses para tudo aquilo que não é necessário, isto é, as questões contingentes ou de fato). Em segundo lugar, tampouco se poderia falar de uma noção individual completa, senão, pelo contrário, de um conceito individual sempre incompleto. No entanto, a possibilidade de predicação se faz infinita conforme a superação factível de cada novo interpretante. Quando Leibniz afirma que alguém que compreendera a noção de sujeito saberia, também, todos aqueles predicados que lhe pertencem, não só nominalmente, senão também, por seu fundamento na criatura.
Valéria Paiva objeta que, o que deixa Arnauld chocado com o Discurso de Metafísica é, precisamente, o fato de que a noção individual de cada pessoa encerrar de uma vez por todas o que sempre lhe acontecerá.18 Pois,
se assim for, diz ele, Deus poderá decidir criar ou não determinada substância, mas, tendo decidido criá-la, tudo o que lhe acontecerá sempre, e a todo o gênero humano, se seguiria por uma necessidade fatal, pois haveria entre a noção de determinada substância individual e o conjunto de seus modos, uma relação intrínseca e, mais que isso, necessária. Assim, a liberdade divina, para Arnauld, limitada ao ato único de criação do mundo escolhido, mesmo que este ato de criação envolva uma série infinita de atos da vontade divina, já que se trata aqui de um agente onisciente e atemporal.19
Ao que parece, Arnauld sente dificuldade em distinguir o Necessário20 do Contingente21. No ato de Deus decidir criar, ao fazê-lo, estaria sem liberdade, uma vez que não poderia ser de outra forma. Arnauld procura entender se “a relação entre esses objetos […] é tal por si mesma independentemente de todos os decretos livres de Deus, ou se há dependido deles, já que deveríamos considerar as substâncias possíveis em si mesmas”.22 Seriam necessárias as substâncias deste mundo caso ele não fosse escolhido ou criado?23 Arnauld pensa que não.24
Assim Leibniz tem-se em dificuldades, pois, 1) se “admite a interferência divina no interior dos mundos possíveis ou do mundo criado, ele restringe […] o espaço para a liberdade das substâncias”, 2) se ocorrer o contrário,
a liberdade divina queda-se, ao cabo, restrita à escolha e criação do melhor do mundo possível dentre aqueles que […] se apresentam já completamente formados, e a conexão entre uma substância e o conjunto de suas modificações, além de intrínseca, permaneceria, de alguma forma, necessária.25
O filósofo recorre a um “termo médio”, o qual a substância (neste caso Adão) e seus acontecimentos não independem e nem dependem de todos os decretos livres de Deus. Fato é que, a saída leibniziana parece um tanto fraca. Leibniz procura separar (por assim dizer) substâncias particulares das substâncias gerais, ou melhor, o necessário do contingente e soma a isso a ideia de decretos livres divinos.
Mas, se ao fazer isso, ele procura impor a razão suficiente como a condutora da existência das substâncias individuais, que nos inferirá à noção de que estão categoricamente submissas a uma finalidade divina, desta mesma inferência se pode chegar à noção de que não parece haver como dicotomizar os elementos utilizados dentro do mundo possível divino como contingentes ou necessários. E, mais uma vez, os particulares não carregam consigo todas as informações (predicados) que levaram à razão suficiente?
