A profundidade e os limites da experiência cristã

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Jonathan Edwards (1703-1727)

“Em grande parte, a verdadeira religião consiste em sentimentos”. – Jonathan Edwards

Com essas palavras, Jonathan Edwards, renomado estudioso dos fenômenos associados aos avivamentos religiosos, desafiou-nos a ponderar com mais cuidado sobre a natureza e o lugar das emoções na experiência cristã. Entre os teólogos cristãos, o que tem recebido a maior parte da atenção é a doutrina, não os sentimentos. Em discussões de temas teológicos importantes, raramente incluem-se os sentimentos. Pense, por exemplo, no conceito cristão de Deus. Até há bem pouco tempo, nenhum teólogo se referia a Deus como se ele tivesse emoções. Isso não seria visto com bons olhos, por ser muito antropomórfico. O método correto era conceber Deus exclusivamente sob aspectos de atributos como razão, propósito, vontade, poder e personalidade (como se esses elementos não fossem conceitos antropomórficos), atributos esses que podem ser racionalizados pelo intelecto, mediante definição e análise.

O modo certo de pensar recebeu grande parte da atenção também entre pastores. Dignidade, ordem e controle eram as marcas dos cultos das igrejas protestantes e católicas. Os sermões concentravam-se no ensino e na persuasão por meio de uma argumentação cuidadosa. É claro que nem todas as emoções foram excluídas do culto. Até igrejas mais formais fazem uso de alguma forma de música para incentivar sentimentos de reverência, de temor e de dependência de Deus. Mas, para a maioria, a igreja cristã manteve cultos de adoração de natureza altamente digna e de meditação. Em suma, a principal pergunta para a maioria dos cristãos era “em que você crê?”, em vez de “o que você sente?”.

Isso parece estar mudando na igreja de hoje. Basta que o leitor observe quantos artigos das publicações denominacionais são dedicados à discussão de dons espirituais, de dentes de ouro ou de outras manifestações de poder espiritual. Uma nova ênfase na experiência religiosa parece remontar à virada do século, época em que o falar em línguas começou a ser usado como padrão para as experiências espirituais “superiores”. Mais recentemente, ser “abatido no Espírito”, parece ter se tornado a experiência mais popular, embora outras também estejam sendo buscadas e encontradas, incluindo “… pranto, choro, expressões de louvor longas e efusivas, tremores, estremecimentos, quietude, contorções do corpo, quedas (às vezes mencionadas como “ser abatido no Espírito”), risos ou saltos. Outros fenômenos são mais sutis: leves tremores, vibração das pálpebras, ligeiras transpirações, brilho no rosto, arrepios e respiração lenta e profunda”.

A alta incidência desses tipos de experiência parece constituir uma grande transformação no que muitas pessoas esperam hoje da espiritualidade cristã.

Não pretendo afirmar que a tradição teológica do passado estava errada em certo sentido, por não dedicar mais atenção à questão da experiência religiosa. Em cada época, a teologia responde às perguntas que lhe são apresentadas. Os protestantes têm evitado grandemente o assunto da experiência religiosa, porque até há bem pouco tempo não se tratava de algo urgente. Além disso, a experiência religiosa não constitui questão que se preste naturalmente ao estudo teológico. Os dados em geral são altamente inverificáveis e, portanto, difíceis de avaliar. São como a própria vida imprevisível e ilógica, difícil de encaixar dentro de um tratamento sistemático. Contudo, creio que as ferramentas da teologia podem ajudar a clarear as águas turvas da experiência religiosa, na medida em que os próprios sentimentos fornecem a motivação para que se continue o estudo dessas experiências.

Antes de apresentar o argumento desse ensaio, é importante observar que os sentimentos, por natureza, autenticam a si mesmos. Em outras palavras, aqueles que passaram por experiências espirituais profundas julgam-nas plenamente convincentes. A menos que sejam interpretadas pela Bíblia, as pessoas que as têm (e deve-se destacar que nem todos os cristãos passam por isso) gozam de liberdade para fazer o que bem entender com elas. Creio que as Escrituras não são o único critério pelo qual o cristão pode julgar a doutrina e a experiência (há também a tradição e a autoridade eclesiásticas), mas são o critério decisivo. Esse ponto é crucial neste ensaio. Se não basearmos nossas experiências e nossas doutrinas nas Escrituras, nos tornaremos susceptíveis às nossas experiências, ou à falta delas, e/ou à alegação de que alguém encontrou alguma coisa nova e superior a perene afirmação das seitas. Portanto, concordo com Norman Geisler em que “todas as experiências, sejam elas normais, sejam anormais, precisam ser interpretadas pela Bíblia…”. Empregando-se a figura hoje comum de um círculo hermenêutico, as Escrituras situam-se no início e no fim do círculo que se move entre a experiência e a Bíblia.

