A hermenêutica de Jerônimo: reflexões para a exegese e hermenêutica atual a partir de um pai da igreja

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Introdução

Os pais da igreja são normalmente associados com o uso da alegoria e apresentados como um exemplo histórico de como não se fazer exegese e hermenêutica hoje em dia. No entanto, é possível ter outra atitude ao se compreender o porquê da alegoria ter sido usada. Além disso, a alegoria vincula-se a outras práticas e atitudes que motivam sua utilização. Com isso, embora o intérprete atual possa não se utilizar das mesmas práticas, ainda assim, pode se valer das posturas subjacentes. Estas podem ser associadas a uma metodologia mais atual, desde que esta pressuponha valores semelhantes e congruentes com a postura dos pais, e que sejam atemporais e necessários. Para tal, Jerônimo é apresentado como um estudo de caso. Ele se utilizou principalmente da alegoria e chegou a ser até mesmo radical em sua abordagem. No entanto, o fez como parte de um conjunto de outras posturas e como consequência de outras, fato este que costuma ser desprezado ao se considerar este autor.

Breve histórico exegético

Jerônimo (c. 347-419 d.C.) é comumente situado entre os ocidentais, e pertencente à escola de Alexandria. É muito conhecido por sua tradução da Bíblia para o latim, a Vulgata. Esta foi produzida com base no texto hebraico do AT, da Hexapla de Orígenes, e com a inserção dos livros deuterocanônicos (BRAY, 2017, p. 91).

Além disso, ele também veio a traduzir as homilias de Orígenes sobre os profetas e o Cântico dos Cânticos. Posteriormente, veio a rejeitar a tradição alegórica (BRAY, 2017, p. 91). Por isso, seus comentários de Eclesiastes e Salmos refletem um momento em que ele apreciava Orígenes, enquanto o de Gênesis já se situa no momento de seu afastamento. Finalmente, o seu trabalho sobre os profetas menores e sobre o NT já refletem sua última posição (BRAY, 2017, p. 91-2). Ainda assim, sua rejeição ao alegorismo pode ter sido mais teórica do que prática (BRAY, 2017, p. 92). Talvez por isso Childs o considere como eclético em sua abordagem hermenêutica (CHILDS, 2004, p. 91). Jerônimo também comentou Mateus, as cartas paulinas e o Apocalipse (BRAY, 2017, p. 92), percorrendo diversos gêneros literários.

Além de Orígenes, ele também foi influenciado por classicistas romanos, como Donatus, tanto na filologia latina, quanto em estilo e retórica. Outras influências foram a escola alexandrina e de Antioquia (respectivamente Dídimo, Apolinário e os pais capadócios) (CHILDS, 2004, p. 91). E o próprio Jerônimo atesta ter sido educado por Gregório de Nazianzo (JERÔNIMO, 2015, p. 150).

Análise da prática interpretativa

And I beg you, Eustochium, Christ’s virgin, that you help me by your prayers in the exposition of the very difficult vision in which God almighty is seen in his majesty [cf. Isa 6:1–2], and there are two seraphim standing around him and shouting, “Holy, holy, holy, Lord Sabaoth, all the earth is full of his glory” [Isa 6:3]; and the lintel of the temple was shaken and struck [cf. Isa 6:4]; and the house of the Jews was filled with the darkness of error; and in comparison with the divine glory, the prophet says that he has unclean lips and dwells in the midst of a blaspheming people [cf. Isa 6:5], who shouted in their impious unison, “Crucify him, crucify him” [John 19:6]; and, “We have no king but Caesar” [John 19:15] (JERÔNIMO, 2015, p. 149).

Jerônimo pede que Eustochium o ajude por meio de orações, para que ele possa expor a passagem seguinte (Is 6). Assim, ele não concebe a interpretação bíblica como mero exercício intelectual, em que o ser humano pode compreender a revelação divina por suas próprias capacidades. Ao contrário, ele precisa do auxílio divino, buscado por meio da oração.