Edgar Marques expõe que
Uma metafísica que afirma a vinculação dos sujeitos a mundos específicos e que considera que as noções correspondentes a esses sujeitos contêm todas suas modificações passadas, presentes e futuras não deixa, ao menos aparentemente, espaço algum para a afirmação da liberdade, uma vez que, segundo essa doutrina, modos de ação alternativos não devem ser considerados autênticas possibilidades, pois não pode ser o mesmo sujeito o agente dessas ações alternativas.[…] A tese de que não pode haver identidade entre substâncias individuais que não cometam exatamente as mesmas ações parece impossibilitar a caracterização das ações humanas não contingentes, o que implicaria, nos termos leibnizianos, a negação da liberdade.26
Fato é que, dentro desses decretos livres divinos encontram-se as substâncias e suas próprias modificações. Ao fazer isso, Leibniz preserva, segundo Valéria Paiva, o conteúdo da tese do discurso leibniziano de que “a noção individual de cada substância encerra de uma vez por todas o que sempre lhe ocorrerá”.27
Mais uma vez, Valéria faz entender que, se Leibniz consegue resolver, por um lado, o problema da liberdade divina no decreto livre, por outro, perde-se a liberdade humana. Mas por quê? Para Valéria,
quando Arnauld discute o caráter intrínseco e necessário da conexão entre a substância e seus modos, está, principalmente, preocupado com o espaço reservado para a liberdade divina, porque a partir da escolha de uma única substância todo o destino da humanidade estaria traçado e se desenvolveria a parte de Deus. Pois bem, os decretos livres divinos não mudam em nada este fato.28
Ao que parece, se bem considerado, trata-se de uma questão muito mais a priorística do que teleológica. Sim, pois, se Leibniz, com os decretos livres resguarda a liberdade divina, por outro lado, não tem uma explicação do porquê de certos fins deverem ser como são e não de outro modo. Há ainda de se considerar que, os decretos livres margeiam a possibilidade de dar às próprias substâncias a autarquia.29
Edgar Marques fortalece tal ideia quando argumenta que
os mundos possíveis, dentre os quais Deus escolhe aquele que será o mundo real, não devem a Deus a sua possibilidade, sendo, ao contrário, possíveis por apresentarem uma consistência lógica interna. Isto significa que o fundamento da possibilidade repousa não em Deus, mas sim nesses próprios mundos. Dito de outra forma: eles não são possíveis por serem possíveis para Deus, mas sim por serem possíveis por si mesmos, isto é, por serem logicamente consistentes.30
Deste modo, seria necessário incluir (a fim de não dar vida em si mesmo aos elementos “existentes logicamente” na mente divina) a ideia de que os próprios mundos possíveis (lógicos e não só atuais) devam ser fruto do decreto de Deus, para que, então, um entre muitos seja escolhido o melhor segundo a razão suficiente de Deus.31 Mas fato é que decorreria desta escolha a afirmação de que cada mundo possível seria real em si mesmo e não restariam mais escolhas ideais, isto é, lógicas.32
Seja como for, quer o sistema leibniziano esteja mais preocupado em fundamentar uma possibilidade epistemológica e não uma possibilidade ontológica, conforme alude Edgar Marques, o sistema de Leibniz ainda se demonstra determinista. Ao argumentar a impossibilidade de poder existir predicados contraditórios na noção individual33 (um Brutus diferente de Brutus, um Judas traidor e um Judas não traidor etc.) “Arnauld nos mostra o quanto a noção de uma substância individual, apesar de depender do princípio de razão34 suficiente, é regida pelo princípio de contradição no sistema leibniziano”.35
Na verdade, Leibniz pareceu ter levantado ainda mais a poeira paradoxal entre a liberdade e determinação divina e a liberdade humana do que ter conseguido conciliá-las. Sua resposta à pergunta “se poderia ter sido diferente?” implica na própria contradição de seu princípio. Não é fácil perceber como a causa suficiente pode lidar com fins sem que se mova de modo imediato os meios.36
Ao que parece, tanto Valéria Paiva como Edgar Marques concluem bem ao considerarem que, tudo o que no fim resta é a noção de que os homens são “livres por ignorância” e Deus “realmente” livre.37
Referências:
LEIBNIZ. G. W. Correspondência com Arnauld, Buenos Aires: Ed. Losada, 1946.
PAIVA, V. Leibniz, Arnaud e os decretos livres divinos. Cadernos Espinosanos IX. S.P. 2002.
MARQUES, Edgard. Observações críticas acerca da noção leibniziana de decretos divinos possíveis. Caderno de História, Filosofia e Ciência. Campinas. Série 3, v.12, jan-dez, 2002.
______________. A noção de possível em si e a solução leibniziana do problema da liberdade. Analytica. R.J. V.5, n. 1-2. 2000.
