Terror em Paris
Já faz 10 dias. Eu, minha esposa e filhas (3 e 1) passamos parte da noite do dia 13 em Chatêlet, a área mais movimentada da cidade. Assim que entramos em casa, recebemos telefonemas de familiares procurando saber se estávamos bem. Ligamos a TV para nos depararmos com mais um cenário apocalíptico em plena Paris… flashback do Charlie Hebdo. Recorrência suficientemente recente para gerar um misto de sentimentos confusos que haviam se tornado raros desde que deixamos, há cinco anos, o Rio de Janeiro. Neste campo missionário de primeiro mundo, já estávamos nos acostumando a enfrentar as sutis, camufladas e ardilosas atuações malignas quando o terror resolveu escancarar as trevas da Cidade Luz.
Os lugares são aprazíveis, seguros, e especialmente corriqueiros para a população local: um jogo da seleção nacional, os terraços dos cafés, uma casa de show, viraram cenários de atentados realizados por sete pessoas que em apenas um ato de terror superaram a média anual de assassinatos de uma das capitais mais seguras do mundo: 130 mortes em poucas horas contra uma média de 90 casos de homicídios dolosos por ano (compare com taxa dos aproximados 5.000 no Rio de Janeiro).
Há uma infeliz vantagem para nós brasileiros em absorvermos tais impactos com certa frieza gerada pela força de um terrível hábito. Isso se dá especialmente para quem via de perto a violência e seus resultados, talvez pelo envolvimento com ministérios ou ONGs que se engajam diretamente com o problema – em meu caso, no Brasil. A dor da perda dos inocentes e a revolta contra a injustiça permanecem as mesmas. A diferença em relação ao que me deparo hoje é que a ameaça atual é bem menos previsível ou controlável: Não está localizada, não adianta pegar a Av. Niemeyer ou contornar o Capão Limpo; o inimigo não me poupará em troca de um Iphone; nem ao menos teme ele perder sua vida. A frustração aumenta ao ver o desespero estampado no rosto de uma população em nada acostumada com a violência armada – mesmo os médicos que receberam as vítimas reconheceram seu despreparo para tratar os feridos à bala.
Apenas 10 minutos em um metrô é o tempo que você leva para ir do Bataclan ao Théatre du Gymnase, onde nossa igreja se reúne. Recebemos um telefonema da polícia local oferecendo proteção para o culto de domingo, mas o estado de urgência não permitiu que o local abrisse suas portas. Fomos hospedados por uma igreja parceira que gentilmente nos convidou a congregar com eles.
Sou ministro do evangelho, e descobri que aquilo que não deveria me surpreender ainda assim me choca. O Senhor descreveu com clareza que eventos como esse aconteceriam, mas ser confrontado de forma tão explícita com tamanha exposição ao perigo, tão elevado nível de maldade e a dor da perda de muitos nos deixa atordoado. Como interpretar os tempos? Como instruir o povo de Deus? Como consolar pessoas no mais profundo luto e pânico? Qual resposta espera de sua Igreja? Joelhos dobrados e, antes de tudo, pregação do evangelho ao próprio coração: Ele reina, Ele consola, Ele julga com justiça, Ele converte o mal em bem, Ele transforma trevas em luz. Seu caráter precede suas ações e Ele não se esconde diante do sofrimento aparentemente injusto. Antes, Ele “justifica a si mesmo num mundo sofredor” (John Stott) da forma mais explícita e evidente expondo seu único Filho, o Justo, num madeiro no alto de uma montanha.
A dor
Enquanto busco em oração que mensagem trazer da parte de Deus, notícias do perigo e da dor se aproximam. Hannah, uma amiga da família que estava num café ao lado do Bataclan conseguiu se refugiar na casa de um conhecido; o namorado de uma colega de trabalho de minha esposa escapou de dentro da boite e tentou suas possibilidades sob tiros. Muitos outros não tiveram a mesma sorte. O cantor da banda que tocava naquela noite conta que um menino se salvou se escondendo sob sua jaqueta e relata que uma das coisas mais impressionantes para ele foi ver que muitos morreram para não abandonar amigos feridos. Recebo no celular uma mensagem de Céline, irmã de nossa igreja, pedindo oração pelo órfão Louis, de apenas 5 anos, sobrevivente do Bataclan. Ela tem uma amiga em comum com Elsa, a mãe que se fez de escudo para proteger o filho e não resistiu aos ferimentos. Patricia, avó de Louis, também foi morta no local. O pastor Gustavo revela a dor de um amigo, Lohan, que perdeu a esposa, 11 anos juntos e recém-casados há 3 meses. Antoine intercede pela família de dois colegas de trabalho mortos no mesmo local. Fica clara qual deve ser a primeira e mais espontânea reação da Igreja, a solidariedade, chorar com os que choram e oferecer um consolo substancial.