Ele também parece contrapor “glória” à “escuridão” do erro. Assim, a glória estaria de alguma forma ligada à verdade. E, se o erro levaria à impureza e blasfêmia associadas à rejeição de Cristo, a verdade levaria à santidade e reconhecimento a Cristo. Além disso, ele traça uma relação direta e alegórica entre a impureza de Isaías e seu povo com o clamor pela crucificação de Cristo e sua rejeição como rei, em prol de César. Logo, a revelação da verdade bíblica implica em conversão e santificação; já o escurecimento, em oposição. Neste caso, a exegese e a hermenêutica não dependem apenas de compreensões filosóficas, literárias, gramaticais e históricas. Contudo, eles dependem de questões espirituais que aparecem de modo determinante.

Estas questões espirituais parecem implicar para Jerônimo na alegoria como uma estratégia necessária para se alcançar um sentido espiritual. Certamente, Jerônimo se afasta do sentido literal, de modo por vezes indevido. Pois este é contraposto erroneamente ao espiritual.

Portanto, embora Jerônimo se mostre radical quanto ao uso da razão na exegese, ainda assim, ele contribui para a importância de se considerar a mesma como um ato espiritual, não meramente acadêmico. Ao se considerar que a exegese deveria servir à exposição das Escrituras e à edificação da igreja, não se pode negar a essência espiritual deste ato. Pois ela começa pela análise de um texto inspirado e fornece elementos que serão utilizados na santificação ou conversão promovidas pelo Espírito Santo, no momento do ensino ou da pregação. Logo, se o primeiro momento (revelação) e o último (santificação) são espirituais, então é de se esperar que os momentos intermediários também o sejam. Parece que não ter este entendimento poderia levar ao desprezo pela busca deste auxílio divino e, finalmente, à perda da compreensão mais acurada do texto bíblico.

No que se refere à tradução escolhida, Jerônimo se utiliza de diversas traduções existentes, especialmente a LXX (hoje conhecida como Old Greek, com exceção da tradução grega do Pentateuco): ‘And the things that were under him filled the temple, or as Theodotion and Symmachus translated it, “And the things that were under his feet filled the temple.” The Septuagint translated this as, “And the house was full of his glory.”’ (JERÔNIMO, 2015, p. 150). Assim, ele não apenas manteve vivas tais traduções, mas mostrou a importância de se comparar traduções, a fim de se chegar à que melhor se ajusta ao sentido da passagem.

Mas como Jerônimo seleciona entre as diversas traduções e testemunhas textuais? Tratando sobre Isaías 6.9-10, ele começa por apresentar a leitura do OG que, nas suas palavras, afirma: “at God’s command the prophet Isaiah simply predicted what the people would do” (JERÔNIMO; WILKEN; CHRISTMAN; HOLLERICH, 2007, p. 85). No entanto, Jerônimo percebe que o texto hebraico

poses a difficult problem in the way that God directly commands the people to hear with their hearing, and not understand, and seeing, to see, but not perceive. And after the prophet is induced to speak and to beseech the Lord, God also instructs, “Make the heart of this people blind, and their ears heavy, and shut their eyes, lest they see with their eyes, and hear with their ears, and understand with their hearts, and turn and be healed.” (JERÔNIMO; WILKEN; CHRISTMAN; HOLLERICH, 2007, p. 85).

A seguir, ele reconhece que o OG tem testemunhas que seguem a mesma forma do texto hebraico e, escolhendo o texto hebraico, procura então interpretar a passagem alegoricamente. Após citar o texto de Romanos 11 (sobretudo os v. 25-32), ele defende que Isaías 6.9-10 anuncia “that one people should perish so that all might be saved—for part of the Jews not to see, so that the whole world might perceive” (JERÔNIMO; WILKEN; CHRISTMAN; HOLLERICH, 2007, p. 85-6).

Portanto, não parece ser simplesmente que o TM seja mais reconhecido que o OG, mas que a unidade das Escrituras ajuda a selecionar não só o sentido da passagem, mas também a testemunha textual a ser utilizada. De fato, não há nenhuma tentativa de explicar as diferenças entre estas testemunhas, nem outro critério utilizado neste caso. Embora as abordagens críticas mais atuais tenham desenvolvido critérios sólidos para as mesmas, ainda parece salutar considerar a unidade da revelação na crítica textual. Pois o mesmo Espírito inspirou a “toda a Escritura” (2Tm 3.16, ARA). Logo, há de se considerar o desafio de interpretar as Escrituras sem apelar para contradições aparentes e simplistas. Talvez isso possa ser feito sem o uso de alegoria, mas sim com as outras “ferramentas” exegéticas atualmente existentes. Por trás desta tentativa, o mesmo princípio de Jerônimo pode nortear a hermenêutica atual: de que as contradições nas Escrituras são apenas aparentes (JERÔNIMO; WILKEN; CHRISTMAN; HOLLERICH, 2007, p. 85).