O argumento deste ensaio será edificado em torno de dois princípios opostos entre si, embora creia eu que um complemente o outro. Na terceira e última parte, chegarei a algumas conclusões. Conforme mostra o título deste ensaio, os dois princípios podem ser resumidos pelo uso das metáforas de “profundidade” e “limites”. O primeiro é que as emoções e as experiências associadas à fé cristã não são simplesmente epifenômenos, mas têm uma dimensão de profundidade arraigada no mundo espiritual invisível. Portanto, elas têm sua importância e não devem ser condenadas como estranhas à vida cristã. O segundo princípio é que essas mesmas emoções e experiências têm suas limitações na capacidade de produzir fé ou de trazer transformações permanentes à vida de quem as experimenta. Como veremos, até uma visita pessoal do Deus Todo-Poderoso não traz obrigatoriamente fé ou salvação. Portanto, as experiências espirituais têm importância limitada e não devem ser buscadas como a coisa mais importante da vida cristã. Consideraremos cada ponto com mais detalhes.

A PROFUNDIDADE DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA CRISTÃ

A locução “dimensão de profundidade” é empregada há mais de um século entre filósofos e teólogos para descrever o elo da vida humana com um reino espiritual invisível. Às vezes, esse elo torna-se visível por meio de diferentes tipos de manifestações físicas e emocionais. Entre os exemplos nas Escrituras estão visões, sonhos, transes e sentimentos extáticos de todo tipo. Essas experiências podem ser classificadas em três categorias gerais que diminuem de intensidade e aumentam em frequência: a primeira abrange as experiências resultantes de um contato direto com Deus ou com um de seus mensageiros. Isso pode se dar na forma de revelação de um “Deus em pessoa”, à semelhança do que ocorreu no monte Sinai (Êx 19). Mas também dentro dessa categoria estão as ocasiões em que Deus fala por meio de visões ou de sonhos (Is 6.16). No segundo grupo encontram-se os sentimentos e as emoções que surgem de uma atuação ou de uma capacitação especial promovida pelo Espírito. Tal pode acontecer com indivíduos ou com grupos inteiros de pessoas num dado momento. Essas visitações são menos impressionantes, mas ainda assim produzem efeitos claramente visíveis. Por fim, há aqueles sentimentos e emoções que surgem em resposta às propriedades da fé cristã ou como parte da vida cristã. Não são muito intensos, mas comuns a todos os que aceitam essa fé como verdade pela qual viver.

Quanto ao primeiro tipo de experiência, a intuição deixa claro, mesmo antes de se considerarem casos específicos, que o contato direto com Deus ou com seus mensageiros produz a mais intensa das experiências religiosas. Seja um anjo enviado por Deus, seja o anjo do Senhor, ou seja, “o Senhor”, a presença de Deus ou de um de seus mensageiros sempre causa nos seres humanos reações físicas e emocionais impressionantes. Os efeitos variam um pouco, mas sempre incluem expressões de temor (Êx 19.16,17; cf. At 7.32; Hb 12.21). Muitas vezes o efeito é tão forte que a pessoa que passa pela experiência não consegue se mexer ou se levantar, paralisada no lugar ou esgotada, sem forças (Js 5.14; Jz 6.22; Ez 1.28; 3.23; Dn 8.17; 10.8, 10, 15). A essa incapacitação física às vezes soma-se uma sensação de falta de mérito pessoal tão intensa que se sente como provável uma destruição repentina (Is 6.16). Entre os outros efeitos estão confusão e incerteza (Dn 10.7; At 9.7), náusea e doença (Hc 3.16; Dn 8.27), silêncio atônito (Ez 3.15) e profunda agitação acompanhada de tremores e estremecimento (Jó 4.12-17; Is 21.3). Quanto às visões, elas com frequência vêm por meio de algum transe ou o provocam, à semelhança dos casos de Pedro (At 10.10; 11.5) e de Paulo (At 22.17). Há vezes em que as visões, aparentemente, são recebidas sob condições de consciência normal, mas ainda causam completa perda de controle físico. Parece ser esse o caso em Apocalipse 1.17, em que João vê o Cristo glorificado e diz: “Quando o vi, caí a seus pés como morto”. Em todos os relatos, o padrão é de completa debilitação física acompanhada por uma sensação de medo esmagador e de indignidade.

