O problema que enfrentamos
Qual justiça? Nunca houve pedidos mais intensos por justiça do que aqueles que estamos ouvindo hoje. Mas raramente as pessoas que pedem justiça reconhecem que atualmente existem visões concorrentes de justiça, muitas vezes em acentuada variação, e que nenhuma delas alcançou um consenso cultural, nem mesmo em um único país como os Estados Unidos. Supor que todos adotarão sua visão de justiça (ao invés de alguma outra) simplesmente porque você está dizendo, é ser excessivamente confiante.
Justiça bíblica. Na Bíblia, os cristãos têm um entendimento antigo, rico, robusto, abrangente, complexo e atraente de justiça. A justiça bíblica difere de maneira significativa de todas as alternativas seculares, sem ignorar as preocupações de nenhuma delas. No entanto, os cristãos sabem pouco sobre a justiça bíblica, apesar de seu destaque nas Escrituras. Essa ignorância está gerando dois efeitos. Primeiro, grandes faixas da igreja ainda não veem o ato de “fazer justiça” como parte de seu chamado como crentes individuais. Segundo, muitos cristãos mais jovens, reconhecendo esse fracasso da igreja e desejando corrigir as coisas, estão adotando uma ou outra das abordagens seculares de justiça, o que introduz distorções em suas práticas e vidas.
A história da justiça
As tradições. Ninguém fez um melhor trabalho em termos de explicação de nossa situação atual sobre a justiça do que Alasdair MacIntyre, principalmente em seu livro Whose Justice? Which Rationality?[1] MacIntyre mostra que por trás de todo entendimento de justiça há um conjunto de crenças filosóficas sobre (a) natureza e propósito humanos (b) moralidade e (c) racionalidade prática — ou seja, como conhecemos as coisas e justificamos as verdadeiras crenças. Em seu livro, ele traça quatro tradições históricas básicas de justiça. Há a tradição clássica (de Homero a Aristóteles), a bíblica (de Agostinho a Tomás de Aquino, que incorporou parte das ideias de Aristóteles) e a iluminista (principalmente Locke, Kant e Hume) — que preparou o terreno para a abordagem liberal moderna, a qual se fragmentou em várias visões concorrentes que lutam entre si em nossos dias.
Os primeiros pensadores do Iluminismo buscavam uma base para a moralidade e a justiça não em Deus ou na religião, mas em uma base que pudesse ser descoberta apenas pela razão humana.[2] David Hume não acreditava que isso fosse possível. Ele argumentou que não existem normas morais ou absolutos fora de nós que devemos obedecer, independentemente do que pensamos ou sentimos e que, portanto, não podemos descobri-los pela razão. Em vez disso, ele ensinou que a única base para nossas decisões morais não era a razão, mas o sentimento — intuições morais fundamentadas em grande parte em nossas emoções e não em nosso pensamento. Hume “venceu” e hoje seus sucessores têm levado suas ideias à conclusão lógica de que todas as reivindicações morais são construtos sociais e, portanto, baseadas em nossos sentimentos e preferências, e não em nada que seja objetivo.[3] [4]
O fracasso do projeto iluminista. MacIntyre, no entanto, mostra como isso é problemático. O consenso social sobre moralidade e justiça que os pensadores iluministas acreditavam que poderiam alcançar deixando a religião para trás não foi concretizado, e MacIntyre explica o porquê. Em sua famosa ilustração do relógio de pulso, ele mostra que é impossível determinarmos se um relógio é “bom” ou “ruim”, a menos que saibamos qual é o propósito dele. Seu propósito é martelar pregos ou nos dizer a hora?[5] Sem conhecer o telos ou o objetivo do relógio, é impossível fazermos qualquer avaliação.
Da mesma forma, a menos que saibamos qual é o propósito dos seres humanos, nunca chegaremos a um acordo sobre o que constitui um bom e um mau comportamento e, consequentemente, sobre o que constitui justiça. Na visão secular, os seres humanos estão aqui por acaso. Não estamos aqui para nenhum propósito. Mas, se for esse o caso, não há uma boa maneira de argumentar coerentemente sobre premissas e crenças seculares relacionadas ao mundo de que qualquer comportamento em particular é errado e injusto. Nesse caso, os direitos humanos não se baseiam em nada além do que algumas pessoas sentem que são importantes. Entretanto, nem todo mundo possui o mesmo sentimento. O que você diz às pessoas que não acreditam e não honram os direitos humanos? Por que os seus sentimentos devem ter precedência sobre os de outra pessoa? Depois de David Hume, nenhuma teoria moderna da justiça tem outra resposta para isso a não ser dizer: “porque nós dizemos que é assim que funciona”.
O problema das fundações
Muitos secularistas reagem a MacIntyre dizendo que não precisamos de nenhuma base para os direitos humanos, pois “todo mundo sabe” que cuidar dos direitos dos outros é apenas “senso comum”. Abaixo há um trecho de uma entrevista dialogal (levemente editada por mim) entre Christian Smith, autor de Atheist Overreach, e um ateu em um podcast chamado “Life After God”.
Smith: Há uma diferença entre ter um instinto de que é errado deixar as pessoas passarem fome sem ajudá-las; outra coisa é insistir que devemos fazer os sacrifícios necessários (que geralmente são enormes) para evitar o sofrimento. Se um povo diz: “[Por que devemos ajudar os outros?] O que acontece além de nossas fronteiras não é problema nosso” — o que um secularista diz a eles?
O padrão não é “temos um regime para forçar as pessoas a se sacrificarem pelas outras?”, mas, sim, se temos uma base para persuadir um cético razoável que pergunta “por que devo me preocupar com eles?”. Além de ter uma lógica explicativa sobre o porquê é errado deixar pessoas passarem fome, você teria também uma motivação legítima para que elas sejam motivadas a fazer os sacrifícios necessários para ajudá-las? Sem os dois, não se pode ter um conjunto de valores morais em uma sociedade. E se você é [estritamente secular], não acho que os tenha. Não estou dizendo que os ateus não podem escolher ser bons, mas quando o fazem, é uma preferência subjetiva arbitrária, não uma visão racionalmente fundamentada que tem poder persuasivo sobre as outras pessoas.
Ateu: Isso não faz sentido para mim. Eu só acho que, como as pessoas são seres humanos, elas devem ser tratadas com justiça. Sei como é ser tratado com bondade e maldade. Sei que os outros se sentem da mesma maneira, então quero tratá-los com dignidade e respeito porque é isso que eu gostaria. Não tenho uma fonte objetiva para a dignidade das pessoas — ela se baseia no fato de que eu gostaria de ser tratado dessa maneira. Por que isso não é atraente para um cético razoável? Por que preciso de mais razão/justificativa do que isso? Parece senso comum.
Smith: Eu não acho que isso seja um raciocínio lógico. Isso não é um argumento, mas uma sensibilidade. E esse tipo de sensibilidade (sobre amor e direitos humanos) está nas correntes contínuas de alguns milênios de uma herança cultural que é poderosamente influenciada pelo cristianismo e pelo judaísmo. É isso que permite que esses ideais façam sentido para você. Se há algo com o qual me preocupo é isso. Esses ideais morais de amar o próximo e de honrar seus direitos humanos, independentemente de quem sejam ou de onde estão fazem sentido para nós agora. Mas se eles são (como eu acho que pode ser demonstrado) baseados na herança cultural da religião [baseada na visão de mundo que nossa cultura costumava ter], será que esses ideais morais farão sentido para os nossos netos, na medida em que a religião continue em declínio? Será que eles simplesmente não irão perguntar: “Claro que me importo com o meu não-sofrimento, mas por que devo me preocupar com o não-sofrimento de outra pessoa?” O secularismo não tem uma boa resposta para essa pergunta.
O ateu está dizendo a Smith que é apenas senso comum ou racional dizer: “Quero ser tratado desta maneira, portanto, eu deveria tratar os outros dessa maneira.” Smith diz que isso não é um raciocínio lógico. Você pode achar que a regra de ouro está certa, mas por que alguém deveria se sentir da mesma maneira que você?