Além disso, Jerônimo revela que ele valoriza mais o sentido da passagem do que a tradução literal: “For I myself not only admit but freely proclaim that in translating from the Greek (except in the case of the holy scriptures where even the order of the words is a mystery) I render sense for sense and not word for word” (JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 113). Assim, Jerônimo parece dar mais importância ao significado geral que possa ser compreendido pelo leitor do que a exatidão literal.

No que se refere ao contexto histórico da passagem, Jerônimo não o despreza. Mas ele também se utiliza do mesmo alegoricamente. Por exemplo, ao comparar Isaías 6 com outra porção das Escrituras, a fim de estabelecer seu contexto histórico, ele registra: “Sacred history relates that Uzziah was struck with leprosy, because he laid claim to an unlawful priesthood for himself [cf. 2 Chr 26:16–21]” (JERÔNIMO, 2015, p. 150). Mas logo a seguir, ele aplica o próprio contexto aos seus leitores, por meio da alegoria: “From this we observe that while a leprous king is reigning within us, we are not able to see the Lord reigning in his majesty, nor are we able to recognize the mysteries of the Holy Trinity” (JERÔNIMO, 2015, p. 150). Logo, não só a passagem em questão pode ter um sentido espiritual, mas o próprio fato histórico à que ela alude também pode tê-lo. Nisso se vê que o sentido espiritual parece não concorrer com a realidade factual, mas se encontrar justamente nela. Apesar de recorrer ao contexto histórico — expõe Childs — Jerônimo acredita que o contexto pleno depende do Novo Testamento (CHILDS, 2004, p. 96).

Portanto, uma mesma atitude parece se repetir nos vários passos exegéticos. Pois tanto no que se refere à tradução, quanto à contextualização e interpretação, o significado literal é preterido em favor de um sentido que seja mais compreensível e aplicável ao interlocutor, com vistas a conduzir o mesmo a Deus e à vida com ele.

Certamente, esta atitude possa ser extrema em alguns casos, o que levaria a exegetas atuais a terem cautela para não cair nos mesmos excessos. No entanto, Jerônimo contribui com a consideração de que a exegese e a hermenêutica não têm como finalidade a extração bruta de um conhecimento. Ao contrário, a finalidade seria a exposição daquilo que seja aplicável à vida dos interlocutores, com base na plenitude da revelação. Além disso, tal aplicação seria determinada pelo aspecto espiritual do processo: levar à verdade salvífica e, portanto, transformadora. Não que a salvação e santificação sejam adendos ao processo. Mas, antes, partes inerentes dele, uma vez que o fundamentam, perpassam e são a finalidade do Espírito Santo, no momento em que os resultados deste processo são apresentados publicamente.

No entanto, Jerônimo não parece usar alegorias de modo arbitrário. Antes, ele procura se apoiar no seu entendimento da revelação bíblica, como também ao dizer:

Now in John the Evangelist and in the Acts of the Apostles we learn more fully who is this Lord who is seen. John says of this, “Isaiah said this when he saw his glory and spoke about him” [John 12:41], doubtless signifying Christ (JERÔNIMO, 2015, p. 150).

