A importância da Hermenêutica Bíblica – Parte 1

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Palestra proferida no Seminário Teológico do Betel Brasileiro na ocasião do lançamento da obra: A Espiral Hermenêutica (Edições Vida Nova).

Começarei falando da necessidade da hermenêutica bíblica. Como Osborne em seu livro A Espiral Hermenêutica, eu acredito sim que o propósito da hermenêutica é nos levar finalmente à pregação da Palavra de Deus. Contudo, antes de pregarmos, precisamos interpretar as Escrituras. Não é simplesmente abrir a Bíblia e dizer o que ela está dizendo. Nem todo mundo se apercebe do fato de que a leitura de qualquer texto sempre envolve um processo de interpretação. Ou seja, não é possível compreender um texto, qualquer que seja, sem que haja antes um processo interpretativo ― quer esse texto seja um jornal, quer seja a Revista Veja, quer seja a Bíblia.  A leitura sempre envolverá um processo de interpretação ― ainda que esse processo seja inconsciente e nem sempre as pessoas estejam alertas para o fato de que um processo de compreensão está em andamento. A Bíblia é um texto. Ela é a Palavra de Deus, mas ela é um texto. Como tal, ela não foge a essa regra.

Cada vez que abrimos a Bíblia e a lemos procurando entender a mensagem de Deus para anunciá-la em nossa pregação, nos engajamos em um processo de interpretação, de maneira consciente ou não. Como Palavra de Deus, a Bíblia deve ser lida como nenhum outro livro, já que ela é única. Não há outra Palavra de Deus. No entanto, como ela foi escrita por seres humanos, deve ser interpretada como qualquer outro livro. Nesse sentido, a Bíblia se sujeita a regras gerais da hermenêutica e da interpretação, que fazem parte daquilo que é lógico e tem sentido dentro da nossa realidade. Ou seja, quando nós refletimos no fato de que a Bíblia é um texto ― sujeita a regras gerais de interpretação ―, temos um texto que está distante de nós por causa da sua idade, das línguas originais, do diferente contexto cultural. Tudo isso faz com que a leitura da Bíblia requeira um esforço consciente de interpretação. É diferente, por exemplo, de você pegar a Revista Veja ou Estadão e ler. Quando você se aproxima da Bíblia, está se aproximando de um texto antiquíssimo que foi produzido em outro contexto e em línguas, que não são faladas atualmente. Além disso, foi escrito para responder a perguntas que nem sempre são as mesmas perguntas de hoje. Daí a necessidade de interpretação de todo um processo consciente de hermenêutica.

Dessa forma, desejo falar desse fenômeno que nós chamamos de distanciamento, a partir de duas perspectivas. Primeiro, a Bíblia como um texto, como um livro, não caiu pronta do céu — embora se pensasse assim em determinada época. Ela foi escrita por pessoas diferentes, em épocas diferentes, línguas e lugares distintos. Por isso, é um texto distante de nós. Aqui é que entra o que os teóricos da hermenêutica chamam de distanciamento. No caso da Bíblia, esse distanciamento aparece em algumas áreas.

O primeiro distanciamento é o temporal. A Bíblia está distante de nós há muitos séculos. Seguindo a postura do cânon tradicional, o último livro foi escrito por volta do final do século I da Era Cristã. Para os liberais, o último livro teria sido escrito no século II, mas normalmente a data que se atribui é a do final do século I  ― o que, portanto, nos separa temporalmente da Bíblia cerca de 2 milênios. Assim, não devemos pensar que um livro de 2000 anos pode ser lido como quem lê a Revista Época, em que a última edição saiu no sábado passado. Há esse fenômeno do distanciamento temporal, que precisa ser levado em consideração.

Em segundo lugar, há um distanciamento contextual. Os livros da Bíblia foram escritos para atender a determinadas situações. Várias delas já se perderam no passado. Por exemplo, o uso do véu não é um problema nosso aqui no Brasil. O ataque do próprio gnosticismo nas igrejas da Ásia Menor, o contexto de invasão do profeta Habacuque, o propósito de Marcos, a antipatia dos judeus para com os ninivitas na época de Jonas, todas essas situações distintas produziram a literatura que depois se tornou canonizada, e que nós chamamos de Escritura. Várias dessas situações nos são estranhas, não existem hoje. Dessa forma, além de ser um livro que foi escrito há 2000 anos, foi um livro escrito para atender a determinados problemas que não são os mesmos enfrentados hoje.