Um breve esboço da justiça bíblica
Para comparar a justiça bíblica com as alternativas seculares, apresentamos um breve esboço das facetas da justiça bíblica.[6]
1. Comunidade: outras pessoas têm direito à minha riqueza, então devo dar voluntariamente
A Bíblia descreve o mundo humano como uma comunidade profundamente inter-relacionada. Portanto, as pessoas piedosas devem viver de tal maneira que a comunidade seja fortalecida. Bruce Waltke, erudito na área de Antigo Testamento, coloca todos os ensinamentos sobre “os justos” no livro de Provérbios em um princípio conciso e prático: “Os justos (saddiq) estão dispostos a se prejudicar a fim de beneficiar a comunidade; os ímpios estão dispostos a prejudicar a comunidade a fim de se beneficiarem”.[7] As leis da colheita no Antigo Testamento são um exemplo disso (Deuteronômio 24.17-22). Os proprietários de terras eram ordenados a não maximizarem os lucros, não devendo colher todos os molhos, azeitonas ou uvas. Em vez disso, o proprietário deveria deixar produtos no campo para que os trabalhadores e os pobres colhessem pelo seu trabalho, e não por um ato de caridade. Quando o texto diz que os molhos, as azeitonas e as uvas “serão para” os pobres, ele usa um termo hebraico que indica propriedade. Tratar todos os seus lucros e ativos de maneira individualista é um erro. Tendo em vista que Deus possui toda a sua riqueza (você é apenas um administrador dela), a comunidade tem algum direito sobre ela. No entanto, essa riqueza não deve ser confiscada. Você deve reconhecer o direito e, de maneira voluntária, ser radicalmente generoso. Essa visão de propriedade não se ajusta bem com uma economia capitalista ou socialista.[8]
2. Equidade: todos devem ser tratados de forma igual e com dignidade
Levítico 24.22: “Tereis a mesma lei tanto para o estrangeiro como para o natural.” A palavra hebraica mesraim significa equidade e Isaías 33.15 diz: “o que fala com retidão [equidade, mesraim]; o que rejeita o ganho de subornos”. O suborno é injusto porque, no comércio, na lei e no governo, não trata os pobres da mesma forma que os ricos. Qualquer sistema judicial ou governo em que as decisões ou os resultados sejam determinados pela quantidade de dinheiro que os partidos têm, cheira mal perante Deus. Outro exemplo de desigualdade são as práticas comerciais desleais. Levítico 19.13 e Deuteronômio 24.14-15 falam de salários injustos. Amós 8.5-6 fala de “balanças enganosas, vendendo até o refugo do trigo”. Economizar e fornecer um produto inferior para ganhar mais dinheiro, mas não atender aos clientes, é fazer injustiça.
3. Responsabilidade corporativa: às vezes sou responsável e envolvido nos pecados de outras pessoas
Às vezes, Deus responsabiliza famílias, grupos e nações pelos pecados dos indivíduos. Daniel se arrepende dos pecados cometidos por seus antepassados, embora não haja evidências de que ele tenha participado pessoalmente deles (Daniel 9). Em 2Samuel 21, Deus considera Israel responsável pelas injustiças cometidas aos gibeonitas pelo rei Saul, mesmo estando morto naquele tempo. Em Josué 7 e Números 16, Deus considera famílias inteiras responsáveis pelo pecado de um membro. Em 1Samuel 15.2 e Deuteronômio 23.3-8, Deus considera os membros da geração atual de uma nação pagã responsáveis pelos pecados cometidos por seus ancestrais muitas gerações antes. Por quê? Há três razões.
Responsabilidade corporativa. A família de Acã (Josué 7) não roubou, mas eles o ajudaram a se tornar o tipo de homem que roubaria. A ênfase da Bíblia na importância da família para a formação do caráter implica que o resto da família não pode evitar totalmente a responsabilidade pelo comportamento de um de seus membros.
Participação corporativa. Ações pecaminosas moldam não apenas nós, mas também as pessoas ao nosso redor. E quando pecamos, afetamos aqueles ao nosso redor, o que reproduz padrões pecaminosos — ainda que mais sutis — ao longo de gerações. Assim, do mesmo modo como em Êxodo 20.5, Deus pune o pecado pelas gerações porque geralmente as gerações posteriores participam de uma forma ou de outra no mesmo pecado.[9]
Pecado institucionalizado. Os modos de vida socialmente institucionalizados são pesados em favor dos poderosos e opressores em detrimento dos que têm menos poder. Podemos citar como exemplos sistemas de justiça criminal (Levítico 19.15), práticas comerciais como empréstimos com juros altos (Êxodo 22.25-27; Jeremias 22.13) e salários injustamente baixos (Tiago 5.4) ou atrasados (Deuteronômio 24.14-15). Uma vez implantados, esses sistemas fazem mais mal do que qualquer pessoa dentro do sistema possa pretender ou mesmo estar ciente.
4. Responsabilidade individual: sou definitivamente responsável por todos os meus pecados, mas não por todos os meus resultados
Meus resultados. A Bíblia não ensina que seu sucesso ou fracasso se deve inteiramente a escolhas individuais. A pobreza, por exemplo, pode ser provocada por falhas pessoais (Provérbios 6.6-7; 23.21), mas também pode existir por causa de fatores ambientais, como fome ou praga, ou pura injustiça (Provérbios 13.23[10]; cf. Êxodo 22.21-27). Portanto, não estamos no controle completo de nossos resultados de vida.
Meus pecados. Apesar da realidade da responsabilidade corporativa e do mal, a Bíblia insiste que, em última análise, nossa salvação está no que fazemos como indivíduos (Ezequiel 18). Existe um equilíbrio assimétrico entre responsabilidade individual e corporativa. Deuteronômio 24.16 diz que, na lei humana comum, devemos ser responsabilizados e punidos por nossos próprios pecados, não pelos pecados de nossos pais. De fato, somos o produto de nossas comunidades, mas não totalmente, pois podemos resistir a seus padrões. Ezequiel 18 é um estudo de caso do que pode acontecer se colocarmos muita ênfase na responsabilidade corporativa: ela conduz ao “fatalismo e à irresponsabilidade”[11]. A realidade do pecado corporativo não absorve a responsabilidade moral individual, nem nega a realidade do mal corporativo. Negar isso (ou negar amplamente isso) é adotar uma das visões seculares de justiça, e não uma visão bíblica.[12]
5. Defesa de direitos: devemos ter uma preocupação especial com os pobres e os marginalizados
Embora não devamos mostrar parcialidade a ninguém (Levítico 19.15), devemos ter especial preocupação pelos impotentes (Isaías 1.17; Salmo 41.1). Isso não é uma contradição. Provérbios 31.8-9 diz: “abre tua boca em favor do mudo, em favor do direito de todos os desamparados”. A Bíblia não diz “fale pelos ricos e poderosos” — não porque eles são menos importantes como pessoas diante de Deus, mas porque eles não precisam que você faça isso. As condições não são iguais e, se não advogarmos pelos pobres, não haverá igualdade. Nesse aspecto de justiça, procuramos dar mais capital social, financeiro e cultural (poder) às pessoas com menos.
Jeremias 22.3 diz: “livrai da mão do opressor aquele que está sendo explorado por ele […] estrangeiros, órfãos ou viúvas.” Jeremias está destacando grupos de proteção de pessoas que não podem se proteger dos maus-tratos da maneira como os outros. (cf. Zacarias 7.9-10).
O espectro das teorias da justiça
Ao delinear brevemente as descrições alternativas de justiça que operam em nossa cultura, é inevitável cairmos em uma simplificação excessiva.[13] Ainda assim, existe um amplo consenso de que algo próximo às quatro categorias de justiça a seguir operam em nossa cultura.[14]
Todas as teorias desse espectro são seculares, compartilhando duas suposições. (a) Primeiro, diferentemente de Martin Luther King Jr. (veja “Carta de uma Prisão em Birmingham”), todas essas teorias pressupõem que não há absolutos morais transcendentes sobre os quais basear a justiça. Essas teorias acreditam no “quadro imanente” de Taylor[15] de que não existe uma realidade sobrenatural e, portanto, os valores morais e a definição da própria justiça são inventados pelos seres humanos. (b) Todas essas teorias veem a natureza humana como uma tábula rasa que pode ser totalmente remodelada por meios humanos, e não como uma natureza dada por Deus que deve ser honrada para que possamos nos desenvolver.
1. Justiça libertária — “Liberdade”. Uma sociedade justa promove a liberdade individual.
Essa visão, defendida recentemente por Robert Nozick, acredita em um pequeno número de direitos individuais, mas não em titularidades (entitlement theory). As pessoas têm o direito de não ser prejudicadas, têm um direito absoluto à propriedade privada (se for justamente merecido), e aos direitos de liberdade de expressão e livre associação. A primeira maneira de proteger esses direitos é ter um estado pequeno, uma vez que impostos altos são injustos, constituindo uma violação do direito à propriedade privada, e que o estado grande inevitavelmente procura regular o discurso, o pensamento e a associação.