Tais reações diante da presença de um ser divino são compatíveis com o conceito bíblico da natureza exaltada de Deus e de seus mensageiros. A Bíblia apresenta o reino do céu e seus habitantes como elementos superiores à presente ordem (Mt 11.11), e o contato com eles faz invariavelmente que os que passam pela experiência fiquem atônitos. Numa citação que servirá para resumir os efeitos da primeira categoria, Jonathan Edwards escreve: “É lógico supor que, se agrada um pouco a Deus remover o véu e deixar que a luz penetre a alma, oferecendo uma contemplação das coisas excelentes do outro mundo em sua grandeza infinita e transcendente, essa natureza humana, como a relva, como a folha que se agita, como a flor frágil que murcha, deve cambalear diante de tal cena. Ai de nós, pois somos pó e cinza em face da visão da terrível ira, da glória infinita e do amor de Deus. Não é de admirar que esteja escrito no Antigo Testamento: ‘… homem nenhum verá a minha face, e viverá’ (Êx 33.20)”.

Em suma, o contato direto com Deus ou com seus mensageiros provoca reações simplesmente esmagadoras na natureza humana.

O segundo tipo de experiência espiritual é constituído por aquelas emoções e sentimentos associados às capacitações ou influências especiais promovidas pelo Espírito. Nesses casos, a experiência não é tão debilitante, embora não sejam incomuns as expressões de temor e tremor (Sl 2.11; 119.120; Is 21.4; 66.5). Às vezes, a presença do Espírito é descrita como de efeito contrário, isto é, traz uma sensação de força e de zelo por Deus. Assim foi com Josué (Nm 27.18, 19; 32.12; Dt 34.9) e com Gideão (Jz 6.34; 7.15). Em outras ocasiões, o sentimento parece ser de embriaguez. Os que se encontram assim dominados podem se sentir descoordenados, ter dificuldade para se movimentar e precisar de ajuda para andar, podendo ainda haver pranto, gemidos ou soluços.

A história do rei Saul é um bom exemplo. Logo depois de ter sido ungido por Samuel como o primeiro rei de Israel, ele recebeu uma porção especial do Espírito, como testemunho da legitimidade da unção. Na descrição do texto de 1Samuel 10, afirma-se que ele se encontrou com um grupo de profetas, “o Espírito de Deus se apossou de Saul, e ele profetizou no meio deles” (v. 10). Não se identifica o que está implicado no termo profetizar, mas provavelmente incluía algum tipo de comportamento de êxtase, pois a alteração por ele sofrida foi imediatamente identificada como própria dos profetas daquela época. A transformação foi tão perceptível que as pessoas começaram a perguntar: “Que é isso que sucedeu ao filho de Quis? Também Saul entre os profetas?” (v. 11). Qualquer que tenha sido a natureza da manifestação, ela foi temporária, e no dia seguinte Saul continuou seu caminho (v. 13).

Em Neemias 8 pode ser encontrado outro exemplo, descrevendo a reunião que reinstituiu a Festa dos Tabernáculos, depois de vários anos de negligência. Enquanto ouvia a leitura das Escrituras, a multidão irrompeu em choro e pranto, de forma tão agitada que alarmou Neemias e Esdras. Estes pediram aos levitas presentes que ajudassem a acalmar o povo, dizendo que o regozijo era uma reação mais adequada ao estudo das Escrituras (vv. 9-11). O pedido dos líderes indica que aquele comportamento não se explicava por alguma manipulação das emoções do povo. Não havia nenhum show nem alguma encenação com o público. Pelo contrário, a reação da multidão tomou-os totalmente de surpresa. Parece razoável concluir que essas emoções vieram por uma influência incomum do Espírito, causando tristeza e arrependimento.

É provável que Atos 2 seja a passagem mais estudada sobre esse tipo de experiência de grupo. A atenção geralmente concentra-se no fenômeno das línguas. Contudo, visando nosso propósito, o comentário de que os discípulos agiam como se estivessem bêbados é mais importante (pode-se encontrar comportamento semelhante em 1Sm 1.13-16, em que Ana, mãe de Samuel, orava pedindo um filho). A embriaguez caracteriza um tipo de comportamento imediatamente reconhecível, pois implica a perda de controle emocional e físico. Sob a influência do álcool, as emoções mostram-se exageradas, e o corpo não reage como deve. Isso é bem diferente do comportamento de uma pessoa que fala numa língua estrangeira. Se alguém cruza com um homem falando numa língua estrangeira, seja com dificuldades, seja com fluência, não é natural suspeitar que ele esteve bebendo em excesso, simplesmente pelo fato de que a língua lhe é estranha. Assim, é provável que o comportamento dos discípulos tenha sido rotulado de “embriaguez” por implicar comportamento de êxtase, não porque eles falavam em línguas diferentes. O efeito da presença do Espírito sobre a multidão também foi muito forte. Acerca dos ouvintes, o versículo 37 afirma que “compungiu-se-lhes o coração”. O quadro é de uma multidão de pessoas sob grande agitação, clamando em torno dos apóstolos, tentando encontrar resposta para sua angústia mental.