Em terceiro lugar, há o distanciamento cultural. O mundo que os escritores da Bíblia viveram não existe mais. Ele está em um passado distante, com suas características, sua cosmovisão, seus costumes, tradições e crenças. Nós vivemos hoje em um Brasil de tradição ocidental, influência europeia, americana e uma série de outras influências de um mundo completamente estranho àquele em que viveram os autores do Antigo Testamento e do Novo Testamento.
Em quarto lugar, temos o distanciamento linguístico. As línguas em que a Bíblia foi escrita também não mais existem. Já não se fala mais o hebraico bíblico, o grego koiné ― mesmo nos países onde a Bíblia foi escrita. Então, essas línguas já não são mais faladas ou conhecidas, a não ser através de estudo.

Em quinto lugar, nós temos o distanciamento autorial. Nós devemos ainda reconhecer que teríamos uma compreensão mais exata da mensagem se os autores da Bíblia estivessem vivos. Eu, por exemplo, gostaria de pegar o celular e ligar para Pedro e perguntar para ele o que ele quis dizer quando afirma que Jesus foi pregar aos espíritos em prisão, ou ligar para Paulo e perguntar o que ele quis dizer quando ele fala dos que se batizam pelos mortos, ou ainda o que Mateus quis dizer quando registrou a frase em que Jesus afirma que não cessariam de percorrer todas as cidades de Israel antes que viesse o Filho do homem. Eu gostaria de pegar o celular ou mandar um e-mail para os autores da Bíblia e tirar algumas dúvidas. Isso não é possível a não ser que você seja espírita e faça uma sessão de invocação de mortos. 

Portanto, esse distanciamento faz com que os pregadores, antes de qualquer coisa, sejam hermeneutas. Eles têm que ser intérpretes. Eles têm que estar conscientes de que estão transmitindo o sentido de um texto antiquíssimo e distante de nós em uma realidade completamente diferente. É nesse ambiente que nós afirmamos que interpretar é tentar transpor o distanciamento em suas várias formas de chegar ao sentido original do texto ― à intenção do autor ― com o objetivo de transmitir o significado para os dias de hoje. É aqui que reside a tarefa hermenêutica.

Por outro lado, a Bíblia também é um livro divino, e esse fato faz com que também o fenômeno do distanciamento apareça. Por exemplo, o distanciamento natural: a distância entre Deus — o autor último das Escrituras — e nós é imensa. Ele é Senhor, o criador de todas as coisas no céu e na terra. Nós somos suas criaturas imitadas, finitas. A nossa condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus, ainda que reveladas em linguagem humana. Existe um distanciamento natural entre nós e o texto bíblico pelo fato de que ele é a Palavra de Deus, é a revelação de Deus. Ele é “totalmente outro”, a alteridade de Deus. A diferença entre Deus e nós faz com que a sua revelação careça de estudo, de aproximação da maneira certa.

Além do distanciamento natural existe o distanciamento espiritual, porque somos criaturas pecadoras, caídas, e o pecado impõe limites ainda maiores à nossa capacidade de interpretação da Bíblia. É o que nós chamamos de limitações epistemológicas. O pecado afetou não somente a nossa vontade, não somente os nossos desejos, a nossa capacidade de decidir, mas também afetou a nossa capacidade de compreender as coisas de Deus. Isso explica a grande diferença de interpretação que existe entre crentes verdadeiros que estão salvos pela graça de Deus em Cristo Jesus, mas simplesmente não conseguem concordar na interpretação de determinadas passagens.

Há também o distanciamento moral, que é a distância existente entre seres pecadores e egoístas, e a pura e santa Palavra de Deus que nós pretendemos entender e pregar. Essa corrupção acabou introduzindo à interpretação da Bíblia motivações incompatíveis com ela. Por exemplo, a Bíblia já foi usada para: justificar a escravidão; provar que os judeus deveriam ser perseguidos; provar que os judeus deveriam ser defendidos; provar que os protestantes brancos são uma raça superior; executar bruxas; impedir o casamento de padres; justificar o aborto; justificar a eutanásia; justificar e promover os relacionamentos homossexuais; proibir a transfusão de sangue. O catálogo é imenso do que tem sido usado como motivação de agendas diversas e variadas.

Tudo isso evidencia que não é tão simples assim o que a maioria das pessoas pensa sobre “como” pregar a Bíblia.