A segunda maneira de proteger esses direitos é ter um mercado livre não regulamentado. A visão libertária é altamente individualista, baseada na suposição implícita de que todo ser humano pertence a si próprio e que os resultados da vida de qualquer pessoa dependem totalmente de suas escolhas e esforços individuais.[16]
Breve análise bíblica:
Primeiro, essa visão nega a complexidade de quem somos, isto é, indivíduos ainda incorporados em comunidades instituídas por Deus (família, estado) e criados à imagem de um Deus que é três em um. A Bíblia equilibra a liberdade individual com a obrigação de comunidade. Diferentemente da Bíblia, o libertarianismo nega ou menospreza o papel das forças sociais opressoras no que se refere àquilo que torna as pessoas pobres, recusando-se a ver como o pecado cria condições desniveladas de igualdade nas quais a mera liberdade individual não pode remediar.
Segundo, nega a doutrina da universalidade do pecado. Embora o pecado humano esteja em toda parte e corrompa todas as coisas, essa posição enxerga as capacidades más do governo, mas não tanto as capacidades más do mercado de capitais.
Terceiro, tem um entendimento não bíblico de liberdade. O libertarianismo geralmente vê a liberdade em termos totalmente negativos — é a liberdade de algo. Mas fomos criados por Deus para amar a ele e ao próximo, não apenas para interesse próprio e, quanto mais fazemos aquilo para o qual fomos criados, mais livres somos.
Por fim, o entendimento dessa visão acerca dos direitos absolutos sobre a propriedade e sobre o eu não se enquadra na visão bíblica da criação. Tanto nós quanto tudo aquilo que temos pertencem a Deus (não pertencemos a nós mesmos). Tudo o que temos é, em última análise, um presente de Deus e deve ser compartilhado.
2. Justiça liberal — “Equidade”. Uma sociedade justa promove a justiça para todos.
Essa visão, mais recentemente defendida por John Rawls, expande grandemente a ideia de direitos humanos naquilo que os libertários chamariam de titularidades da justiça (entitlement theory).[17] Os liberais também acrescentam os direitos sociais ou “econômicos” (direito a uma educação, à assistência médica) aos direitos de liberdade (direito de expressão, propriedade, religião).[18] A justificativa de Rawls para esses direitos se dá nos seguintes termos: ele argumenta que, se as pessoas tivessem que conceber uma sociedade por trás de um “véu de ignorância” — sem saber onde seriam colocadas (sem saber qual raça, gênero, status social, etc. elas teriam) — todas elas, valendo-se de interesse próprio puro e racional, planejariam uma sociedade em que houvesse medidas legais significativas para redistribuir a riqueza daqueles que nasceram em comunidades pobres e para estabelecer muitos outros direitos econômicos e sociais. Somente esse tipo de sociedade seria justa e racional. Uma vez estabelecido que os direitos econômicos e sociais são válidos, então, na visão liberal, não há necessidade de haver qualquer consenso sobre valores morais na sociedade. Não é necessário que todos concordem sobre o que é o Bem. Em vez disso, honrar os direitos humanos individuais se torna o único padrão moral necessário (e negá-los torna-se o único pecado). Desta forma, as pessoas serão livres para viver suas vidas buscando o que elas acreditam ser o seu bem.
Uma grande diferença da visão libertária é que agora é justo e equitativo que o Estado redistribua a riqueza através de impostos e do controle governamental do mercado. No entanto, Rawls e liberais ainda acreditavam que algum tipo de mercado livre era a melhor maneira de aumentar a riqueza de uma sociedade que então poderia ser compartilhada de maneira justa. A razão pela qual os liberais ainda são basicamente amigáveis ao capitalismo é que, em última análise, essa visão ainda é altamente individualista, dando aos indivíduos liberdade para criar seu próprio “bem”, significado e moralidade. Portanto, o liberalismo ainda não busca resultados iguais, mas oportunidades iguais para os indivíduos alcançarem sua felicidade. Os resultados individuais ainda são vistos como determinados pelos esforços individuais e pela ética do trabalho.
Breve análise bíblica:
Como muitos estudos recentes demonstraram, as crenças do liberalismo nos direitos humanos e no cuidado dos pobres estão fundamentadas no cristianismo.[19] Os eruditos argumentam que essas crenças dependem de uma visão na qual o indivíduo é considerado uma pessoa com dignidade e valor infinitos, bem como de uma visão que entende que todos os indivíduos são iguais, independentemente de raça, gênero e classe. Essa crença surgiu apenas em culturas influenciadas pela Bíblia e marcadas por uma crença em um Deus Criador. Os eruditos também mostram que essas crenças judaico-cristãs não se encaixam na visão secular moderna de que não há absolutos morais e que a humanidade é estritamente o produto da evolução. A conclusão é que essas crenças mais antigas na dignidade humana são essencialmente contrabandeadas para a cultura moderna secular. Isso significa que os cristãos podem concordar com muita coisa nessa teoria da justiça. No entanto, como mostrou MacIntyre, existem contradições e falhas fatais na abordagem do liberalismo.
Primeiro, a liberdade do indivíduo tornou-se um absoluto de facto que veta todas as outras coisas e, diferentemente das sociedades mais tradicionais, as sociedades liberais não conseguiram equilibrar a liberdade individual e a obrigação para com a família e a comunidade. O resultado foi a dissolução de famílias, bairros e instituições. Acontece que, sem um conjunto de valores morais compartilhados (além de um compromisso com a liberdade individual) e sem uma história compartilhada de quem somos corporativamente como pessoas, uma sociedade não pode evitar a fragmentação. Como o liberalismo tem sido a teoria da justiça dominante, o tribalismo atual, a perda sem precedentes de confiança social e o colapso das instituições podem ser vistos como um fracasso do liberalismo. Alguns argumentam que o liberalismo somente “funcionou” em uma sociedade quando a religião permaneceu forte, pois poderia compensar o egoísmo que o individualismo promove e poderia fornecer o senso de solidariedade e comunidade que o individualismo não pode dar. Agora que a religião está em acentuado declínio, esse equilíbrio se foi.[20]
Segundo, se a justiça está apenas honrando direitos individuais e titularidades e não há absolutos morais mais elevados, como podemos nos pronunciar sobre questões quando as reivindicações de direitos entram em conflito e se contradizem (como costuma acontecer)? Outro problema do liberalismo é que as reivindicações de direitos das pessoas muitas vezes se contradizem. O liberalismo não tem como determinar se alguns direitos podem ter precedência sobre outros. Quem vence no debate entre feministas e transgêneros? E com que base? Vence a voz mais barulhenta, quem tem mais dinheiro?
Terceiro, até mesmo os críticos seculares apontam que a racionalidade é uma base insuficiente para uma sociedade justa. Muitos críticos de Rawls observaram que, se sua única motivação é o autointeresse racional, os que estão por trás do “véu da ignorância” ainda não precisariam concordar com titularidades. O número de pobres é uma minoria, e é provável que você não será um deles. Então, por que não se arriscar criando uma sociedade que explora os pobres para desenvolver o restante da sociedade? Por que não optar por isso, contanto que você provavelmente não seja pobre? Explorar os pobres, então, pode definitivamente ser visto como “interesse próprio racional”. Contudo, se os liberais quiserem responder dizendo que explorar os pobres é errado, eles subtraíram seu direito de assim fazê-lo porque negam a existência de absolutos morais. Em uma análise de custo-benefício, quem pode dizer que explorar os pobres não seria mais prático do que não explorá-los? Portanto, não há proteções reais para impedir que uma sociedade liberal se mova em direção à opressão.
Por fim, a insistência por parte dos liberais de que as visões religiosas devem ficar de fora do discurso público é hipócrita. O liberalismo diz aos religiosos que eles não devem argumentar com base em suas crenças de fé, mas que devem apenas se valer da “razão pública” e do “autointeresse racional”. Enquanto isso, o liberalismo contrabandeia as próprias crenças religiosas sobre natureza humana, direitos, sexualidade e muitas outras coisas que são pressupostos da fé, deixadas pelo nosso passado cristão e não pelas libertações da ciência.