Jonathan Edwards observou casos semelhantes nas igrejas de sua região, durante o Grande Avivamento do século XVIII. Os fenômenos acima descritos e outros são registrados em Thoughts on the Revival, incluindo transes, incapacidade para falar, grande agitação, emoções de êxtase, tremores, perda da força, gritos, desmaios, sensação de grande pressão sobre o corpo etc. Numa avaliação desses fenômenos caracteristicamente cautelosa, ele escreve: “Quando os pensamentos se encontram tão concentrados e as emoções são tão fortes e toda a alma está tão compenetrada, arrebatada e absorvida não admira que todas as outras partes do corpo também sejam afetadas…”

Como vimos na parte introdutória acima, fenômenos semelhantes são descritos nas igrejas de hoje. John Wimber, escritor e fundador do movimento Vineyard nos Estados Unidos, explica o sentido desses fenômenos de forma que lembra muito Edwards: “Manifestações físicas […] às vezes ocorrem quando o Espírito está presente com poder de cura. A cura divina envolve um processo de profunda transformação das pessoas, espiritual, emocional e fisicamente. Não seria razoável supor que reações físicas estejam associadas a essas transformações?”

É claro que muitos reagem automaticamente contra esses tipos de fenômeno, temendo a perda de controle pessoal e preferindo uma atmosfera de mais ordem na igreja. Alguns vão mais longe e argumentam que tais experiências espirituais não têm lugar na igreja, porque Deus é um Deus de ordem, e esses tipos de explosão não lhe são aceitáveis. Parece ter sido esse o sentimento de Esdras e de Neemias. Aparentemente, eles estavam chocados com o barulho e com a confusão causados pelo choro durante o avivamento da Festa dos Tabernáculos. Mas fico imaginando se isso não seria cautela demais. Edwards acha que sim. Em resposta àqueles que levantam objeções, dizendo que as reações do Grande Avivamento eram de desordem excessiva e não podiam vir de Deus, ele, de modo sarcástico, observa que muitos cantam “Vem, Espírito divino”, mas não pensam em quais seriam os resultados de sua vinda. Ele afirma que aqueles que rejeitam todas as manifestações emocionais, como se fossem impróprias para a igreja, “fariam bem em pensar por que tipo de espírito estão orando e esperando e que espécie de fruto esperam que ele produza quando vier”. O argumento de Edwards é digno de ser considerado. As passagens que estudamos acima mostram que a vinda do Espírito com poder é quase sempre acompanhada de sentimentos e emoções fortes o bastante para nos deixar chocados e fazer qualquer pastor ficar preocupado com uma possível perda de controle.

A terceira e última categoria de experiência religiosa é muito mais abrangente do que as duas primeiras. Ela inclui toda a esfera de emoções e sentimentos associados à vida cristã. Estes começam logicamente com a experiência de conversão, pois o processo de reconhecimento de quem Cristo é produz com frequência experiências emocionais intensas. Poucas pessoas têm na conversão claro entendimento de tudo o que está envolvido quando elas aceitam Cristo, mas percebem como é grande a necessidade que têm e como a resposta de Deus é muito maior. Com sua fluência típica, Edwards afirma a naturalidade desses sentimentos: “Pensemos de modo racional sobre aquilo que professamos crer quanto à grandeza infinita da ira divina, da glória divina, do amor divino infindável e da graça em Jesus Cristo, e da importância infinita das coisas eternas; assim, quão lógico é supor que, se Deus remover um pouco o véu e deixar que a luz penetre a alma oferecendo uma contemplação das coisas excelentes do outro mundo em sua grandeza infinita e transcendente essa natureza humana, como a relva, como a folha que se agita, como a flor frágil que murcha, deve cambalear diante de tal cena! Este é um peso que nossa natureza não pode suportar.”

Além dessas emoções associadas à conversão, há um grande número de outras que fazem parte da fé cristã. Algumas são parecidas com aquelas vistas em avivamentos ou provocadas pelas revelações de Deus, mas se expressam de maneira mais controlável. Um bom exemplo é o temor de Deus. Este é um sentimento que pode se intensificar até o nível de total incapacitação na presença de Deus, mas também é uma atitude aceitável e que agrada a Deus, quando bem dosada como parte da vida cristã. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo ordena-se ao fiel que contemple a Deus com “temor e tremor” (“Não temereis a mim? diz o Senhor; não tremereis diante de mim?” Jr 5.22; veja também Sl 2.11; Is 66.2; Fp 2.12).