Consolo
Falo sobre consolo substancial, porque por mais que admire e reconheça a legitimidade de toda a solidariedade mundial dirigida a Paris, sinto um profundo pesar pelos enlutados que vão se contentar com a vacuidade de certas expressões. O sofrimento é um choque de realidade. Ele torna evidente a inutilidade e a inviabilidade da vida humana num universo cético a um Deus pessoal. A desordem social também tira do esconderijo a desordem existencial. O terror arranca a máscara que suprime as demandas humanas mais autênticas: justiça, proteção, significado, amor, consolo… De repente, mesmo na cultura mais relativista, todo mundo volta a concordar com alguns absolutos e dão enormes saltos de fé completamente incoerentes com sua visão de mundo cínica e cética. De uma hora para outra, multidões estão “Praying for Paris” [orando por Paris] a um deus inexistente ou desconhecido. Mesmo os mais resistentes a “saírem do armário” prometem enviar “energias positivas”.
Falo de consolo substancial porque conheço de primeira mão um Deus pessoal e todo-poderoso. Vida de missionário não é fácil em lugar nenhum, nem em Paris. É quarta-feira e minha esposa está entrando na sala de cirurgia. Tem apenas 29 anos, mas sofre de arritmia cardíaca. Vinha apresentando uma crise incomum nos últimos dias antes dos atentados. Na sexta-feira ela se preparava para ir ao hospital quando os ataques ocorreram. Fora de questão sairmos de casa. Nos próximos dois dias não haverá atendimento. Terror dentro e fora de casa. Olho no meu celular as mensagens que estamos recebendo de amigos e familiares. Há uma diferença infinita de conforto entre um: “estamos enviando pensamentos positivos e ondas de amor”, e um simples: “estaremos em oração” da boca daqueles que conhecem o Rei do Universo. Misericórdia é o que passo a sentir pela maioria dos enlutados que não contarão com o consolo do segundo tipo de mensagem, se o evangelho não lhes for anunciado. Que eficácia de consolação possui uma energia impessoal, destituída de afeições, aleatória e caótica? Oro para que o Espírito Santo faça a eles como faz comigo, enxugando minhas lágrimas e trazendo esperança e segurança. Permaneço com um Deus que conhece por experiência própria o sofrimento humano e se afeiçoa misericordiosamente por ele em sua dor. A cirurgia de minha esposa correu bem e sua saúde foi restaurada.
As medidas
As medidas imediatas de socorro social são coisa de primeiro mundo. Vítimas e seus familiares são cuidados física e psicologicamente de forma intensiva e reservada – a imprensa daqui respeita a privacidade das pessoas. A mobilização das forças de segurança na cidade é surpreendente. Já na terça feira o noticiário anunciava a retomada do “Metro, boulot… deuil” – o moto da rotina parisiense substituiu seu último elemento, “dodo”, por “deuil” (luto). Afinal de contas quem consegue dormir? A ferida ainda está aberta, mas o Coq francês não está disposto a desinchar o peito. O repórter pergunta sobre a coragem dos primeiros a usarem o metrô. Resposta: “Estamos ‘au de la de la peur’ (além do medo) – “se pararmos nossas vidas por causa do medo, então eles venceram”. Postura sensata, expressão de orgulho ou falta de opção? Seja como for, poucos dias depois um discurso semelhante seria ecoado pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, para confirmar sua presença – e encorajar o mesmo da parte dos demais líderes – na COP21 a ser realizada em Paris no dia 30 de novembro. A pauta original é ecológica, mas ninguém duvida que o tópico segurança mundial roubará a cena face ao inimigo comum.