3. Justiça utilitarista — “Felicidade”. Uma sociedade justa maximiza a maior felicidade para o maior número de pessoas.
Essa terceira teoria, associada a John Stuart Mill, não é tão influente na jurisprudência formal e, no entanto, sua ideia básica faz muito sentido intuitivo para secularistas. Indiscutivelmente, o utilitarismo domina a maioria dos discursos públicos sobre as políticas públicas e está por trás de muitas reivindicações de justiça individuais. Nesta visão, a essência da justiça é a maior felicidade para o maior número de pessoas. Trata-se de outro esforço para fundamentar a justiça não em absolutos morais, mas em algum tipo de “racionalidade prática”. Se algo faz a maioria das pessoas feliz, é justo. Mas onde estão as proteções? Isso significa que tudo o que a maioria desejar relacionado à felicidade está certo? Os utilitaristas usam o “princípio do dano” para criar os limites. Eles argumentam que as pessoas devem ser livres para buscar tudo o que as façam felizes, desde que isso não prejudique outras pessoas. É óbvio, no entanto, que haverá conflitos inevitáveis sobre o que faz as pessoas felizes e, portanto, o árbitro final para os utilitaristas é a regra da maioria. Atualmente, a mídia baseia-se fortemente no utilitarismo quando argumenta, explícita ou implicitamente, que as pesquisas nos dizem que a maioria dos americanos agora favorece X, e que, portanto, X agora está correto. O utilitarismo não é tão individualista quanto as duas primeiras teorias da justiça, uma vez que ele se dá em bases “majoritárias”. De fato, muitos utilitaristas veem os direitos individuais como barreiras à felicidade da maioria. “Se você acredita em direitos humanos, provavelmente não é um utilitarista”.[21]
Breve análise bíblica:
Primeiro, sem uma doutrina da criação, essa visão não honra os indivíduos como seres detentores de uma dignidade que não deve ser violada. A maioria da população nacional poderia definir sua felicidade de modo que ela só pudesse ser alcançada se uma minoria da população fosse colocada em campos de internamento? Segundo as premissas do utilitarismo, isso poderia ser facilmente discutido (e de fato foi discutido na Alemanha nazista e até nos Estados Unidos em relação aos nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial).
Segundo, sem uma doutrina do pecado, essa visão ingenuamente presume que algo não pode ser mau se faz a maioria das pessoas feliz. Só porque algo faz uma pessoa feliz, isso não significa que é certo fazê-lo. Muitas coisas tolas e cruéis podem nos fazer felizes. Além disso, sem uma compreensão dos seres humanos como almas e corpos, essa visão pressupõe que a “felicidade” pode ser proporcionada fornecendo bens materiais, riquezas e prazeres, quando uma longa sabedoria pelas culturas reconhece que isso é inadequado para a felicidade real.
Por fim, o “princípio do dano” é inútil como guia ou como barreira ao abuso. No momento em que se diz que algo é prejudicial, se está enraizando a afirmação em alguma visão da natureza humana — como os seres humanos devem viver — e em alguma compreensão do certo e do errado. Dizer que algo não prejudica ninguém se baseia em alguma visão da natureza humana e do propósito humano que, em última análise, é uma questão de fé. Os defensores das leis de Jim Crow costumavam usar argumentos utilitários e o princípio do dano, dizendo aos afro-americanos que a segregação não era prejudicial, mas era para o bem deles. Sem nenhum absoluto moral, quem deve dizer o que é bom para uma minoria? A maioria (e não a minoria) começa a defini-lo.
4. Justiça pós-moderna — “Poder”. Uma sociedade justa subverte o poder dos grupos dominantes em favor dos oprimidos.
A quarta teoria da justiça, de certa forma, é a mais nova em cena, embora tenha um pedigree mais antigo. Baseando-se nos ensinamentos de Karl Marx, a chamada teoria crítica pós-moderna surgiu muito recentemente com sua própria explicação de justiça, que é nitidamente distinta das demais.[22] Como ela tomou forma mais recentemente e entrou em cena com muita força, levaremos mais tempo para descrever e interagir com ela.[23]
A teoria crítica pós-moderna argumenta:
Em primeiro lugar, a explicação de todos os resultados desiguais relacionados à riqueza, bem-estar e poder nunca se deve a ações individuais, a diferenças culturais ou diferenças relacionadas a habilidades humanas, mas única e exclusivamente a estruturas e sistemas sociais injustos. A única maneira de reparar resultados desiguais para os oprimidos é através da política social, e nunca pedindo a alguém que mude seu comportamento ou cultura.[24]
Em segundo lugar, toda arte, religião, filosofia, moralidade, lei, mídia, política, educação e formas de família são determinadas não pela razão ou verdade, mas também pelas forças sociais. Tudo é determinado pela sua consciência de classe e lugar social. A doutrina religiosa, junto com toda política e toda lei, são sempre, no fundo, uma maneira de as pessoas obterem ou manterem status social, riqueza e, portanto, poder sobre os outros.
Em terceiro lugar, portanto, a realidade nada mais é do que poder. E se for esse o caso, para ver a realidade, o poder deve ser mapeado através dos meios de “interseccionalidade”. As categorias são: raça, gênero, orientação sexual, identidade de gênero (e algumas vezes outras). Se você é branco, do sexo masculino, hétero, cisgênero, então você tem a maior quantidade de poder. Se você não é nada disso, é a pessoa mais marginalizada e oprimida — e existem inúmeras categorias no meio disso. De modo mais importante, cada categoria em direção aos impotentes no final do espectro tem uma autoridade moral maior e uma capacidade maior de ver como as coisas realmente são. Somente a impotência e a opressão trazem alto nível moral e conhecimento verdadeiro. Portanto, aqueles que possuem mais privilégios não devem entrar em nenhum debate — eles não têm o direito ou a capacidade de aconselhar os oprimidos por estarem cegos em relação ao seu lugar social. Eles simplesmente precisam abrir mão de seu poder.
Em quarto lugar, a principal maneira de exercer o poder é através da linguagem, isto é, através de “discursos dominantes”. Um discurso dominante é qualquer reivindicação de verdade fundamentada na suposta razão e na ciência, ou na religião e na moralidade. A linguagem não descreve apenas a realidade, ela a constrói ou a cria. As estruturas de poder se escondem atrás da linguagem da racionalidade e da verdade. Assim, a academia esconde suas estruturas injustas por trás do discurso da “liberdade acadêmica”, as corporações, por trás do discurso da “livre iniciativa”, a ciência, por trás do discurso da “objetividade empírica” e a religião, por sua vez, por trás do discurso da “verdade divina”. Todas essas aparentes alegações de verdade são na verdade apenas narrativas construídas que foram projetadas para dominar e, como tais, devem ser desmascaradas. Assim, o debate racional e a “liberdade de expressão” estão descartados (eles apenas servem para dar holofotes a discursos injustos). A única forma de se reconstruir a realidade de uma maneira justa é subverter os discursos dominantes, e isto requer o controle do discurso.
Em quinto lugar, culturas, como pessoas, podem ser mapeadas através da interseccionalidade. Em certo sentido, nenhuma cultura é melhor que qualquer outra cultura em qualquer aspecto. Todas as culturas são igualmente válidas. Mas as pessoas que veem suas culturas como melhores e julgam outras como inferiores, ou mesmo as que veem sua própria cultura como “normal” e julgam outras como “exóticas”, são membros de uma cultura opressora. E culturas opressoras são (embora essa palavra não seja usada) inferiores e devem ser desprezadas.
Finalmente, nem os direitos individuais nem a identidade individual são primários. A ênfase liberal tradicional nos direitos humanos individuais (propriedade privada, liberdade de expressão) é um obstáculo às mudanças radicais que a sociedade precisará passar para compartilhar riqueza e poder. E é uma ilusão pensar que, como indivíduo, você pode criar uma identidade de qualquer maneira diferente ou independente de outras pessoas em sua raça, etnia, gênero e assim por diante. A identidade e os direitos do grupo são as únicas coisas reais. A culpa não é atribuída com base em ações individuais, mas com base na participação em grupos e no status social/racial.
Breve análise bíblica:
Em primeiro lugar, essa visão é profundamente incoerente. Se todas as reivindicações da verdade e agendas da justiça são socialmente construídas para manter o poder, por que as reivindicações e agendas dos adeptos dessa visão não estão sujeitas à mesma crítica? Por que as reivindicações dos defensores da justiça pós-moderna de que “isso é opressão” são inquestionavelmente moralmente corretas, enquanto todas as outras reivindicações morais são meras construções sociais? E se todos estão cegos pela consciência de classe e pelo lugar social (como eles afirmam), por que eles mesmos não estão?[25] A interseccionalidade alega que as pessoas oprimidas veem as coisas com clareza, mas por que elas veriam, uma vez que as forças sociais nos tornam completamente quem somos e controlam como entendemos a realidade? Os defensores da justiça pós-moderna não são tão formados por forças sociais como as outras pessoas? E se todas as pessoas com poder (pessoas que “dão as ordens” no âmbito social, cultural, econômico, e controlam o discurso público) inevitavelmente o usam para dominar, por que não dizer que revolucionários que conseguem substituir os opressores no topo da sociedade não podem se tornar aqueles contra os quais as demais pessoas posteriormente se rebelarão e os substituirão? O que os tornariam diferentes? A explicação pós-moderna de justiça não tem boas respostas para essas perguntas. Não se pode insistir que toda moralidade é um construto cultural e relativa e em seguida afirmar que suas reivindicações morais não o são. Esta não é uma falha que apenas os cristãos podem ver, e ela pode, portanto, ser fatal para a teoria como um todo.[26]
Em segundo lugar, ela muito simplista. A visão pós-moderna de justiça segue Rousseau e Marx, que viam os seres humanos como inerentemente bons ou como uma tábula rasa. Qualquer mal é instilado em nós pela sociedade, pelos sistemas e forças sociais. Portanto, qualquer patologia (pobreza, crime, violência, abuso) se deve a uma única coisa: políticas sociais erradas. Biblicamente, no entanto, sabemos que somos seres complexos — tanto em termos sociais (somos criaturas individuais e sociais criadas à imagem de um Deus Triúno), como em termos morais (somos pecadores e decaídos, mas valiosos à imagem de Deus) e constitucionais (somos igualmente alma-espírito e corpo). As razões sobre a existência do mal e dos resultados injustos na vida são múltiplas e complexas.