Entre outras atitudes/emoções (Edwards as chama de “sentimentos”, para exprimir a associação de emoções e de vontade) que variam grandemente de intensidade, mas são consideradas elementos naturais da fé cristã, estão culpa e tristeza (Sl 51.17; Mt 5.4), anseio (Sl 42.1; 84.2; 119.20; Mt 5.6; Ap 21.6), esperança (Sl 147.11; Hb 6.19), compaixão (Mq 6.8; Mt 5.7; Cl 3.1), alegria (Sl 33.1; Fp 4.4; 1 Ts 5.16; 1 Pe 1.8) e, é claro, amor. As Escrituras descrevem o amor como a principal emoção do cristão e como o sinal supremo de todos os indícios de piedade (1 Co 13). Na Bíblia não existe mandamento mais reafirmado do que o de amarmos uns aos outros. Paulo nos diz que o amor, que, embora mais do que emoção, também deve ser considerado uma emoção, é o que restará quando todos os outros dons desaparecerem como supérfluos (1Co 13.8).

Emoções profundas estão associadas à fé não somente pelas exortações, mas também por exemplos. A Bíblia está cheia de exemplos de homens e mulheres que expressaram sua fé de maneira intensamente emocional. Davi é o nome que de imediato vem à mente, mas até o apóstolo Paulo, objeto de estudo por sua racionalidade, manifestou amor ardente por Deus (Fp 3.8). Suas epístolas estão repletas de expressões de afeição para com Deus e para com seu povo. Ele fala de seu terno amor por judeus e por cristãos (Rm 16.8; 1Co 16.24), de seu sofrimento e compaixão pela incredulidade dos judeus (Rm 9.13). Refere-se à alegria e à glória (Rm 15.17; 1Ts 2.19), à expectativa ansiosa (Rm 8.19), ao zelo santo (2Co 11.1) e às muitas lágrimas derramadas por seus seguidores (2Co 2.4; Fp 3.18). Seu grande tratado teológico aos romanos é concluído com uma manifestação de desejo: “E o Deus da esperança vos encha de todo o gozo e paz no vosso crer, para que sejais ricos de esperança no poder do Espírito Santo” (15.13). Seria difícil incluir emoções mais profundas dentro de uma só frase.

Cristo também é retratado pelos autores dos Evangelhos com plenitude de vigor emocional. Ele lamentou a pecaminosidade e a rejeição (Mc 3.5), chorou sobre Jerusalém (Lc 19.41) e no funeral de um amigo (Jo 11.35). Afirma-se que ele desejava ansiosamente a companhia dos discípulos (Lc 22.15), compadecia-se dos doentes e famintos (Mt 9.36; 14.14; 15.32) e consumia-se de zelo pela casa de Deus (Jo 2.17; cf. Sl 69.9).

Exemplos semelhantes são dados e discutidos quase ad infinitum, pois a Bíblia está repleta de expressões de emoção. O que vimos é suficiente para nos levar à conclusão de que as emoções profundas constituem elementos naturais da fé cristã. A Bíblia, na verdade, não trata sentimentos e emoções como se fossem alguma coisa inadequada. Ninguém é repreendido nas Escrituras por ter fortes emoções ligadas à fé. Pelo contrário, sentimentos de amor ou ódio, desejo, esperança, temor, etc. são as próprias fontes das ações humanas e motivam-nos a buscar nossos objetivos com vigor. Elimine os sentimentos, e o mundo do homem ficará paralisado. O mesmo se aplica à vida espiritual. Não sentiremos o fruto do Espírito (alegria, paz, gratidão, esperança, etc.), se não crermos em Deus com fervor. Conforme declara Edwards, “a religião que Deus exige, e que aceita, não consiste em desejos medíocres, apáticos e sem vida, que nos colocam apenas um pouco acima do estado de indiferença. Em sua palavra, Deus insiste com veemência que sejamos sérios, fervorosos de espírito…”. Em outras palavras, o controle que a fé cristã exerce sobre a vida de uma pessoa é diretamente proporcional à força dos sentimentos que ela provoca.