A França adota uma postura de reação muito mais firme do que de costume e um pouco menos romântica quanto a presença do Islã em seu território. Com exceção de um, todos os envolvidos nos atentados são neutralizados com sucesso. Reforço do controle de fronteiras – suspeita-se que um dos homens-bomba que morreu no Estade de France teria se infiltrado como refugiado pela Grécia. Supervisão dos sacerdotes atuantes nas mesquitas francesas. Proposta de criação de um centro de restauração para jovens muçulmanos que tenham sofrido influência extremista. Fala-se sobre o uso de pulseiras com chips para rastreamento contínuo de suspeitos de ligação com o Exército Islâmico – alguns dos terroristas do dia 13 já haviam sido fichados por isso. Discussão sobre a possibilidade dos policiais franceses portarem armas mesmo após o expediente – violência armada era raro até então.
Dois dias após os atentados passei por um policial que conversava com um cidadão e a exata frase que consegui captar foi: “Maintenant c’est la Guerre” (agora é a guerra). A Coalizão Internacional ganhou força, a França se engaja na luta de forma mais ostensiva. Novos ataques militares são realizados na Síria e até a Rússia se compromete a se apoiar aos ataques contra “Daech”. O presidente François Hollande menciona a importância de nos prepararmos para todo tipo de represália da parte de um inimigo imprevisível; ele fala que o inimigo pode recorrer até mesmo às armas químicas. A ênfase alarmista ajuda a justificar as medidas militares que finalmente parecem agradar a maioria do povo francês.
Terrenos férteis ao terrorismo
Falo “parecem agradar a maioria” porque a democracia francesa está ideologicamente minada. Dificilmente a voz da maioria se expressa de maneira tão evidente quanto as das minorias privilegiadas pelos veículos de massa. Porém, desde o atentado do Charlie Hebdo ficou clara a crise de identidade do povo francês. Como preservar uma cultura se permitimos que ela caminhe a passos largos para a diluição de seus valores e de sua História? Capas de jornais e revistas colocavam em questão qual seria a verdadeira insígnia atual. Uma delas trocava “Liberté, Égalité, Fraternité” por “Égalité, Égalité, Égalité”, demonstrando como o pensamento predominante é o do “Antirracismo como Ideologia de Estado”. Dados mostram que uma fábrica de acusações de “racismos” infundados está em constante produção para que suas pautas sejam legitimadas. O Estado é levado a governar segundo as minorias, pois a maioria se vê constantemente ameaçada pelo estigma racista caso manifeste sua opinião.
Na TV um filósofo progressista propõe que a França deveria ver os atentados como efeitos colaterais necessários de uma mais evoluída ou pelo menos mais correta sociedade que viria a emergir da mistura das minorias em seu território. As palavras-chave são as de costume (em suas versões distorcidas, é claro): tolerância, laicidade, igualdade. A ideia é de que o correto é a assimilação do diferente às expensas de qualquer julgamento moral. O filósofo sugere que as vítimas deveriam ser encaradas como mártires de uma boa causa e que a adoção de medidas severas demais em relação aos imigrantes seria nociva ao ideal. Duvido que a maioria das vítimas do Bataclan e seus familiares concordem com seu pensamento. De fato, vozes como essas se tornaram escassas nos últimos dias. Uma população literalmente aterrorizada prefere ouvir os militares. O povo cobra medidas preventivas. Fica evidente que esta política tem se tornado solo fértil para o terrorismo. De qualquer maneira o presidente ainda precisa ser mais claro quanto a esta questão.
Em geral esta postura francesa tornaria vulnerável qualquer sociedade, mas ela é especialmente ingênua do ponto de vista do povo muçulmano. Não falo simplesmente do extremista, mas de um povo de identidade altamente definida, com valores cristalizados e em nada dispostos à miscigenação cultural. Eles têm sido por décadas recebidos por uma nação que está hoje em plena crise de identidade. Diz-se que alguns povos do oriente já consideram a França um país muçulmano. Cinco dias antes dos atentados, John Piper escreveu em seu facebook: “Menos de 5% dos cristãos na França são praticantes. Mais de 9% da França é muçulmana. Há mais muçulmanos ativos na França do que cristãos”.
Entendo o silêncio do presidente Hollande. A maioria dos muçulmanos daqui são gente de bem, trabalhadores, pessoas de família. De vez em quando jogo bola com alguns deles. Temo que sejam discriminados pelos atos de uma minoria extremista. Preciso ser prudente e simples como a pomba. Mas não negligencio o fato de que há real campo fértil no terreno da ideologia muçulmana para o terror. Me chocou quando a torcida da Turquia, considerada uma das mais moderadas nações muçulmanas, no jogo contra a Grécia, rompeu o minuto de silêncio em consideração às vítimas de Paris com o grito: “Allahu Akbar” (Alá é grande).