Assim, por exemplo, a restauração de uma comunidade pobre exigirá uma compreensão rica e multidimensional do florescimento humano. Certamente há uma necessidade de reforma social e de desmantelamento da injustiça sistêmica. No entanto, as pessoas também precisam de sentido na vida, de famílias fortes, de maneiras de crescer em caráter, além de comunidades saudáveis e funcionais e também de disciplina moral. Essa visão ignora a complexidade do que faz os seres humanos florescerem e, portanto, seus programas não funcionarão de fato para libertar as pessoas oprimidas. Ela ignora demais aquilo que nos torna humanos.
Em terceiro lugar, ela enfraquece nossa humanidade comum. Em termos bíblicos, somos, em primeiro lugar, indivíduos diante de Deus, feitos à sua imagem, e secundariamente, membros de uma raça/nacionalidade. A visão pós-moderna, entretanto, torna a identidade racial ou de grupo de uma pessoa uma questão primária, substituindo todas as lealdades à nação ou à raça humana como um todo. Ela quase chega a dizer que existem humanidades e não uma única raça humana comum.
E, portanto, em quarto lugar, ela nega nossa pecaminosidade comum. A Bíblia ensina que o pecado é generalizado e universal. Cada um de nós é membro de uma raça ou nacionalidade que contém muita graça comum singular para contribuir com o mundo. Toda cultura, porém, também possui idolatrias pecaminosas específicas. Nenhuma raça ou grupo de pessoas é inerentemente mais pecaminoso do que outros. Nessa visão pós-moderna de justiça, todavia, os grupos recebem um valor moral superior ou inferior, dependendo de seu poder, sendo que, em relação a alguns grupos, nega-se quaisquer características redentoras. Considerar raças inteiras como mais pecaminosas e más do que outras leva a eventos como o Holocausto.
Em quinto lugar, ela torna impossível o perdão, a paz e a reconciliação entre os grupos. Miroslav Volf escreve: “O perdão fracassa porque excluo o inimigo da comunidade dos humanos, assim como eu me excluo da comunidade dos pecadores.”[27] Sem usar a palavra “pecado”, os adeptos dessa visão continuamente fazem o que Volf descreve. Portanto, a reconciliação fracassa.
Em sexto lugar, ela oferece uma identidade “performativa” altamente orientada pela justiça própria. A identidade cristã é recebida das mãos graciosas de Deus, e não alcançada por nossas ações — somos amados de maneira absolutamente independente de nosso desempenho. De modo contrário, essa visão fornece dois tipos de identidade que são altamente performativas: ser um membro de um grupo oprimido que luta por justiça ou um aliado branco antirracista. Ambas as identidades — como todas as outras identidades não baseadas em Cristo — podem produzir ansiedade devido à necessidade de provar que se está suficientemente orientado para a justiça. A identidade segura dos cristãos não exige a humilhação, a alterização (othering) e a denúncia de outras pessoas (o que sempre é parte de uma identidade altamente performativa). Além disso, a nova identidade cristã — de que somos simultaneamente pecadores e infinitamente amados — transforma e cura ex-opressores (dizendo-lhes que são apenas pecadores), bem como ex-oprimidos (garantindo-lhes seu valor). Veja Tiago 1.9.
Por fim, ela está sujeita à dominação. Essa teoria vê os valores liberais, como liberdade de expressão e liberdade de religião, como meras formas de oprimir as pessoas. Essa visão frequentemente coloca tais “liberdades” entre aspas assustadoras. Como resultado, os adeptos dessa teoria recorrem a expressões constantes de raiva e indignação para silenciar os críticos, bem como à censura e outros tipos de pressão social, econômica e legal para marginalizar pontos de vista opostos. A visão pós-moderna vê toda injustiça acontecendo em um nível humano e assim demoniza os seres humanos ao invés de reconhecer as forças do mal — “o mundo, a carne e o diabo” — que atuam em toda a vida humana, incluindo a sua. Os adeptos dessa visão também acabam sendo utópicos, pois se veem como salvadores em vez de reconhecer que apenas um verdadeiro e divino Salvador será capaz de finalmente trazer justiça. Ao lidar com a injustiça, confrontamos o pecado humano, mas, além disso, “não lutamos [meramente] contra pessoas de carne e sangue” (Efésios 6.12).
Comparando a justiça bíblica com as demais alternativas
Em primeiro lugar, somente a justiça bíblica trata de todas as preocupações da justiça encontradas nas visões alternativas fragmentadas.[28] Cada teoria secular de justiça aborda uma ou algumas das cinco facetas da justiça bíblica mencionadas antes, mas nenhuma aborda todas elas.
Em segundo lugar, a justiça bíblica contradiz cada uma das visões alternativas, sem descartá-las ou lhes fazer concessões. (a) A justiça bíblica é significativamente mais bem fundamentada. Ela é baseada no caráter de Deus (um absoluto moral), enquanto as outras teorias são baseadas na mudança de ventos da cultura humana. (b) A justiça bíblica é mais penetrante em sua análise da condição humana, vendo a injustiça se originar de um conjunto mais complexo de causas — sociais, individuais, ambientais, espirituais — do que qualquer outra teoria. (c) A justiça bíblica fornece uma compreensão singular do caráter da riqueza e da propriedade que não se encaixa nas categorias modernas de capitalismo ou socialismo.
Em terceiro lugar, a justiça bíblica possui salvaguardas incorporadas contra a dominação. Como vimos, para haver uma teoria coerente da justiça, deve haver a afirmação de absolutos morais que sejam universais e verdadeiros para todos, em todas as culturas. Sem apelar para algum tipo de verdade e moralidade não construídos socialmente, não há como promover a justiça.[29] No entanto, os pós-modernistas franceses estavam certos: nas mãos de seres humanos, as reivindicações de verdade tendem ao totalitarismo, ou pelo menos são prontamente usadas pelas forças de dominação. O cristianismo, porém, oferece reivindicações de verdade que podem subverter a dominação. Como?[30] (a) O cristianismo não pretende explicar toda a realidade. Há uma quantidade enorme de mistério, coisas que simplesmente não nos são contadas (Deuteronômio 29.29). Não recebemos nenhuma “teoria de tudo” que possa explicar as coisas em termos de biologia evolutiva ou forças sociais. A realidade e as pessoas são complexas e, no fundo, misteriosas. (b) O cristianismo não afirma que, se se seguirmos nossa agenda, a maioria dos nossos problemas será resolvida. Metanarrativas têm um complexo de “nós somos os salvadores”. Os cristãos acreditam que podemos lutar pela justiça sabendo que, no final, Deus endireitará todas as coisas, mas, até lá, não podemos esperar uma reparação total do mundo de nossa parte. O cristianismo não é utópico. (c) Por fim, o enredo de toda a Bíblia é a identificação repetida de Deus com os miseráveis, impotentes e marginalizados. A história central do Antigo Testamento é a libertação dos escravos do cativeiro. Repetidamente na Bíblia, as pessoas que Deus usa como libertadores são geralmente forasteiros raciais e sociais, pessoas vistas como fracas e rejeitadas aos olhos das elites poderosas do mundo.
Quarto, apenas a justiça bíblica oferece uma compreensão radicalmente subversiva de poder. A visão pós-moderna critica acertadamente as visões liberais e seculares como sendo cegas às operações de poder e à opressão em ação na vida humana e na sociedade. Os liberais criticam acertadamente os pós-modernos por serem propensos (e cegos) às suas próprias formas de dominação. A justiça bíblica, em contraste com a liberal, nos dá uma explicação profunda de poder e de suas corrupções, mas, em contraste com a pós-moderna, nos dá um modelo para mudar a forma como ela é usada no mundo.