Assim, o reconhecimento da unidade das Escrituras se daria por meio do sentido espiritual. Essa abordagem é especialmente útil para se tentar superar aparentes contradições bíblicas:

Someone may ask how the prophet can say now that he has seen the Lord, not the Lord without qualification, but the Lord Sabaoth [cf. Isa 6:5], as he himself testifies in what follows, although John the Evangelist has said, “No one has ever seen God” [John 1:18; 1 John 4:12], and God says to Moses, “You cannot see my face, for no man will see my face and live” [Exod 33:20]. We will respond to this that fleshly eyes are not able to see not merely the divinity of the Father, but not even that of the Son and the Holy Spirit, since the nature in the Trinity is one. But the eyes of the mind [can see him], of which the Savior himself says, “Blessed are the pure in heart, for they will see God” [Matt 5:8]. We read that the Lord of Abraham was seen under the figure of a man [cf. Gen 18:1–3], and a man, as it were, who was God, wrestled with Jacob. This is why the place itself was called Penuel, that is, face of God [cf. Gen 32:24–30]. He says: “For I have seen God face to face and my soul was saved” [Gen 32:30]. Ezekiel too saw the Lord in the form of a man sitting over the cherubim; from his loins and below he was like fire and the upper parts had the appearance of amber [cf. Ezek 1:26–27]. Therefore, the nature of God is not discerned, but he is seen by men as he wills (JERÔNIMO, 2015, p. 151).

Portanto, ele não apela para as possíveis diferenças de contextos literários e históricos, ou para as diversas motivações dos diferentes autores bíblicos, como outros autores de hoje poderiam fazê-lo. Mas Jerônimo apela para uma mesma realidade espiritual que estaria perpassando todos eles. Ele então contrasta os olhares da carne e da mente, sendo aqueles os da vontade humana, e os últimos guiados segundo o arbítrio divino.

Ironicamente, nesta abordagem se encontram, ao mesmo tempo, tanto uma contribuição, quanto uma limitação de Jerônimo. Sua contribuição é ver a unidade na revelação. Pois, para ele, não parece haver quaisquer divisões de épocas, dispensações ou alianças. Ou se elas existem, não são tão importantes a ponto de diminuir esta unidade. No entanto, aqui também se encontra a limitação de ter as diferenças e especificidades de diversas passagens bíblicas e seus respectivos contextos apagadas ou, ao menos, diminuídas.

Porém, a alegoria não é sempre utilizada da mesma maneira. Em outra seção de seu comentário sobre Isaías 6, Jerônimo demonstra se colocar em debate com outros autores:

Therefore a certain individual impiously understands the two seraphim to be the Son and the Holy Spirit,6 since we teach according to John the Evangelist and the Apostle Paul that the Son of God was seen in the majesty of one reigning, and that the Holy Spirit spoke. Some of the Latins understand the two seraphim to be the Old and New Testaments (instrumentum), which speak only of the present age (JERÔNIMO, 2015, p. 153).

Inicialmente, ele está confrontando Orígenes. Pois se refere à mesma “heresia” em uma de suas cartas:

Origen is a heretic, true; but what does that take from me who do not deny that on very many points he is heretical? He has erred concerning the resurrection of the body, he has erred concerning the condition of souls, he has erred by supposing it possible that the devil may repent, and—an error more important than these—he has declared in his commentary upon Isaiah that the Seraphim mentioned by the prophet are the divine Son and the Holy Ghost Ghost (JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 131-132).

A seguir, ele talvez esteja se inserindo no grupo dos latinos. Pois ele mesmo defende em uma de suas cartas que ‘the two seraphim thus stand for the Old and New Testaments’ (JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 22), unindo mais uma vez os Testamentos. Desta forma, Jerônimo não se coloca como um autor isolado, mas parte de uma comunidade maior. Por sua vez, esta comunidade também se insere num corpo maior. Logo, Jerônimo também contribui à hermenêutica e exegese contemporâneas ao revelar a importância de se ver o expositor bíblico como parte de uma comunidade e discussões maiores, não apenas alguém que emite impressões individualistas num vácuo contextual. Neste sentido, há um dever pastoral no intérprete: ajudar seus interlocutores a superar heresias e erros teológicos.

Seguindo a postura de Jerônimo, os intérpretes atuais deveriam ajudar seus leitores a se afastar dos falsos ensinos mais do que procurar por inovações teológicas e exegéticas. Além disso, devem aceitar que fazem parte de uma comunidade em meio a outras comunidades, sem banalizar sua tradição. Isso não quer dizer necessariamente que a tradição da comunidade em questão deva ser absoluta. No caso acima, a discussão é sobre o Filho ser Deus ou uma criatura. Embora esta discussão tenha perdurado na história, ainda assim, ela contava com inúmeras comunidades que sustentavam a primeira alternativa. Sendo assim, Jerônimo discute com base em uma tradição bem estabelecida. Portanto, a exegese não é um exercício solitário, mas serve à comunidade do povo de Deus. Ela não é soberana sobre a doutrina, nem é acriticamente submissa a ela. Mas a questiona e é questionada por ela.

