Entendendo os fundamentalistas – Parte 3

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Distinções importantes e esclarecimentos sobre um termo mal compreendido

Terminando essa série de artigos sobre o fundamentalismo cristão, gostaria de fazer algumas distinções sobre o termo “fundamentalista”. À semelhança de outros rótulos nos meios evangélicos, o rótulo “fundamentalista” também é mal compreendido e mal empregado. Nada mais natural do que procurar esclarecer o assunto. Acho que a primeira coisa é falar sobre os vários possíveis sentidos em que o termo “fundamentalista” é empregado.

 O fundamentalista histórico não existe mais. Ele existiu no início do século 20, durante o conflito contra o liberalismo teológico que invadiu e tomou várias denominações e seminários nos Estados Unidos. J.G. Machen, John Murray, B.B. Warfield, R.A. Torrey, Campbell Morgan e, mais tarde, Cornelius Van Til e Francis Schaeffer são exemplos de fundamentalistas históricos. Falei sobre esse tipo de fundamentalista no meu primeiro artigo dessa série.

O fundamentalista americano ainda existe, mas perdeu muito de sua força. Embora tenha surgido ao mesmo tempo que o histórico, separou-se dele quando adotou uma escatologia dispensacionalista, aliou-se à agenda republicana dos Estados Unidos, exerceu uma militância belicosa contra tudo que considerasse inimigo da fé cristã, como o comunismo, o ecumenismo, o liberalismo, a ciência moderna e o próprio evangelicalismo. Defendia e praticava o separatismo institucional de tudo e todos que estivessem ligados direta ou indiretamente a esses inimigos. Recentemente, faleceu o que pode ter sido o último grande representante desse gênero de fundamentalista, o famigerado Carl McIntire. Alguns consideram que Pat Robertson é seu sucessor, embora haja muitas diferenças entre eles. Veja mais sobre esse tipo no segundo artigo da série.

O fundamentalista denominacional é aquele membro de denominação que se considera oficialmente fundamentalista e que até traz o rótulo na designação oficial. Após um período de grande florescimento no Brasil, especialmente no Nordeste e em São Paulo, as igrejas fundamentalistas, presbiteriana e batista, sofreram uma grande diminuição em suas fileiras. Grande parte das igrejas fundamentalistas presbiterianas regressaram à Igreja Presbiteriana do Brasil, de onde saíram na década de 1950. Em alguns casos, o fundamentalismo denominacional do Brasil foi marcado por laços financeiros e ideológicos com McIntire. Hoje, até onde sei, não há mais esse laço.

No Brasil, o fundamentalismo denominacional que sobrou desenvolveu uma síndrome de conspiração mundial para o surgimento do reino do anticristo através do ocultismo, da tecnologia, da mídia, dos eventos mundiais, das superpotências. Acrescente-se ainda o desenvolvimento de uma mentalidade de censura e apego a itens periféricos como se fossem o cerne do Evangelho e critério de ortodoxia (por exemplo, só é bíblico e conservador quem usa versões da Bíblia baseadas no Texto Majoritário, quem não assiste desenhos da Disney e não lê a série “Harry Potter”).

O fundamentalista xiita é sinônimo de intransigência, inflexibilidade, ser-dono-da-verdade e patrulhamento teológico. Este tipo tem mais a ver com atitude do que com teologia. Nesse caso, é melhor inverter a ordem e chamá-lo “xiita fundamentalista”. Na verdade, xiitas podem ser encontrados em qualquer dos campos protestantes. A propalada tolerância dos liberais, neoliberais e neo-ortodoxos é mito. Há xiitas liberais, neoliberais, neo-ortodoxos e, obviamente, xiitas fundamentalistas. Teoricamente, alguém poderia ser um fundamentalista histórico e denominacional, e ainda não ser um xiita .

Por fim, o fundamentalista teológico , outro sentido em que o termo é muito usado. O fundamentalista teológico se considera seguidor teológico dos fundamentalistas históricos e simpatiza com a luta deles. Sem pretender ser exaustivo, acredito que são considerados fundamentalistas teológicos atualmente os que aderem aos seguintes conceitos ou a parte deles: a inerrância da Bíblia, a divindade de Cristo, o seu nascimento virginal, a realidade e a historicidade dos milagres narrados na Bíblia, a morte de Cristo como propiciatória, sua ressurreição física de entre os mortos, seu retorno público e visível a este mundo, o conceito de verdades teológicas absolutas, o conceito de que Deus se revelou de forma proposicional, a aceitação dos credos e confissões da Igreja Cristã, a adoção do método gramático-histórico de interpretação bíblica, uma posição conservadora em assuntos como aborto e eutanásia, a preferência pela pregação expositiva, gosto pelos escritos dos puritanos antigos e modernos, a rejeição do liberalismo teológico e da neo-ortodoxia, a crença de que Deus criou o mundo em sete dias, a rejeição da ordenação feminina, não-rejeição da pena de morte e outros. Há quem queira acrescentar a essa lista os que votaram contra o desarmamento, são contra o esquerdismo brasileiro e gostam dos Estados Unidos.

Em linhas gerais, o fundamentalista teológico acredita que a verdade revelada por Deus na Bíblia não evolui, não cresce e nem muda. Permanece a mesma através do tempo. A nossa compreensão dessa verdade pode mudar com o tempo; contudo, essa evolução nunca chega ao ponto radical em que verdades antigas sejam totalmente descartadas e substituídas por novas verdades que, inclusive, contradigam as primeiras. O fundamentalista teológico reconhece que erros, exageros e absurdos tendem a ser incorporados através dos séculos na teologia cristã, e que o alvo da Igreja é sempre reformar-se à luz dos fundamentos da fé cristã bíblica, expurgando esses erros e assimilando o que for bom. Admite também que existe uma continuidade teológica válida entre o sistema doutrinário exposto na Bíblia e a fé que abraça hoje.

Na categoria de fundamentalistas teológicos, encontramos presbiterianos, batistas, congregacionais, pentecostais, episcopais e provavelmente muitos outros. É claro que nem todos subscrevem todos os pontos acima, e ainda outros gostariam de qualificar melhor sua subscrição. Contudo, no geral, acho que posso dizer que os fundamentalistas teológicos não fariam feio numa pesquisa de opinião sobre o que crêem os evangélicos brasileiros.

(Este artigo final é uma adaptação de meu post colocado no blog O Tempora! O Mores! )

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