Quando Deus veio à terra em Jesus Cristo, ele veio como um homem pobre, para uma família que estava na base da ordem social. Ele experimentou tortura e morte nas mãos de elites religiosas e governamentais que usaram seu poder injustamente para oprimir. Portanto, em Jesus vemos Deus deixando de lado seu privilégio e poder (sua “glória”) para se identificar com os fracos e desamparados (Filipenses 2.5-8). E, no entanto, ao suportar a violência e a injustiça humana, ele pagou a justa penalidade do pecado da humanidade à justiça divina (Isaías 53.5). Desta forma, ele foi exaltado a uma honra e autoridade ainda maiores para governar (Filipenses 2.5.9-11). Jesus assume autoridade, mas somente depois de perdê-la no serviço aos fracos e desamparados.
Portanto, a Bíblia não presume o fim da ideia “binária” de poder. Governo e autoridade não são intrinsecamente errados. Na verdade, eles são necessários em qualquer sociedade. No entanto, embora o cristianismo não acabe com o binário, ele também simplesmente não o reverte. O cristianismo não preenche simplesmente os escalões superiores de autoridade com novos partidos que usarão o poder da mesma forma opressora que é a maneira de agir do mundo.
Por estar enraizado na morte e ressurreição de Jesus, o cristianismo não elimina nem simplesmente reverte o binário governante/governado — ao contrário, ele o subverte. Quando Jesus nos salva por meio do uso do poder apenas para servir, ele muda nossa atitude em relação ao poder e ao seu uso.[31]
Não há nada no mundo como a justiça bíblica! Os cristãos não devem vender seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas. Eles devem, porém, assumir seu direito de primogenitura e fazer justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com seu Deus (Miquéias 6.8).
__________________
[1] Ver Alasdair MacIntyre, Justice as Virtue: Changing Conceptions, capítulo 17, em After Virtue: A Study in Moral Theory, 3. ed., University of Notre Dame Press, 2012 e Whose Justice? Which Rationality? University of Notre Dame Press, 1988.
[2] A história do Iluminismo é complexa, e a maioria dos historiadores fala de “Iluminismos”, no plural. Todos os pensadores iluministas buscaram estabelecer valores morais com base apenas na razão, sem recorrer à religião, como uma forma de ajudar as pessoas a viver em paz em um país, apesar das diferentes crenças religiosas. John Locke era um cristão professo que acreditava em Deus e na “lei natural”, isto é, em verdades morais incorporadas no universo. Ele, porém, fazia parte do projeto iluminista, ou seja, de mostrar que todas aquelas verdades morais de Deus podiam ser deduzidas apenas pela razão. Portanto, embora John Locke possa ser considerado um dos principais autores de nosso individualismo ocidental moderno, ele não pode ser diretamente acusado por nosso secularismo. Para mais informações sobre a corrosividade do individualismo que Locke nos legou, consulte Robert Bellah, et al, Habits of the Heart: Individualism and Commitment in American Life, With a New Preface, University of California Press, 2008.
[3] Hume não era um relativista moral. Ele não disse “você tem a sua verdade e a sua moralidade e eu tenho a minha”. Hume acreditava nas verdades morais. Embora elas não fossem objetivamente verdadeiras (ou seja, independentes de nossos sentimentos e intuições), Hume ainda acabava tendo uma espécie de estabilidade porque pensava que os sentimentos das pessoas sobre o certo e o errado coincidiam quase que completamente. E uma vez que concordamos amplamente, por exemplo, que o assassinato é errado, podemos então dizer que é errado, mesmo que um determinado indivíduo possa sentir o contrário. No entanto, os problemas com a visão de Hume são enormes. Primeiro, se a única base para a moralidade é que nossos sentimentos e intuições morais compartilhados se alinham, o que acontece quando eles não estão alinhados? Depois de Hume, não há como voltar a “raciocinar juntos”, seja por meio do princípio do interesse próprio ou por dedução da lei natural. Em segundo lugar, se a única base para a moralidade é a maioria das sensibilidades humanas, então como podemos denunciar a injustiça da maioria cometida contra uma minoria? Se a escravidão fosse aceitável para as intuições morais da maioria das pessoas (e assim foi por milhares de anos), então não poderia haver nada de objetivamente errado com ela. E qual seria a base para dizermos à maioria: “Isso é errado e deveria parar”? Se Hume estiver certo, não há base para um movimento de justiça como esse. De acordo com as premissas de Hume, no final, a moralidade realmente se torna relativa.
[4] Para mais informações sobre o Iluminismo e a moralidade: Em nosso tempo, muitos secularistas esforçam-se para encontrar uma base para a moralidade que não esteja enraizada na religião, mas que, no entanto, não acabe em um relativismo baseado apenas em nossos sentimentos. O projeto tem se dedicado a encontrar uma base científica e empírica para a moralidade. Tal esforço, todavia, não tem obtido qualquer sucesso. Ver James Davison Hunter e Paul Nedelisky, Science and the Good: The Tragic Quest for the Foundations of Morality, Yale, 2018. Ver também Christian Smith, Atheist Overreach: What Atheism Can’t Deliver, Oxford, 2018. Por fim, para um resumo geral da visão, consulte Philip Gorski, Where Do Morals Come From? Public Books, 15 de fevereiro de 2016.
[5] MacIntyre, After Virtue, 57-59.
[6] Como disse, este é apenas um breve esboço. É possível que publiquemos um artigo com um relato bíblico-teológico muito mais completo da justiça em breve.
[7] Bruce K. Waltke, The Book of Proverbs: Chapters 1-15, Eerdmans, 2004, 97. A citação anterior é de Waltke, que está citando J. W. Olley.
[8] O ano do Jubileu (Levítico 25), as leis da respiga e a própria definição de saddiq (“retidão”) “sugerem uma crítica severa [ao] 1) estatismo que desconsidera o precioso tesouro do enraizamento pessoal, e [ao] 2) individualismo desenfreado que protege os indivíduos às custas da comunidade.” Craig Blomberg, Neither Poverty Nor Riches, Apollos, 1999, 46 (Publicado no Brasil sob o título “Nem Pobreza, Nem Riqueza: As Posses Segundo a Teologia Bíblica”, Ed. Esperança, 2009).
[9] Veja como o favoritismo nocivo que Abraão demonstrou entre seus filhos foi reproduzido tanto em Isaque quanto em Jacó com um efeito terrível (Gênesis 12-50).
[10] Provérbios 13.23: “No campo não arado do pobre, há abundância de alimento, mas isso é destruído pela injustiça”, Waltke, 549-550. “No campo não arado […], há abundância” refere-se à terra tão produtiva que produz frutos mesmo quando não é arada. “…abundância de alimento” significa que os pobres estão trabalhando duro para colhê-los. Então, por que eles são pobres? “… isso é destruído pela injustiça” [no hebraico, lo mishpat ]. Eis três possíveis causas da pobreza: ambiental, pessoal e social. De acordo com Provérbios, às vezes a pobreza é causada por poucos recursos, às vezes pela irresponsabilidade pessoal. Aqui, porém, vemos que a pobreza pode ser causada por pura injustiça, sem nenhuma culpa dos pobres.
[11] John B. Taylor, Ezekiel: An Introduction and Commentary, Tyndale, 1969, 147.
[12] Durante séculos, os estudiosos da Bíblia reconheceram o equilíbrio entre responsabilidade corporativa e individual na Bíblia. Por várias décadas, houve uma visão de que Deus só lidava com Israel em termos corporativos, e nunca em termos individuais, e que, portanto, Ezequiel 18.1-32 era uma inovação. Veja Gordon Matties, Ezekiel 18 and the Rhetoric of Moral Discourse, Society of Biblical Literature, 1990, para mais informações sobre esse debate. Essa visão é agora amplamente abandonada por ser muito simplista. Ver Daniel Isaac Block, The Book of Ezekiel, Chapters 1-24, Eerdmans, 1997, p. 556. Para começar, textos anteriores, como Deuteronômio 24.16, exigiam que os juízes não considerassem as pessoas responsáveis pelos pecados dos pais ou dos filhos. Hoje, portanto, a maioria dos estudiosos entende que há responsabilidade corporativa e individual pelo pecado na Bíblia. Apesar dessa longa história de interpretação, há muitos hoje em dia que continuam a insistir que qualquer professor que ensine a Bíblia e fale sobre pecado e responsabilidade corporativos está lendo as Escrituras com lentes modernas liberais ou marxistas. Às vezes, eles admitem que Israel foi muitas vezes julgado corporativamente, mas argumentam que Deus não age assim conosco. Isso ignora o fato de que Deus também considera outras nações responsáveis pelos pecados de seus ancestrais (Deuteronômio 23.3-4; Amós 1.1-2: 5).