______________. As origens da incompossibilidade em Leibniz. Cadernos de História e de Filosofia da Ciência. Campinas, Unicamp, série 3, v.16, n.1, jan.-junho. 2006.
DANOWSKI, Débora: Leibniz e as voltas do tempo. Doispontos. Curitiba, v.2, n.1, 2005.
LACERDA, Tessa Moura. A política da metafísica: teoria e prática em Leibniz. São Paulo: Associação editorial Humanitas, 2005.
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1MARQUES, Edgar. A noção de possível em si e a solução leibniziana do problema da liberdade. Analytica, 2000. v. 5, número 1-2.
2PAIVA, Valéria da Silva. Leibniz, Arnauld e os decretos livres divinos. Cadernos Espinosanos IX, 2002, p. 199-210, p. 207.
3Idem, p. 207
4LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 33.
5LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica. Madrid: Altaya, 1999, p. 73.
6Parece que para Leibniz, a liberdade da substância individual depende tanto do princípio de contradição quanto do princípio de razão suficiente. Ambas as noções dão caráter estatutários e a prioricidade às substâncias individuais e a Deus (o que se aproxima da crítica de Arnauld). Entende-se que o princípio de contradição está ligado ao domínio das verdades necessárias ao reino da necessidade. Por sua vez, o princípio de razão suficiente se relaciona às verdades contingentes.
7O conceito de noção individual completa para Leibniz se dá “quando vários predicados se atribuem a um mesmo sujeito e este sujeito não se atribui a nenhum outro”. Pois bem, se se concebe que toda predicação verdadeira goza de algum fundamento na substância, daí que se pode atribuir positivamente a ações pertencentes às substâncias individuais, donde o conceito individual completo contém em si tudo aquilo que corresponde a um indivíduo, bem como tudo aquilo que lhe há de acontecer.
8Idem, p. 78
9Verdades necessárias são aquelas que podem ser demonstradas através de uma análise de termos, de modo que resultam em identidades. Por exemplo, um quadrado pode ser analisado como uma figura plana, fechada, de lados iguais e possuindo quatro lados. Apliquemos essa análise à verdade necessária “Um quadrado tem quatro lados” e obteremos: uma figura que é plana, fechada, equilateral e que possui quatro lados tem quatro lados, o que é uma identidade. Igualmente, na álgebra quando em uma equação (correta) substituímos valores, para suas variáveis, obtemos uma identidade. Kant se beneficiará desta noção leibniziana na Crítica da Razão Pura.
10LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica. Madrid: Altaya, 1999, p. 78, 79.
11LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica. Madrid: Altaya, 1999, p. 82.
12A harmonia é a justa proporção, a unidade na multiplicidade ou a diversidade compensada pela identidade. Descobrir prazer em alguma coisa é vivenciar sua harmonia, sua variedade contrabalançada pela semelhança. Deus é, Ele mesmo, princípio de beleza e harmonia das coisas. A harmonia é, portanto, o objeto natural de amor. No sistema da harmonia, da concomitância ou hipótese dos acordos, todas as coisas e acontecimentos do universo conspiram em conjunto para o mais belo. [M. 56; DM. 9, 15; SN. 14-15]
13Idem, p. 39.
14Segundo Leibniz, Substâncias possíveis são aquelas que não encerram contradições internas, mesmo que não venham a se atualizar. O fundamento da possibilidade é o princípio da não-contradição. Aquelas substâncias que são incompatíveis entre si, isto é, que não podem ser criadas conjuntamente fazendo parte de um mesmo mundo, são denominadas incompossíveis. A existência mútua dessas substâncias se torna uma contradição impossível.
15Os possíveis são determinados por aquilo que Leibniz chama de Princípio de Razão Suficiente. É neste princípio que se explica a distinção e passagem do possível ao compossível, isto é, as verdades presentes na mente divina à sua atualização na realidade. Conforme Tessa Lacerda, “o princípio da razão suficiente prova a priori a existência de Deus e Deus realiza o princípio: Ele é a verdade concreta que dá a razão suficiente de todas as existências”. LACERDA, T. Moura, A política da metafísica: teoria e prática em Leibniz. S.P: Associação Ed. Humanitas, 2005, p. 56.