19 COMENTÁRIOS

  1. É fato comprovado a inspiração de Deus nas Escrituras, e considerando todos os apontamentos lidos, aumentou minha convicção de que a leitura, interpretação e por fim pregação da palavra e desse evangelho, deve ser dirigido pelo Espirito Santo, que habita naquele que aceitaram e creem, conjugado com o conhecimento secular, nunca deixando o segundo sobrepor a direção éNICA DO E.S. .

  2. Graça e paz queridos irmãos. Gostaria de saber como faço para ler um pouco mais sobre hermenêutica. J  tem a importância da hermenêutica 2, ela ‚ muito importante para ser usada nos dias de hoje. Muito obrigado, que DEUS possa usar vocês ricamente nestes trabalhos. Fiquem na paz do Senhor Jesus.

  3. Ol  Alexandre,
    Obrigado pelo coment rio. Eu recomendaria os seguintes livros, na sequencia:

    1) Grudem, Collins, Schreiner, Origem, confiabilidade e significado da Bíblia
    2) Fee & Stuart, Entendes o que lês?
    3) Roy Zuck,A interpretação bíblica
    4) Grant Osbourne, A espiral hermenêutica

    Todos estes livros podem ser adquiridos diretamente pela loja virtual de Ediçäes Vida Nova.

    Em Cristo,
    Franklin

  4. ótima explanação, que Deus continue abrindo o vosso entendimento, que o Senhor Jesus te abençoe e que sua sabedoria venha nos esclarecer cada vez mais, em nome de Jesus am‚m.

  5. Li o texto de maneira atenciosa e confesso que gostei da abordagem feita quanta … interpretação bíblica. Claro que nos dias atuais h  novos paradigmas para a compreensão da mensagem bíblica, mesmo enfrentando os mais diversos distanciamentos que o autor destacou. Mas com a b sica orientação do Espírito Santo poderemos extrair a mensagem que o texto nos apresenta. O Espírito Santo far  a Sua obra, busquemos e vivamos em sua dependência.

  6. Li o texto de maneira atenciosa e confesso que gostei da abordagem feita quanta … interpretação bíblica. Claro que nos dias atuais h  novos paradigmas para a compreensão da mensagem bíblica, mesmo enfrentando os mais diversos distanciamentos que o autor destacou. Mas com a b sica orientação do Espírito Santo poderemos extrair a mensagem que o texto nos apresenta. O Espírito Santo far  a Sua obra, busquemos e vivamos em sua dependência.

  7. Prezados Irmão Graça e Paz:
    Sou muito grato a Deus pelo minist‚rio que os amados irmãos desenvolve. O meu desejo ‚ que se for pssível, dividir com os meus irmãos professores da EBD em minha congregação. A riqueza dos artigos vai nos ajudar em muito. Posos utilizar os textos para o crescimento dos professores da EBD e líderes de Pequenos Grupos?

  8. Li o artigo,mas não concordo, na parte que diz, que os escritores viveram em tempos diferente, lugares diferentes costumes diferentes, não importa tempo, lugar ou costumes se foi inspirado nada pode ser mudado, se o Deus ‚ um só segundo se dizem não pode dizer uma coisa a um e outra coisa a outro, esses escrito são obras de homens e vem mudando de acordo com evolução,e desde quando venha a lhes beneficiar-lhes.

  9. Prezados,
    Gostei no inicio do coment rio, acredito que realmente a bíblia ‚ formada por textos que devem buscar origem de interpretação para entendermos os contextos explicados nela.

  10. Preciosidade de texto. Muito rico e claro . Traz em si argumentaçäes extremamente pertinentes para quem lida com a palavra de Deus no seu dia a dia . Toda a linha argumentativa do autor, destaca o livro bíblico, mesmo sendo este de iniciativa divina. Pontua-se que a sua compreensão e interpretação não pode fugir nas normas exigidas para os demais livros . Pois se trata de um texto que depender  de chaves hermenêuticas. E são elas que, independente da antiguidade do seu contexto e produção. São elas que mantem os princípios e valores atuantes em cada geração . parabéns ao autor.

  11. Maravilhoso texto, onde nos reciclamos cada vez que lemos, ‚ enriquecedor para todos que almeja um ensino de qualidade.

  12. Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviar  em meu nome, esse vos ensinar  todas as coisas, e vos far  lembrar de tudo quanto vos tenho dito. João 14:26 –
    Poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, Ef‚sios 3:18
    Quem quiser entender que entenda!

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