[13] E devemos ter em mente que as teorias da justiça não são necessariamente categorias políticas. Tanto os conservadores quanto os progressistas (liberals) podem, por exemplo, habitar qualquer uma das três facetas de justiça bíblica.
[14] Estou basicamente seguindo Michael Sandel, que enumera quatro teorias da justiça em seu livro Justice: What’s the Right Thing to Do?, Farrar, Straus and Giroux, 2009 (Publicado no Brasil sob o título “Justiça: o que é fazer a coisa certa?”, Ed. Civilização Brasileira, 2011): libertarianismo (Robert Nozick), utilitarismo (John Stuart Mill), liberalismo (Kant/John Rawls) e ética da virtude (Aristóteles/MacIntyre). Não tratei da ética da virtude e da teoria da justiça desta escola porque, embora tenha tração entre alguns intelectuais, atualmente não é culturalmente influente. Em seu lugar, inseri a política de identidade, baseada na teoria crítica pós-moderna. Este é um novo personagem muito influente que não era tão importante quando Sandel escreveu o livro. Portanto, minhas quatro categorias são: justiça libertária, justiça liberal, justiça utilitarista e justiça pós-moderna. Em uma nota de rodapé abaixo eu explico por que acho justo chamar a última visão de pós-moderna.
[15] Charles Taylor, A Secular Age, Harvard, 2007 (Publicado no Brasil sob o título “Uma era secular”, Ed. Uninsinos, 2010).
[16] Os direitos naturais “lockeanos” são o direito à vida, à liberdade e à propriedade privada. Em sua obra Second Treatise of Government (“Segundo Tratado sobre o Governo”), John Locke argumentou que as pessoas têm o direito de ter suas vidas físicas protegidas e preservadas e de serem livres para escolher como querem viver, desde que não prejudiquem a liberdade de outros e o direito à propriedade. Isso incluía não apenas a propriedade privada, mas, como argumentou Locke, cada pessoa possui a si mesma. Alguns argumentam que esses são “direitos negativos” porque, conforme formulados, são principalmente o direito de que certas coisas não nos aconteçam (por exemplo, assassinato, prisão sem julgamento, roubo e regulamentação excessiva de comportamento).
[17] Sandel vê a visão de Rawls como sendo construída sobre o conceito de direitos defendido por Immanuel Kant, que tem um entendimento muito mais robusto do que Locke (Sandel, Justice, 140). O “imperativo categórico” de Kant, que insistia que cada indivíduo, em virtude de serem criaturas racionais, tinha que ser tratado “não como um meio para um fim, mas como um fim em si mesmo”. Muitos têm apontado que esta é basicamente uma versão da doutrina da imagem de Deus do cristianismo, mas ela deixa a desejar. Qualquer conceito de direitos baseado em capacidades identificadas (como racionalidade ou capacidade de fazer escolhas) permite a alguém a alegação de que algumas pessoas (pessoas senis, crianças, pessoas com deficiência) que não possuem a capacidade identificada não têm direitos. Ver Nicholas Wolterstorff, Capítulo 15 — Is a Secular Ground of Human Rights possible? em Justice: Rights and Wrongs, Princeton, 2010, 223-241.
[18] Para um exemplo do conflito sobre “direitos econômicos e sociais”, veja a recente controvérsia sobre a Comissão de Direitos Inalienáveis do secretário de Estado Mike Pompeo. A comissão priorizou os direitos “lockeanos” — liberdade de expressão, liberdade religiosa e os direitos de propriedade privada sobre os direitos sociais e econômicos. A grande imprensa reagiu com choque. Mas a polêmica nada mais é do que a última versão do velho debate entre Robert Nozick e John Rawls sobre o que são considerados “direitos”. Sem compreender o pano de fundo ideológico e histórico, os jornalistas não conseguiam entender o que estava acontecendo. Ver New York Times, 16 de julho de 2020: “Pompeo diz que a política de direitos humanos deve priorizar os direitos de propriedade e de religião”. O artigo é encontrado em https://www.nytimes.com/2020/07/16/us/politics/pompeo-human-rights-policy.html
[19] Veja Taylor, A Secular Age, e Larry Siedentop, Inventing the Individual: The Origins of Western Liberalism, Harvard, 2014 (apenas dois exemplos). Nos últimos anos, esses estudiosos, incluindo Philip Gorski, de Yale, Eric Nelson, de Harvard, e muitos outros, argumentaram que as crenças cristãs são as fontes dos valores do liberalismo ocidental dos direitos humanos e do cuidado com os pobres. Mais recentemente, Tom Holland resumiu grande parte do pensamento desses eruditos em um livro longo, mas popularmente acessível, intitulado Dominion: How the Christian Revolution Remade the World, Basic Books, 2019. Naturalmente, foi Friedrich Nietzsche quem originalmente argumentou que, sem a crença no Deus cristão, não há base para a crença em direitos humanos iguais e em dignidade, e que todos os liberais que afirmam tais valores de fato ainda são cristãos (pelo menos nesta parte de seu pensamento) sem reconhecê-lo.
[20] A defesa clássica para essa ideia é feita por Robert Bellah, et al, Habits of the Heart: Individualism and Commitment in American Life; With a New Preface, University of California, 2008.
[21] Sandel, 103.
[22] A história por trás dessa teoria da justiça encontra a fusão de várias correntes ou escolas de pensamento importantes. Começa com os ensinamentos de Karl Marx de que toda realidade é determinada por forças sociais e, portanto, não apenas nosso comportamento, mas nossas crenças sobre a verdade e a moralidade são determinadas por nossa consciência de classe. No entanto, Marx usou essa ideia radical básica quase que totalmente para criticar a economia, as classes e os sistemas econômicos. No século 20, arquitetos da “teoria crítica moderna”, como Adorno e Marcuse, começaram a aplicar essa análise marxista a uma crítica da cultura em todas as suas formas. Seu objetivo era tornar visíveis as operações ocultas de poder que os burgueses usaram para manter o proletariado oprimido — não pela força da lei, mas pelo poder da cultura, da arte e da história. Mais tarde, pós-modernistas franceses como Derrida, Foucault e Lyotard tornaram-se ainda mais radicais, refletindo extensivamente sobre a instabilidade da linguagem e concluindo que qualquer afirmação de verdade era um movimento de poder. Isso significava que agora não havia mais nada da realidade, exceto poder. Esses pós-modernistas franceses originais, entretanto, eram altamente céticos em relação à reforma social e presumiam que qualquer teoria da justiça se tornaria uma ferramenta de opressão. (Eles rejeitaram o marxismo clássico por essa mesma razão.) Uma das razões de seu profundo ceticismo era a consistência de pensamento. Se todas as afirmações de verdade e as grandes visões são formas de oprimir as pessoas, então ninguém que esteja fazendo afirmações sobre o certo e o errado, justiça e injustiça, será capaz de escapar dessa mesma opressão, não importa o quão bem-intencionada seja a pessoa. Quem pode dizer o que é verdade e justiça, afinal? Tudo o que fazemos e dizemos exerce poder sobre as pessoas. Portanto, a melhor coisa a fazer é apenas conquistar um pouco de liberdade para você e para os outros, desconstruindo todas as grandes visões, sendo um indivíduo autocriado e mantendo-se afastado de todos os movimentos. Apesar dessa visão dos pós-modernistas originais, vários pensadores, principalmente na academia americana no final dos anos 1980 e 1990 (Derrick Bell, Kimberle Crenshaw, Judith Butler e muitos outros), aceitaram o que os pós-modernistas franceses disseram sobre poder e verdade, mas não aplicaram a si mesmos (como os pós-modernistas originais faziam). Em vez disso, eles trouxeram uma visão mais positiva do socialismo junto com o pós-modernismo no que foi chamado de “Teoria Crítica Pós-moderna”. Trata-se de uma estratégia de mudança social radical que busca não apenas derrubar as visões tradicionais e religiosas, mas também o próprio liberalismo secular e individualista.