Por isso as Escrituras incentivam o cristão a ser zeloso. Que é o zelo senão um desejo ardente de ter ou fazer alguma coisa, um anseio veemente em favor de uma causa ou uma tenacidade destemida na busca de um objetivo? Foi a esse tipo de atitude/sentimento que Moisés e Cristo se referiram nos grandes resumos da lei (Dt 6.5; Mt 22.37), ao qual Paulo também exortou (Rm 12.11). Era o que faltava aos laodicenses (Ap 3.15), mas que Zaqueu tinha em abundância (Lc 19.110). Se a fé não é nutrida com certa intensidade de sentimentos, ela não tem condições de ocasionar a transformação de comportamento exigida pelo ensino cristão.

O contrário também é verdade. Muitos ouvem a palavra de Deus e não são tocados por aquilo que ouvem; portanto, não mudam de comportamento. Eles ouvem sobre o poder, sobre a glória, sobre a sabedoria e sobre a bondade de Deus; ouvem do amor de Cristo e de seus sofrimentos por nós assim como sobre as advertências a respeito da ira de Deus contra os que estão longe de Cristo. Assim mesmo, eles permanecem como antes, inalterados, tanto no coração como no comportamento, pois não são atingidos pelo que ouvem. Na Bíblia, a imagem do coração “duro” ou obstinado é aplicada às pessoas em sua recusa obstinada a crer ou a obedecer (Êx 7.13; Dt 2.30; Ez 3.7; Sl 95.7,8; Mc 3.5; At 19.9; Rm 2.5). De maneira semelhante, quando Deus permite que os homens façam sua própria escolha, isso às vezes é expresso sob o aspecto de “endurecimento” do coração (Is 63.17; Jo 12.40; Hb 3.8,12,13). Essa imagem de um coração que não reage pode também referir-se à indiferença sentida pelos que não têm interesse ou desejo de um relacionamento com Deus. Segundo Edwards, um “coração duro” significa claramente um coração que não se deixa influenciar, um coração que não é levado facilmente por sentimentos virtuosos, à semelhança de uma pedra, insensível, bruto, imóvel, difícil de impressionar com a obra do Espírito. Por isso, o coração duro é chamado coração de pedra, em contraste com o coração sensível ou de carne, fácil de ser tocado e influenciado.

O contrário de “coração duro” é “coração de carne” (Ez 11.19; 36.26), fácil de ser tocado e influenciado. Assim, lemos na Bíblia que o bom rei Josias tinha um coração sensível, pois respondeu com emoção e prontidão às exigências da Torá (2 Rs 22.11,19). Daí as emoções que fazem parte da experiência religiosa cristã serem reflexos do zelo com o qual abraçamos e expressamos nossa fé.

O primeiro princípio pode ser resumido dizendo-se que a experiência religiosa cristã tem “profundidade”, isto é, baseia-se no contato com a esfera do Espírito. As três categorias utilizadas acima mostram que a existência da dimensão de profundidade pode provocar grande variedade de fenômenos religiosos, incluindo as emoções normais da vida cristã. Portanto, sentimentos profundos ou emoções fortes não devem ser rejeitados em si mesmos como errados ou impróprios, quer achados na Bíblia, quer na igreja de hoje.

OS LIMITES DA EXPERIÊNCIA CRISTÃ

A moderna crítica da experiência religiosa geralmente concentra-se em duas coisas: ou ela é reduzida ao ridículo como imprópria por causa da tolice, da desordem, da confusão ou do exagero, ou declara-se que a experiência em si mesma se baseia em fraude, engano ou hipocrisia. Entretanto, a premissa desse segundo princípio tem por base uma observação diferente. Creio que muitas experiências e emoções religiosas registradas na Bíblia demonstram que o contato com o Espírito ou com a esfera espiritual não produz necessariamente fé nem resulta em mudança positiva na vida. Portanto, a experiência religiosa tem valor limitado e não deve ser considerada o coração da fé cristã.

Pense outra vez na história dos israelitas. Depois de salvos dos egípcios na travessia do mar Vermelho, eles expressaram sua grande alegria com cântico (Êx 15.1-18; Sl 106.22). Não é de admirar, pois haviam sido resgatados da morte certa por um dos maiores milagres da história do Antigo Testamento. Mas esse milagre “converteu” a nação? Provocou uma transformação duradoura que os tirasse de uma postura de ignorância e incerteza e lhes confirmasse a fé, culminando numa disposição para servir e obedecer a Deus? Os grandes milagres do êxodo tiveram algum efeito moral permanente sobre a vida deles? Por tudo que sabemos, a resposta é não. Mas apenas alguns dias depois, a euforia havia desaparecido e em seu lugar surgiu o mau hábito de reclamar e murmurar contra as condições no deserto (Êx 16.2,3).