16Conforme Leibniz, os Compossíveis podem ser definidos como a propriedade de uma substância de não entrar em contradição com as demais, abrindo-se a possibilidade de pensar o mundo como um conjunto de sistema autoconsciente. Trata-se do oposto da natureza do incompossível.
17A questão é explicada por Danowisk da seguinte forma: “Todo possível pretende existir, e, portanto existiria efetivamente se um outro possível que também pretende existir e que é incompatível como ele não viesse impedi-lo. […] Uma vez que todos os possíveis tendem à existência, das duas uma: ou todos existiriam (e teríamos que dizer que todo o possível pretende de tal forma existir que existe efetivamente), ou apenas uma das partes deles existe, e nesse caso teremos de ser capazes de dar razão de fato, ou seja, dizer por que uns existem em lugar de outros. […] Leibniz escolherá esta ultima alternativa e a razão […] encontra-se na própria essência ou possibilidade: “o possível pretende à sua própria existência segundo a sua própria natureza e proporcionalmente à sua possibilidade, quer dizer, a seu grau de essência”. DANOWSKI, Débora: Leibniz e as voltas do tempo. Doispontos, Curitiba, v.2, n.1, 2005, pp. 101,102.
18O Discurso de metafísica de Leibniz gera dificuldades na compreensão de Arnauld, mormente no parágrafo 13, o qual afirma que “a noção individual de cada pessoa encerra uma vez por todas o que lhe sucederá sempre”. A reação é consequência de seu entendimento de noção individual que encerra em si tudo o que é, foi e sucederá. Arnauld entende que, se assim fosse, a liberdade divina ficaria restrita à criação do primeiro homem, uma vez que todo o restante da humanidade dependeria fatalmente de Adão. A noção de substância individual choca Arnauld porque parece limitar a liberdade divina ao ato único de criação do mundo escolhido, mesmo que este ato envolva uma série infinita de atos da vontade divina. Caberia a Deus, tão somente, aceitar ou não a existência de Adão, uma vez que não pode interferir na “substância adâmica”.
Na verdade, Arnauld vê com dificuldades a possibilidade de Adão e Deus serem mutuamente livres se aceita a noção de substância individual de Leibniz. Ele procura por um hiato de indeterminismo entre o ser e o existir.18 Leibniz parece separar o plano da possibilidade do plano da existência a partir do conceito da liberdade divina, obrigada sempre a escolher o melhor dos mundos possíveis. A ideia de um mundo escolhido dentre uma infinidade de mundos, com todos os seus males, ser o melhor dos mundos possíveis leva à ideia de criação como uma necessidade em Deus. Dá à criatura a legitimidade de divinização e não uma livre vontade, caso não se explique a existência de todos os predicados consistentes na substância individual.
19PAIVA, Valéria da Silva. Leibniz, Arnauld e os decretos livres divinos. Cadernos Espinosanos IX, 2002, p. 199-210.
20É necessário aquilo que não pode não ser. Deve-se distinguir entre uma necessidade absoluta e uma necessidade hipotética. É necessário absolutamente aquilo cujo contrário é impossível, isto é, que implica contradição. Por exemplo, o triângulo possui necessariamente três ângulos. É necessário hipoteticamente aquilo que é a consequência necessária de uma decisão contingente. Assim, supondo-se que Deus criou o mundo no qual Judas trairá o Cristo, é certo que Judas trairá o Cristo. Mas não é necessário que Deus tenha criado tal mundo contendo Judas: Sua decisão de criar sendo livre e contingente, o que não significa que seja arbitrário ou sem razão. Por consequência, outro Judas é concebível, não-contraditório.
21Contingente significa aquilo que não é necessário e cujo oposto é possível porque não implica contradição. Todos os seres, exceto Deus, são contingentes: suas existências não decorrem de suas essências. Porém, as proposições, as verdades, são necessárias ou contingentes. As proposições necessárias podem ser reduzidas a proposições idênticas, tais como A = A; já as proposições contingentes não podem, por um número finito de operações, ser reduzidas a identidades.