Percebe-se também que uma alegoria “herética” não torna, aos olhos de Jerônimo, a abordagem alegórica deficiente ou digna de ser descartada. Pois ele combate o que crê ser uma alegoria herética com outra alegoria. O que parece distinguir uma de outra seria a doutrina cristã. Assim, a exegese não seria um processo puramente indutivo, mas também dedutivo. Novamente, é fundamentando-se na unidade das Escrituras que a medida para se escolher uma tendência mais indutiva ou dedutiva seria encontrada. Portanto, seria estranho ao pensamento de Jerônimo contentar-se com um achado indutivo que contraria a sã doutrina. Ao seu ver, parece que tal situação se daria num erro do processo indutivo em questão. No entanto, pode-se afirmar que a dedução não pode também ser pura, uma vez que cada passagem teria suas particularidades e usos próprios. E a dedução pura acabaria por sufocar tais particularidades e usos.

Assim, o processo exegético não é soberano, apesar de ser de extrema importância, mas se relaciona com a sã doutrina. Se, por um lado, isso possa parecer impedir o progresso teológico, por outro, previne que um desvio absurdo possa ser aclamado. Embora a comunidade cristã ainda debata muitos tópicos, ela conta com um corpus fundamental, que perpassa diferentes comunidades e as torna parte de um mesmo corpo.

Contudo, não são apenas questões mais teóricas que são lidadas com o uso da alegoria. Jerônimo também aplica o sentido não literal para questões de ordem mais prática. Assim, ele incentiva Eustochium a permanecer virgem comparando a virgindade de uma mulher com a situação de Israel. Embora não se trate de um sentido voltado à pessoa de Cristo, trata-se de uma aplicação que não parece ser o sentido literal de Amós 5.2 em vista:

See to it that God say not some day of you: “The virgin of Israel is fallen and there is none to raise her up.” I will say it boldly, though God can do all things He cannot raise up a virgin when once she has fallen. He may indeed relieve one who is defiled from the penalty of her sin, but He will not give her a crown (JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 24).

Portanto, Jerônimo traz a contribuição de estabelecer aplicações práticas e doutrinárias com base em passagens que talvez não fossem utilizadas por outros autores. Isso possibilita imaginar a aplicabilidade de uma passagem além do óbvio.

Certamente, o teólogo atual deve tomar cuidado para não fazer aplicações que sejam claramente incoerentes com a passagem utilizada. No entanto, a postura de Jerônimo pode fornecer um estímulo que favoreça a busca de implicações de uma passagem para questões não diretamente ligadas a um texto. Quando se considera o fato dos interlocutores atuais viverem em outra época e em outro contexto, em relação ao do texto bíblico original, percebe-se esta necessidade.

Se a Escritura é a Palavra universal dada à Igreja e esta perpassa muitas épocas e contextos, então toda a Escritura terá algo a dizer a todos os contextos e épocas. Isso não quer dizer que o modo por vezes indiscriminado que Jerônimo usa certas passagens possa ser adotado. Mas que as implicações de uma passagem tem tanto valor para o povo de Deus quanto as aplicações mais óbvias e diretas.

No entanto, é preciso reconhecer que o método de Jerônimo não pode ser acatado de maneira acrítica. Pois ele muitas vezes abandona quaisquer possibilidades de interpretações que discutam o sentido de uma passagem para os seus primeiros leitores. Por exemplo, ele recorre a Eclesiastes em suas discussões contra os pelagianos:

They, therefore, who say that a man can be without sin if he chooses, will not be able to prove the truth of the assertion, unless they show that it will come to pass. But whereas the whole future is uncertain, and especially such things as have never occurred, it is clear that they say something will be which will not be. And Ecclesiastes supports this decision: “All that shall be, has already been in former ages.” (JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 452).