Um mês depois, aqueles mesmos israelitas viram Deus descer sobre o monte Sinai. Nem antes nem depois daquilo testemunhou-se uma revelação de Deus de tamanha grandeza. Enquanto a montanha fumegava e estremecia, eles tremiam de medo e entusiasmo (Êx 19.16; 20.18). Tão grande foi o efeito, que eles pediram a Moisés que falasse com Deus em nome deles, pois o som da voz divina era terrível demais para ser suportado (Êx 20.19). Mas apenas alguns dias depois, enquanto Moisés ainda estava no monte, o temor pelo grande Jeová dissipou-se e foi redirecionado para a adoração muito mais controlável de um bezerro de ouro (Êx 32.4). O temor inicial de Deus havia desaparecido, chegando ao ponto de eles não sentirem nenhuma inibição em festejar e dançar bem debaixo da sombra da montanha estrondosa.

A julgar apenas pela história da primeira geração de israelitas, até as experiências espirituais mais intensas não provocam necessariamente efeito sobre a fé ou sobre o comportamento. Essa conclusão é dura, mas se confirma pela experiência de outras pessoas na Bíblia. Veja, por exemplo, a história de Balaão. As experiências espirituais desse cananeu enigmático são realmente impressionantes e incluem uma visita do anjo do Senhor (Nm 22.23-25), várias visões do próprio Jeová (Nm 22.20; 23.4,16; 24.16) e um revestimento incomum com o poder do Espírito (Nm 24.2). Assim mesmo, apesar dessas experiências estonteantes, não há nenhum sinal de que ele tenha se convertido. Pelo contrário, Pedro refere-se a ele como exemplo de réprobo (2 Pe 2.15), e Jesus, na visão de João, descreve-o como a quintaessência da idolatria (Ap 2.14).

A história de Saul é outro exemplo. Sua unção já foi referida num exemplo de como a presença do Espírito pode produzir mudanças impressionantes e perceptíveis no comportamento. Mas o fim dessa história não é que Saul saiu daquela experiência para uma vida de serviço e obediência. Pelo contrário, anos depois ele foi rejeitado por Deus por causa de desobediência contumaz (1Sm 15.22, 23).

Não é difícil encontrar outros exemplos. O rei Acabe arrependeu-se certa vez de seus pecados com choro e pranto (1Rs 21.27). Mas de nada serviram seus sentimentos, pois o comportamento não mudou. No final, seu nome tornou-se sinônimo de mal e idolatria (1Rs 16.30; 2Rs 8.27). O apóstolo João diz que muitas pessoas ficaram grandemente impressionadas com a ressurreição de Lázaro (Jo 12.17-19) e expressaram o zelo recém-adquirido na entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. Havia clamores por toda a cidade. Mas apenas alguns dias depois, quando Jesus estava na presença de Pilatos, o fervor daquelas pessoas não mais podia ser encontrado. Com Jesus diante delas, houve grande clamor, mas de outra natureza. Não se ouvia mais hosana, hosana, mas, crucifica-o, crucifica-o. Paulo descreve uma mudança semelhante entre as igrejas gálatas. Ele se refere às intensas afeições nutridas por elas no início, quando abraçaram a nova fé, porém mais tarde ele teme que tudo tenha sido em vão e que tenha trabalhado à toa (Gl 4.15). Os ouvintes cujos corações eram como o solo rochoso de Mateus 13 deram prova de zelo espiritual, à semelhança dos fariseus, mas no final revelaram-se irregenerados. O elemento comum a todas essas histórias é que nem emoções intensas nem experiências de êxtase produzem necessariamente fé ou efeitos duradouros.

ALGUMAS CONCLUSÕES

A esta altura já deve estar claro que as metáforas “profundidade” e “limites” são meras ferramentas conceptuais que ajudam a descrever a natureza e o valor da experiência religiosa cristã. Por sermos seres humanos, compostos de corpo, alma e espírito, o reino espiritual invisível em que vivemos e respiramos é capaz de atuar sobre nós de maneira profunda. Esta é a dimensão de “profundidade” da existência humana. Todavia, essa profundidade tem valor limitado, pois o contato com o reino espiritual por si mesmo não regenera a alma nem produz necessariamente efeitos duradouros. A partir dessa profundidade e desses limites extraio três conclusões.