22Idem.
23O nó de Arnauld à argumentação leibniziana: (A) se a noção individual completa contém em si todos os predicados que um indivíduo teve, tem e terá, cai-se em um necessitarismo estrito, uma vez que suprimiria o plano da liberdade. Leibniz percebe o perigo e argumenta que pode parecer que “a liberdade humana não terá já lugar algum e que a fatalidade absoluta imperará em todas as nossas ações o mesmo que no resto de todo o mundo”.23 (B) Se os possíveis são “existentes” mediante atualização divina e podem ter existência continua na mente de Deus independentemente de se atualizarem, ou não; como pensar em sua incompossibilidade? Ou Deus é livre para não criá-los (mas já existem), ou esses possíveis são eternos. Segundo Edgar Marques, Leibniz procura levar Arnauld a entender que, “a escolha entre noção completa de substâncias individuais coincide […] com uma escolha entre mundos possíveis possíveis, pois noções distintas de substâncias individuais implicam em mundos possíveis distintos. A liberdade divina é compreendida, então, como exercida não através de algum tipo de intervenção no interior do mundo real criado, tal como, ao menos aparentemente, Arnauld o desejava, mas sim na escolha, realizada na eternidade do mundo a ser criado dentre os infinitos mundos possíveis. […] As alternativas que se apresentam para a eleição divina não consistem em modos possíveis distintos de desenvolvimento de mundo já criado, o que pressuporia […] inaceitável indeterminação intra-mundana, consistindo, ao contrário, em representações de conjuntos maximais de substâncias individuais compossíveis, isto é, representações de mundos possíveis”. MARQUES, Edgard. Observações críticas acerca da noção leibniziana de decretos divinos possíveis. Caderno de História, Filosofia e Ciência, Campinas, série 3, v.12, jan-dez. 2002, p. 135.
24LACERDA, T. M. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, v.11. n.1. Leibniz e um labirinto da Razão: Há saída? Janeiro a junho de 2001, p.33. Tessa aponta o erro de Arnauld na conclusão dos predicados contidos na substância completa. Para ela, Arnauld erra, uma vez que a noção completa não se refere ao domínio dos possíveis, mas ao domínio dos compossíveis. Arnauld erra ao contentar-se com “uma noção geral para circunscrever a essência de um indivíduo, supondo que basta uma referência ao “pensamento” para concluir que “eu sou eu”.
25Ibidem, p. 202.
26MARQUES, Edgar. A noção de possível em si e a solução leibniziana do problema da liberdade. Analytica, 2000, v. 5, número 1-2, p. 38.
27PAIVA, Valéria da Silva. Leibniz, Arnauld e os decretos livres divinos. Cadernos Espinosanos IX, 2002, p. 199-210.
28Idem, p. 205.
29Note-se que com ‘substância’ queremos inferir todos os elementos, contingentes ou não, contidos no melhor dos mundos possíveis de Leibniz.
30MARQUES, Edgar. A noção de possível em si e a solução leibniziana do problema da liberdade. Analytica, 2000, v. 5, número 1-2, p. 41.
31Idem, p. 47: Mesmo assim, Edgar Marques apresenta um problema: “decretos divinos possíveis são ações livres de criação que Deus poderia, como ser livre que é, ter realizado. Uma vez que os princípios (1) da inclusão de todos os modos de uma substância em sua noção e (2) da identidade dos indiscerníveis também são válidos em relação a Deus, então podemos afirmar que cada decreto livre possível determinaria um Deus diverso, pois o Deus que cria o mundo M não pode ser idêntico ao Deus que cria o mundo M*, uma vez que eles realizam ações de ação distintas. […] A introdução da noção de “decretos possíveis” parece implicar, desse modo, a noção de “deuses possíveis”.