Logo, para comprovar que uma pessoa pode viver sem pecar, os pelagianos deveriam provar que será deste modo. Mas Jerônimo recorre ao livro de Eclesiastes numa passagem que, em seu contexto, não parece se referir ao pecado. Para tanto, o sentido literal é deixado de lado em favor de um sentido mais apropriado para a discussão (JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 452).

Contrapondo a alegação pelagiana de que somos governados por nosso livre-arbítrio, Jerônimo também recorre a João 3.27. Nessa resposta, ele isola o versículo de seu contexto literário, em que João Batista afirma que Jesus é superior a ele, pois isso lhe foi dado por Deus. Mas Jerônimo usa esta frase para falar do auxílio divino nas ações humanas em geral:

In another place you maintain that “All are governed by their own free choice.” What Christian can bear to hear this? For if not one, nor a few, nor many, but all of us are governed by our own free choice, what becomes of the help of God? And how do you explain the text […] “No one can receive anything, unless it be given him from above”; […] Elsewhere, you make a vain attempt to append the words “not without the grace of God”; but in what sense you would have them understood is clear from this passage, for you do not admit His grace in separate actions, but connect it with our creation, the gift of the law, and the power of free will (JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 462).

Novamente, Jerônimo chega a desprezar o sentido literal, quando comenta sobre Eclesiastes 3.5. Em seu lugar, ele aplica a passagem ao evangelho sendo pregado aos gentios. Para tal, ele relaciona a passagem com Mateus 3.9. Assim, ele usa o NT como uma lente interpretativa do AT:

I am surprised at a scholar’s ridiculous comment on this passage that Solomon is talking about house-building and demolition, on the grounds that people do sometimes demolish and sometimes build; some collect stones together to construct buildings, others demolish those that have been built […] As for us, let us follow the earlier line of explanation, saying that the time to scatter and to collect stones is in the sense recorded in the Gospel: “God is able from these stones to raise up children to Abraham”; that is, that there was the time to scatter the Gentile population, and a time to gather them back into the church (JERÔNIMO, 2012, p. 57).

Contudo, ao fazer isso, ele acaba por esvaziar algumas passagens de um significado próprio. Isso fica ainda mais patente, quando se percebe que Jerônimo lê a mesma passagem logo em seguida, atribuindo um novo sentido. Um sentido que provavelmente não estivesse patente aos leitores de Eclesiastes antes da discussão paulina entre lei e graça:

In one book (but using the Septuagint version: “A time to throw stones and a time to pick them up”) I read that the severity of the old law was tempered by the grace of the Gospel: that is, the law, stiff, unkind, and unmerciful, kills the sinner, but the grace of the Gospel has pity and summons him to repentance; and that is what the time for throwing stones or picking them up means, as they are thrown in the law, but picked up in the Gospel (JERÔNIMO, 2012, p. 57).

No entanto, há momentos em que ele usa o próprio AT para buscar o sentido espiritual. Assim, o tempo de abraçar ou não (Ec 3.5) é interpretado a partir de Provérbios 4.8:

However, if we wish to rise to the higher sense, we shall see that wisdom embraces those who love it—“Honor her,” he says, “and she shall embrace you” […] Further, the human mind cannot always be aiming at the sublime and thinking of higher, divine things, nor be constantly in contemplation of the heavenly, but must sometimes allow for physical needs; that is why there is a time to embrace wisdom and to hold her more tightly, and a time to relax the mind from the contemplation and embrace of wisdom, so that we may attend to the care of our bodies and to the necessities of our life, short of sin (JERÔNIMO, 2012, p. 58).

Curiosamente, Jerônimo não relaciona a sabedoria à Cristo, com base em Provérbios 8 (o que seria comum à época), ou mesmo de 1Coríntios 1.24. Ou ainda como fez em seguida: “the greater help is that of Wisdom—that is, of our Lord Jesus Christ” (JERÔNIMO, 2012, p. 59). Ainda assim, não parece que Jerônimo faça um uso indiscriminado da alegoria. Voltando para Eclesiastes 3.5, poderia mesmo ser indevido dizer que há momentos em que se deve deixar a pessoa de Cristo e outros em que se deva se voltar a ele, como parte da rotina cristã. Então, Jerônimo aplica Eclesiastes 3.5 a vida devocional e sua contradição (na perspectiva de Jerônimo) das demandas da vida física.

