A laicidade dos norte-americanos

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Este texto contém excertos da 3ª edição do livro Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas [3ª Edição – Vida Nova] [1]

Nesses “vai e vem” da pandemia de COVID-19, a liberdade religiosa e os limites do Estado são alguns dos temas mais debatidos ultimamente. E, veja, não só aqui no Brasil. A Suprema Corte dos EUA decidiu que restrições às Igrejas, excepcionalmente, são constitucionais [2] e agora José? Logo na maior democracia do mundo? Pois então, a decisão yankee foi bem interessante para nós no sentido de relembrarmos como funciona o sistema de laicidade norte-americano.

A Igreja Pentecostal de South Bay não aceitou a restrição imposta pelo governador do Estado da Califórnia, Gavin Newsom, que delimitou o funcionamento dos templos para apenas de 25% da capacidade – com limite em cem pessoas. Assim, buscou a tutela do Poder Judiciário para abrigar sua insatisfação. Entretanto, a Suprema Corte rejeitou o pedido da Igreja, e entendeu que a restrição é focada em evitar a disseminação do novo corona vírus:

Embora as diretrizes da Califórnia imponham restrições a locais de culto, essas restrições parecem consistentes com a Cláusula de Livre Exercício da Primeira Emenda. Restrições semelhantes ou mais severas se aplicam a reuniões, incluindo palestras, shows, exibições de filmes, esportes para espectadores e performances teatrais, onde grandes grupos de pessoas se reúnem nas proximidades por longos períodos de tempo. E a Ordem isenta ou trata com mais indulgência apenas atividades diferentes, como operar supermercados, bancos e lavanderias, nas quais as pessoas não se reúnem em grandes grupos nem permanecem próximas por longos períodos. [3]

Discorremos sobre a primeira emenda norte-americana na terceira edição do livro Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas. No modelo estadunidense, a nítida distinção entre as competências da igreja e do Estado, na qual este se ocupa com o secular, enquanto aquela com o espiritual. Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos da América e principal autor da declaração de independência do país, ao escrever para a Associação Batista de Danbury, em 1802, conceituou:

… eu contemplo com reverência soberana aquele ato de todo o povo americano que declarou que sua legislatura não deve “fazer nenhuma lei que diga respeito a estabelecimento de religião, ou que proíba o seu livre exercício” (Jefferson’s Letter to the Danbury Baptists [June 1998] — Library of Congress Information Bulletin).

Essa citação de Thomas Jefferson faz alusão à Primeira Emenda ao Texto Magno dos Estados Unidos, que institui a separação entre igreja e Estado (1791): “O Congresso não fará nenhuma lei que diga respeito a estabelecimento de religião, ou que proíba o seu livre exercício…”, no dizer de Jefferson, “wall of separation”, “disposição que, ao ser integrada no ‘Bill of Rights’, transformar-se-ia nem uma das pedras de toque do edifício político americano” [4]. Ensina Catroga sobre a formação da laicidade americana:

São essas características que levam a concluir que, na América, o processo que consolidou o pluralismo religioso tem uma matriz mais jurídico-constitucionalista — consubstanciada, sobretudo, na Primeira Emenda — do que estadualista, ou “laica”, já que foi aquela a enformar o Estado e não o contrário, como acontecerá em França. [5]

Os pais fundadores da América entendiam que a liberdade religiosa não era uma benesse do Estado ou concessão benévola de qualquer igreja que porventura estivesse estabelecida previamente, mas, antes, um direito inalienável e inegociável do ser humano, um direito natural visceralmente ligado com a dignidade da pessoa humana. [6] Ou seja, era a garantia de que o Estado nunca se intrometeria nos assuntos da igreja, todavia, conforme ensinou Dooyeweerd em Estado e Soberania [7], a separação Igreja e Estado nos EUA se assenta sobre a liberdade individual das pessoas. Ou seja, o que importa não são os aspectos comunitários da fé e sua ação pública, bem como sua importância pública de influência, mas a crença individual de cada um. Disto resulta a possibilidade de restrições da liberdade religiosa, em suas dimensões públicas, sem maiores problemas, desde que seja a vontade dos indivíduos ou que se calem diante disto. Muito diferente do Brasil que, além de garantir a liberdade privada, íntima de crença, também preconiza as liberdades públicas de crença, quais sejam: expressão, culto e organização. Tá lá, no artigo 5º, VI de nossa Carta constitucional.

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[1] VIEIRA, Thiago. REGINA, Jean. Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas. São Paulo: Edições Vida Nova, 2020.

[2] Suprema Corte dos EUA decide que restrições a igrejas são constitucionais. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-mai-30/suprema-corte-eua-mantem-restricoes-templos-religiosos >

[3] No. 19A1044. South Bay United Pentecostal Church, Et. Al. v. Gavin Newson, Governor of California, Et. Al. Em tradução livre.

[4] Fernando Catroga, Entre deuses e césares. Secularização, laicidade e religião civil: uma perspectiva histórica. 2. ed. (Coimbra: Almeida, 2010), p. 156.

[5] Ibidem, p. 157.

[6] Ibidem, p. 155.

[7] DOOYEWEERD, Hernan. Estado e Soberania. São Paulo: Edições Vida Nova, 2014, p. 95.

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