[23] Para mais informações sobre como as escolas contemporâneas de pensamento se desenvolvem a partir das mais antigas, Charles Taylor em A Secular Age mostra como o secularismo moderno surgiu do Iluminismo e de outros movimentos mais antigos, não em uma linha direta, mas por meio de “ziguezagues”, ironias, e consequências não intencionais. Assim, o marxismo não é o mesmo que a teoria crítica neomarxista da Escola de Frankfurt, o mesmo que os pós-estruturalistas franceses, ou o mesmo que os teóricos críticos pós-modernos depois de 1989. Cada grupo era altamente crítico dos outros. Marxistas como Terry Eagleton são altamente críticos de pós-estruturalistas como Foucault e Derrida (veja seu livro The Illusions of Postmodernism, 1996 [Publicado no Brasil sob o título “As Ilusões do Pós-Modernismo”, Ed. Zahar, 1998]), e Derrida rejeita o marxismo clássico em Specters of Marx, 1993 (Publicado no Brasil sob o título “Espectros de Marx”, Ed. Relume Dumará, 1994). No entanto, as ligações entre esses movimentos também são amplamente reconhecidas. Mesmo no livro Specters of Marx, Derrida diz que “Desconstrução […] também quer dizer na tradição de um certo marxismo, em um certo espírito do marxismo” e “é preciso assumir a herança do marxismo”. Taylor então está certo em falar de “ziguezagues”. Mais um exemplo: Taylor mostra como o pós-estruturalismo (ou o que ele chama de “contra-iluminismo imanente”) é tanto (se não mais) fruto de Nietzsche quanto de Marx, embora Nietzsche desprezasse o marxismo. Para mais informações sobre como o pós-estruturalismo foi adotado — descartado de algumas maneiras, mas adotado de outras — pela teoria crítica posterior, consulte Walter Truett Anderson, The Truth About the Truth, Putnam, 1995, posteriormente publicado de forma condensada como The Fontana Postmodern Reader, Fontana, 1996.
[24] Para um exemplo interessante da ideologia que afirma que “todas as desigualdades se devem a forças sociais”, leia Ibram X. Kendi Stop Blaming Young Voters for Not Turning Out for Sanders (“Pare de culpar os jovens eleitores por não aparecerem para votar em Sanders”) The Atlantic, 17 de março de 2020. Kendi aborda uma questão perene, a saber, que pessoas mais velhas votam em uma escala muito maior do que os jovens. Esse tem sido o caso por muitas gerações, e a maioria dos observadores atribuiu isso a fatores mais internos. Os adultos mais jovens têm mais mobilidade e tendem a ser menos enraizados e comprometidos com uma determinada localidade; a “cultura jovem” não dá a mesma ênfase, e assim por diante. Kendi se recusa a postular qualquer influência sobre fatores pessoais ou culturais. Todas as diferenças nos resultados devem estar relacionadas a fatores “estruturais” ou à política social. Ele escreve: “Existem apenas duas causas para as disparidades históricas e contínuas de votos entre americanos mais jovens e mais velhos. Ou há algo errado com os jovens americanos como grupo ou há algo errado com nossas políticas de votação. Os outros eleitores indecisos (swing voters) não são confiáveis ou nosso sistema de votação não é confiável. Ou há algo errado com as pessoas ou há algo errado com a política.”
[25] Um exemplo: “Embora eu acredite que os valores sejam construtos sociais e não outorgados por Deus… Não acredito que a desigualdade de gênero seja mais defensável do que a desigualdade racial, apesar dos esforços repetidos para fazê-la ver como um ‘costume’ específico da cultura, em vez de um exemplo de injustiça.” Mari Ruti, The Call of Character: Living a Life Worth Living, Columbia, 2014, p. 36. No mesmo parágrafo, ela diz que todos os valores são socialmente construídos, mas que suas opiniões sobre o que constitui injustiça não o são. Essa abordagem autojustificadora e autocontraditória da justiça é típica de nosso tempo.
[26] Para mais informações sobre as graves dificuldades que o marxismo, o pós-modernismo e várias formas de teoria crítica têm em fazer quaisquer declarações morais de valor ou verdade, veja o importante trabalho de Steven Lukes, Marxism and Morality, Oxford, 1985, e também veja Christopher Butler, Postmodernism: A Very Short Introduction, Oxford, 2002. Lukes (que até onde sei é marxista), escreve sobre o “Paradoxo” ou contradição do marxismo: “Por um lado [o marxismo afirma] que a moralidade é uma forma de ideologia e, portanto, de origem social, ilusória no conteúdo e que serve aos interesses de classe; que qualquer tipo de moralidade… é relativa a um modo particular de produção e aos interesses particulares de classe; que não existem verdades objetivas ou princípios eternos de moralidade; que a própria forma de moralidade e ideias gerais como liberdade e justiça… [constituem] vários preconceitos burgueses por trás dos quais se escondem vários interesses burgueses em forma de emboscada.” (Lukes está citando Marx e Engels aqui.) “Por outro lado”, continua Lukes “ninguém pode deixar de notar que os escritos de Marx e dos marxistas abundam em julgamentos morais implícitos e explícitos” (Lukes, p. 3). Pós-estruturalistas e teóricos críticos mais recentes participam da mesma conclusão quando falam da moralidade como sendo “socialmente construída” e ainda continuam a fazer afirmações morais implícitas que eles não tratam como relativas e construídas. Para mais informações sobre como todas as formas de secularismo moderno têm “fontes morais inadequadas para apoiar seus elevados ideais morais”, consulte Charles Taylor, A Secular Age, Harvard, 2007, capítulos 15 (“The Imanent Frame”), 16 (“Cross Pressures”), 17 (“Dilemmas I”) e 19 (“Unquiet Frontiers of Modernity”), pp. 539-773.
[27] Miroslav Volf, The Spacious Heart: Essays on Identity and Belonging, Trinity Press, 1997, 57.
[28] Embora eu não queira que os cristãos aceitem totalmente qualquer uma dessas explicações seculares de justiça, os leitores não devem concluir que esses quatro pontos de vista são igualmente válidos ou igualmente falhos. Eles não são. Não estou defendendo a equivalência moral de todas essas visões, embora eu perceba que meu artigo poderia ser lido dessa maneira e, por isso, essa é a razão para eu incluir esta nota. Certamente tenho meus favoritos entre essas quatro visões. Vejo algumas visões mais próximas da justiça bíblica e outras mais distantes. No entanto, está além do escopo deste ensaio responder à pergunta: “Com qual dessas visões os cristãos podem trabalhar melhor?”.
[29] Em seu capítulo que compara a visão libertária da justiça (Nozick) com a visão liberal (Rawls), MacIntyre mostra que, no final, os argumentos se resumem a dizer “mas eu mereço isto”, ou “mas os pobres merecem isto”. No entanto, como mostra MacIntyre, nenhuma visão secular pode dizer tal coisa. As visões seculares abandonaram voluntariamente essa linguagem e argumento. Em um universo no qual simplesmente surgimos, sem nenhum propósito, por meio de um processo que é basicamente violento, não podemos falar que nada é merecido, certo ou errado. O máximo que os pensadores seculares podem argumentar é que, em algumas análises de custo-benefício, matar pessoas ou deixar os pobres famintos é impraticável para alguns fins combinados. No entanto, como MacIntyre aponta, nenhum dos adeptos desses pontos de vista pode evitar tal conversa. Eles inevitavelmente “contrabandeiam” uma linguagem de moralidade e virtude que sua própria visão de mundo não pode suportar. Isso deveria lhes dizer algo. Veja MacIntyre, Justice as Virtue: Changing Conceptions, Capítulo 17, em After Virtue, 249.
[30] Para as ideias básicas deste parágrafo, veja Richard Bauckham, Reading Scripture as a Coherent Story, em Richard B. Hays e Ellen F. Davis, eds. The Art of Reading Scripture, Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 2003, 45-55. Eu concretizo essas ideias em Making Sense of God: Finding God in the Modern World, Penguin Books, 2016, Capítulo 10: “A Justice That Does Not Create New Oppressors”, 193-211 (Publicado no Brasil sob o título “Deus na era secular: como céticos podem encontrar sentido no cristianismo”. Ed. Vida Nova, 2018. Capítulo 10: “Uma justiça que não cria novos opressores”, 245-267).
[31] Em relação à ideia básica desta seção final sobre cristianismo e poder, estou em dívida com Christopher Watkin. Veja seu livro Michel Foucault, Presbyterian and Reformed, 2018.
Traduzido por Jonathan Silveira.
Texto original: A Biblical Critique of Secular Justice and Critical Theory. Gospel in Life. Traduzido e publicado no site Teologia Brasileira com autorização.
Justiça social tem a ver com teologia da libertação? Com missão integral? Ou com a pura e simples graça de Deus? Nesta obra Tim Keller analisa a fundamental relação entre evangelho e justiça e nos dá uma visão bíblica de justiça social. Ele nos mostra que a preocupação com a justiça em todos os aspectos da vida não é acréscimo artificial nem contradição à mensagem das Escrituras, pois a Bíblia é a verdadeira base da justiça. Publicado por Vida Nova. |
---|