Desta forma, Jerônimo parece muitas vezes ignorar completamente o sentido que a passagem teria para os primeiros leitores, utilizando-se dela de maneira contraditória em relação à leitura mais óbvia de uma passagem. Assim, parece que os leitores originais de Isaías 6 deveriam esperar até o advento de Cristo, para poderem compreender a perícope. Pois o único sentido espiritual, e, portanto, proveitoso, seria esse. Da mesma forma, é de se perguntar: como Jerônimo interpretaria a citação de Eclesiastes, caso os pelagianos nunca tivessem surgido? Ou o texto de Amós, se Eustochium fosse uma mulher casada? Embora questões como estas fiquem sem resposta, é claro que o sentido literal de outra perícope poderia ser usada, caso o sentido literal fosse visto como tão válido quanto o espiritual.

No entanto, seria impróprio não considerar a revelação plena das Escrituras como uma referência mesmo ao sentido literal. Pois uma vez que se considere o sentido literal, ou mesmo o “claro” (como na Reforma), este sempre será coerente com o todo da Escritura. Assim, a exegese é enriquecida, quando uma passagem é interpretada e confrontada tendo em vista outras que contenham contextos ou temas semelhantes.

Conclusão

Podemos concluir que Jerônimo contribui com um propósito para a alegoria: tanto defender a unidade da revelação contra as heresias que a deturpam, quanto aplicar textos antigos a leitores recentes. Nisso, ele se coloca como parte de uma comunidade hermenêutica. No entanto, sua limitação maior é a de diminuir as possibilidades de interpretação e aplicação do sentido literal, sobretudo aos primeiros leitores do AT.

Certamente, o uso da alegoria por Jerônimo leva a um esvaziamento do sentido literal. Isto mostra que na abordagem alegórica um aspecto desvantajoso em comparação às abordagens mais atuais como o método histórico-gramatical e às abordagens críticas. No entanto, há alguns princípios subjacentes à abordagem de Jerônimo que ainda devem ser considerados hoje: a unidade das Escrituras, a progressão da revelação, a sã doutrina e a importância de se procurar aplicações e implicações de uma passagem para as necessidades dos interlocutores.

De fato, a alegoria não é a melhor abordagem hermenêutica na maioria das passagens, devido, sobretudo, ao gênero literário das mesmas. Contudo ler uma perícope a partir de uma revelação plena e respeitando seu progresso ao longo das Escrituras foi uma postura utilizada tanto para se defender a sã doutrina, quanto para se aplicar as Escrituras interlocutores “contemporâneos”. Certamente, esse mesmo cuidado deveria nortear o estudo e a exposição bíblica em todas as épocas. Pois “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17, ARA).

Por isso, se a alegoria não for a abordagem mais adequada ao texto em questão, ainda assim a unidade das Escrituras, a sã doutrina, a progressão da revelação e a finalidade das Escrituras na vida do cristão devem ser princípios hermenêuticos subjacentes a toda prática exegética em quaisquer épocas e contextos.

Finalmente, seria interessante analisar outras práticas hermenêuticas dos Ocidentais. Nem todos eles recorreram à alegoria. De modo que alguns como Pelágio a evitaram completamente. Enquanto outros seguiram a tipologia ou trabalharam com a alegoria de modo diferente (como Ticônio e Ambrosiastro). E ainda houve aqueles que associaram a alegoria a outras abordagens que valorizavam mais o uso da razão e o sentido literal, como foi o caso de Agostinho. Certamente, essa riqueza de proposições pode tanto mostras as tendências da época, como também trazer mais elementos para moldar a hermenêutica e exegese contemporâneas.

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Referências bibliográficas

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Wilken, R.L.; Christman, A.R., Hollerich, M.J., orgs. Isaiah: Interpreted by Early Christian and Medieval Commentators. Tradução R.L. Wilken, A.R. Christman, e M.J. Hollerich (Grand Rapids; Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company, 2007), The Church’s Bible.

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