Nenhuma religião ou filosofia deve ser julgada pelos atos dos que se dizem seus representantes. Supostos representantes de diferentes ideologias mancharam a História sejam elas religiosas ou ateístas. Ideologias devem ser julgadas pelo seu código de conduta. Pela sua base de crença ou autoridade (o pensamento sistematizado de um filósofo, Bíblia, Corão, etc.). É aqui que não podemos ser ingênuos quanto ao Islã. A maioria de seus seguidores não praticam à risca sua fé, mas não é difícil encontrar catalisadores para o terrorismo dentro do Corão. Creio que as autoridades francesas devem libertar-se da ingenuidade da pressuposição de que toda religião é perfeitamente boa em si, e serem mais prudentes no trato de seu sistema de valores.
O papel da igreja
Mesmo indicando a inevitabilidade e a necessidade dos sinais apocalípticos, três mandamentos se destacam quando, em Marcos 13, Jesus descreve detalhadamente o final dos tempos. Primeiro ele nos ordena a vigiar, ou a permanecer em guarda. Isso significa que a Igreja deve tomar medidas de proteção, orar pela paz, alertar o povo quanto ao perigo e instruir sobre a defesa. Isso passa pela não ingenuidade quanto a um inimigo real, e pela compreensão da legitimidade da ação militar do Estado, quando necessária, pois a ele foi dada a espada.
Em segundo lugar ele diz para não termos medo. Isso significa que mesmo em meio ao vale da sombra da morte é realmente possível não temer mal algum. Passa por colocar a fé em ação. Passa pela confiança na atuação de Deus aqui e agora, mas também na suficiência e excelência da vida vindoura. É preciso lutar contra as circunstâncias, contra a mentalidade da maioria, e contra as vozes do maligno que se aproveitam de situações de terror para lançar setas contra a justiça, o poder e as boas intenções de Deus. É questão de ter mais intimidade com Deus, sua Palavra, seu poder e seu amor, do que com as vozes do desespero. É a visão de Isaías: quando o rei morreu e o povo se desesperou sem saber o que fazer, o profeta teve a visão do trono firme e permanente de Deus. A melhor forma de aumentar a fé não é procurando ampliar sua intensidade, mas focando na grandeza de seu objeto.
A terceira ordem de Jesus é: pregue o evangelho. Nestes dias nada se torna mais desejado do que o retorno de Cristo. Famílias inconsoláveis anseiam por alento e justiça. É necessário que estas coisas aconteçam, mas o retorno de nosso Senhor só se dará quando todas as nações forem alcançadas. A nós nos foi dada a tarefa de, em paz, semear a paz. A igreja precisa entender e apoiar o papel do Estado, mas também precisa reconhecer sua profunda limitação. A sociedade, através de recursos naturais, consegue no máximo tratar os sintomas, mas jamais a causa da maldade. À igreja foi dada uma tarefa exclusiva e ela precisa estar em seu posto. Somente o evangelho é capaz de libertar o ser humano da cegueira espiritual na qual se encontra. Amemos nossos inimigos, oremos pelos que nos perseguem e preguemos a eles as Boas Novas. Ouvi alguém dizer que sem Estevão não haveria Paulo. Muitos “Saulos” podem se estar agora nas frentes jihadistas.
Recebemos conselhos de amigos e familiares para retornarmos à relativa segurança de nosso Brasil. Mas de uma forma misteriosa o Espírito Santo tem fortalecido ainda mais nossa convicção sobre a relevância do que estamos fazendo por aqui. Conto com suas orações por um avivamento na França. A maior crueldade é lançar miríades de pessoas “precocemente” na eternidade sem terem se preparado para ela. A maior indolência é viver como se não fossemos morrer. E o oposto do terrorismo é o avivamento concedido misericordiosamente por Deus a uma sociedade que necessita dele.
Fant stica as colocaçäes!!!! Uma an lise profunda sem tendências ou exageros para ambos os lados .
também me chama atenção o chamado mission rio verdadeiro,onde independente das circunstâncias, sabe onde deposito esperanças e forças.
Que Deus possa abencoa los e protege los em todo tempo ‚ a minha oração.
Excelente reflexão
Estamos orando…