Em primeiro lugar, nem sentimentos nem experiências constituem base pela qual se possa julgar a espiritualidade. Nenhum dos efeitos que aparecem quando o Espírito está presente com poder, tais como lágrimas, tremores, gemidos, desmaios, etc., são apresentados nas Escrituras como indicadores de fé ou do favor de Deus. Nem visões grandiosas ou fortes emoções por si mesmas estabelecem alguma coisa sobre nossas relações com Deus. Quando as multidões viram Jesus curando o paralítico, elas glorificaram o Deus de Israel (Mc 2.12; Mt 9.8; Lc 5.26; Mt 15.31), e quando Jesus ensinou nas sinagogas foi glorificado por todos (Lc 4.15; 7.16). Assim mesmo, onde estavam essas pessoas quando ele foi crucificado? Segundo observa Edwards, o fato de uma pessoa orar ou de falar com entusiasmo sobre Deus durante certo tempo não significa muita coisa em si mesmo. O homem natural é capaz de ter as mais admiráveis visões de Deus e de ter os mais profundos sentimentos religiosos e assim mesmo se afastar disso com o coração inalterado. O valor da experiência religiosa é limitado por sua incapacidade de fazer o que é mais necessário, transformar permanentemente o coração do homem. Conforme diz Edwards: “Um homem pode ter dez mil revelações e orientações do Espírito de Deus e assim mesmo não possuir nem um pouquinho da graça em seu coração”. A questão é importante, pois isso significa que precisamos ter cuidado para não julgar nossa condição espiritual ou a de alguém baseados em experiências, pois elas simplesmente não são confiáveis como indicadores da condição espiritual de uma pessoa.

Em segundo lugar, quando há uma atuação incomum do Espírito num contexto de grupo, é essencial que a ordem seja mantida ou restaurada, e a Palavra, pregada. Pense novamente nos avivamentos de Neemias 8 e de Atos 2. Nos dois casos as multidões ficaram temporariamente agitadas pela atuação do Espírito e reagiram com profundas emoções. Se a situação se resumisse a isso, pouca coisa seria realizada. Mas o texto de Neemias deixa claro que Esdras e Neemias restauraram a ordem e continuaram o estudo das Escrituras (vv. 8,12,13). Em consequência disso, o avivamento continuou através do capítulo 9. O mesmo ocorreu em Atos 2, em que todos na multidão ficaram “atônitos e perplexos” com as manifestações do Espírito (vv. 6,7,12). Mas Pedro falou mais alto que o barulho e ofereceu uma exposição do significado da morte e da ressurreição de Cristo. A multidão ouviu o que ele tinha a dizer (v. 37), e o resultado disso foi que 3.000 pessoas foram salvas. Para que haja algum resultado de valor permanente numa experiência, é preciso que a desordem dê lugar à ordem e que a Palavra seja ensinada e pregada.

Por último, experiências religiosas de êxtase não devem ser vistas como o coração da espiritualidade cristã. Deus não chama os cristãos a buscarem experiências espirituais cada vez mais grandiosas para seu próprio bem, não importa quão elevadas ou santas elas sejam. Jack Deere, líder do movimento de sinais e maravilhas nos Estados Unidos, faz uma boa colocação disso: “Quando Deus se agrada em conceder manifestações físicas hoje, devemos aceitá-las como vindas de suas mãos, mas não devemos cometer o erro de glorificá-las. […] Em última análise, o que tem importância real não é a manifestação, mas a obra do Espírito.”

Voltando depois à mesma questão, ele acrescenta que o propósito de todas as manifestações do Espírito “é produzir pessoas saudáveis que vivam a vida integralmente para Deus”. É exatamente isso. O cristão não deve ter como alvo de sua vida a busca de experiências espirituais, mas servir a Deus por meio de boas obras. A isso acrescentaria que na Bíblia há muitos exemplos de homens e mulheres sobre quem não se registra nenhuma experiência especial. Entre eles estão o servo anônimo de Abraão (Gn 24.2,3), o General Calebe (Nm 14.24), Neemias, o restaurador de Jerusalém, Apolo, o grande mestre (At 18.24-28), Dorcas, a amada costureira (At 9.36-38), e Timóteo, o grande discípulo de Paulo (At 18.5; 1Co 4.17; Fp 2.22; 1Ts 3.2). Sem dúvida há muitos outros. Eles constituem prova de que uma posição elevada com Deus tem mais que ver com um serviço fiel do que com experiências especiais.

Qual é a natureza da verdadeira religião? Quais são os sinais característicos dessa virtude e santidade aceitáveis aos olhos de Deus? Para Jonathan Edwards, essas são as perguntas mais importantes que devemos nos fazer. De forma brilhante, o autor mostra que as respostas podem ser encontradas em nosso próprio coração, cuja vontade e inclinação só serão compatíveis com a grandiosidade de Deus se forem intensas e cheias de vigor. Ou seja, se elas se transformarem em afeições.

Publicado por Vida Nova.

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