32Leibniz precisa tornar claro de que maneira “possíveis compossíveis” e Deus mantém a sua liberdade. O filósofo direciona a resposta ao aparente paradoxo existente entre ambas as liberdades, isto é, para o interior da própria substância. Se a existência das “substâncias individuais finitas” é dependente de um decreto divino atual, resulta lógico que, a noção completa dessas substâncias carregue consigo certa possibilidade de decreto divino. Em outro termo, o próprio decreto de sua existência torna-se o decreto de seu conjunto que a caracteriza como possível.
33LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 97.
34PAIVA, Valéria da Silva. Leibniz, Arnauld e os decretos livres divinos. Cadernos Espinosanos IX, 2002, p. 199-210, p. 205.
35Deste modo, pensar no que venha a ser o ‘melhor’ no entendimento divino, ao criar a mônada completa, individual, a teoria leibniziana parece um tanto incompatível com a concepção defendida pelo próprio Leibniz. Pois, para o filósofo, tanto Deus quanto os homens são agentes livres. Contudo, a incongruência da teoria é notada na consideração de que as condições de possibilidade de atribuição de liberdade de qualquer sujeito aparentemente entram em contradição com a estrutura ontológica da realidade, tal como estabelecida pela própria filosofia de Leibniz. Isto se pode considerar porque a tese de que a noção completa de uma substância individual contém todos os modos dessa substância não permitem que o sujeito de uma determinada ação poderia ter agido de maneira diferente, segundo Arnauld.
36Ora, o decreto divino pode não ser interno ao mundo, isto é, pode não ter “exercício atual”, pois fora efetuado na escolha do melhor, mas não suplanta a necessidade de ser compatível à sua criação. É nesta que ele se aplica para que a mesma seja possível. Cada mundo criado com a máxima perfeição evoca a totalidade de sua existência, isto é, a noção completa da substância. Os mundos possíveis são contingenciais, o que parece implicar que Deus, ao criar cada noção completa de cada mundo possível, tenha de pensar cada mundo com diversas e infinitas possibilidades alternativas. Não é estranho de se imaginar que Deus, Substância Individual Completa, com a plena noção de si mesmo, tenha de (conforme Marques) “tomar criações alternativas à ação efetiva de criação como sendo possíveis em sentido próprio, pois Ele sabe o que é compatível com a sua natureza e o que não é. Isso significa que não pode haver em Deus nenhuma consciência de um mundo que não envolva ao mesmo tempo uma consciência de si, o que parece inviabilizar a fundamentação da possibilidade — contingência — dos diversos mundos a partir do ‘possível em si’. O que está em jogo nessa discussão fica mais claro se pensarmos no caso das ações humanas meramente possíveis, pois tal possibilidade fundamenta-se, de acordo com a interpretação apresentada, em ultima instância, no fato de o agente humano não possuir uma noção completa de si, o que faz com que ele tenha de se representar sub ratione generalitatis. Parece, então, que o que é fundamentado é uma possibilidade epistemológica e não uma possibilidade ontológica. […] Brutus seria livre por desconhecer a sua própria natureza e não saber, em função disso, como irá agir, mas não por haver algum tipo de indeterminação real no que tange a fixação dessa escolha”. MARQUES, Edgard. A noção de possível em si e a solução leibniziana do problema da liberdade. Analytica. R.J. 2000, v.5, n. 1-2, pp.47,48.
37MARQUES, Edgar. A noção de possível em si e a solução leibniziana do problema da liberdade. Analytica, 2000, v. 5, número 1-2, p. 48: “A liberdade humana seria, assim, uma ilusão gerada pela ignorância. E tal ignorância de si não pode ser pressuposta no caso de Deus”.
Bom artigo..as vezes me pego pensando sobre como seria a filosofia de Leibniz após a Critica da Razão Pura de Kant, seria interessante.
Bom artigo..as vezes me pego pensando sobre como seria a filosofia de Leibniz após a Critica da Razão Pura de Kant, seria interessante.
Caro Suemar, a questão ‚ interessante. Mas, o mais legal ‚ o fato de que Kant tem mais de Leibniz do que se imagina. De onde pensa que veio a noção de Decretos possíveis, verdades eternas… Se Hume ‚ o despertador de Kant, Leibniz mostra que matar a metafísica não ‚ tão f cil assim. Abraços.