True Detective e a Grande História

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Uma série que prende a atenção desde a primeira cena até à última fala. Diálogos ricos, insights profundos, personagens fortes, enredo cativante. True Detective é uma das melhores séries que já assisti.

True Detective é uma série norte-americana, cuja primeira temporada estreou em Janeiro de 2014, e conta com 8 episódios. A segunda temporada ainda está por estrear e não tem ligação com a primeira. Trata-se de uma série para adultos com cenas de violência e de alguma nudez – continuo a achar que muitos bons filmes ou séries não perderiam qualidade nenhuma, até pelo contrário, se não contivessem essas cenas menos próprias. O enredo anda em torno de dois detectives que ao longo de 20 anos investigam um crime hediondo no estado da Louisiana, nos Estados Unidos, cometido por um assassino em série.

A série fez-me revisitar um livro que eu não abria há cerca de 10 anos: A origem da tragédia, de Friedrich Nietzsche. Porquê Nietzsche? Porque uma das personagens principais, o detective Rust Cohle (Matthew McConaughey), ainda no início da série, ao ser questionado pelo seu parceiro, Marty Hart (Woody Harrelson), se é um cristão, dá uma resposta um tanto ou quanto desconcertante para o seu colega Hart e certamente também para a maioria dos telespectadores:
 

Penso que a consciência humana, é um equívoco trágico da evolução. Tornamo-nos demasiado autoconscientes, a natureza criou um aspecto distinto de si mesma, somos criaturas que não deviam existir pela lei natural. Somos coisas que operam sob a ilusão de ter uma identidade; um desenvolvimento sensorial, de experiência e de sentimentos, programado com plena segurança que cada um de nós é alguém, quando todos são ninguém. Talvez o mais louvável que a nossa espécie possa fazer é negar a nossa programação, parar de se reproduzir, andar de mãos dadas até à extinção, uma última meia-noite – irmãos e irmãs deixando tudo para trás.

Mas já vou voltar a essa resposta e sobre o que ela indica acerca desta personagem tão marcante.

Ao revisitar o livro de Nietzsche, A origem da tragédia, deparei-me com o fato do autor abordar duas posturas antagónicas diante da vida, como forma de encarar e interpretar a realidade, baseando-se em dois deuses gregos – Apolo e Dionísio.

R.C. Sproul afirma o seguinte:

Nessas figuras Nietzsche descobriu o antagonismo visceral dentro de si mesmo, a antítese entre a mente e a vontade. Apolo encarnava o que é racional e ordeiro. Ele representa o ideal grego de ordem e harmonia. A arte de Apolo apresenta simetria e proporção perfeitas. Suas esculturas não têm defeitos. A figura de Dionísio, por outro lado, representa o elemento do caos. Dionísio era adorado nas antigas bacanais, nome este oriundo de Baco, o deus da uva e do vinho. No ritual antigo, obtém-se a libertação mística da inibição da razão passando para um estupor de embriaguez e orgia.1

Trata-se de uma dicotomia que facilmente podemos observar em True Detective, no relacionamento entre as personagens Rust e Marty, relacionamento este que é o ponto central da série. Esta dicotomia Apolo/Dionísio é também representada por Nietzsche pelos conceitos do “sonho” e da “embriaguez”. O primeiro é mais ordenado, racional, intelectual (Rust), o segundo vive no êxtase, na espontaneidade, na falta de regras (Marty). A personagem Marty Hart aparenta uma vida que não tem. Apresenta-se como religioso e um responsável homem de família (esposo e pai), no entanto vive, às escondidas, uma segunda vida, caótica, entregue à bebida e ao adultério. Vemos em Marty a sede pelo saciar dos impulsos e com isso constrói uma vida de incoerência – o caos. Já Rust Cohle, ainda que apresente um discurso que nos pareça cruel (existencialista, pessimista), é racional, com ideias concretas em sua mente, fruto do seu passado trágico, em função das quais procura viver, ainda que nem sempre consiga. Rust Cohle é a personagem na qual o público consegue colocar os pés de modo a caminhar em solo firme, é o ponto de referência, demonstra coerência, e por isso ordem e harmonia.

Apesar de serem pessoas com vidas, posturas e convicções tão diferentes podemos ver que a fusão teve um resultado positivo.  Ao vermos a forma como o relacionamento entre Rust e Marty vai evoluindo podemos com facilidade encaixar a seguinte citação de Nietzsche:

É com certeza às duas divindades das artes, a Apolo e a Dionísios, que se liga a nossa representação do extraordinário antagonismo, tanto no que respeita à sua origem como aos seus fins, entre a arte plástica ou apolínea e a arte sem formas ou musical que é a arte dionisíaca. Estes dois impulsos artísticos, tão diferentes entre si, caminham lado a lado, em guerra aberta durante a maior parte do tempo, desafiando-se e excitando-se mutuamente para darem origem a criações cada vez mais novas e poderosas e com elas perpetuarem a luta deste antagonismo que a palavra “arte”, sua partilha comum, mais não faz do que mascarar com o véu da aparência, até que por fim, graças a um milagre metafísico da “Vontade” helénica, acabam por se fundir num abraço sutil e delicado, fazendo nascer essa obra de arte que é ao mesmo tempo tão apolínea quanto dionisíaca – a tragédia ática.2

As personagens são muito vincadas e prendem-nos nessa tensão até o final, onde parece que chega a unidade, a reconciliação, a fundição com o próximo: “Agora o escravo é um homem livre, agora todas as barreiras rígidas e hostis que a miséria, o arbitrário ou o “modo insolente”, fixaram entre os homens, desvanecem-se.”3  Esta unidade exprime-se pela tensão energética que resulta do conflito simbólico entre a vertente Apolínea e Dionisíaca.

É este crescendo que vemos na série, no relacionamento de Rust e Marty, que culmina com aquela maravilhosa cena final e aquele diálogo fenomenal:

Rust: “Digo-te Marty, estive naquele quarto a olhar para lá das janelas a pensar, é uma história. A mais antiga.”
Marty: “Qual?”
Rust: “Luz contra as trevas.”
Marty: “Bem, eu sei que não estamos no Alasca, mas parece-me que a escuridão tem um território bem maior.”
Rust: “É, estás certo quanto a isso.”
(…)
Rust: “Estás a olhar para a questão de forma equivocada.”
Marty: “Como assim?”
Rust: “Bem, antes só havia trevas. Perguntas-me, a luz está a ganhar.”

Esta fusão dos dois detetives resulta não só na resolução do crime, mas também, e principalmente, na transformação de ambos. Rust começa a série como um pessimista, seguindo o existencialismo de Schopenhauer e de Nietzsche, que se reflete na fala que mencionei no início. É como observou Luiz Filipe Pondé:

Cohle, no primeiro episódio, afirma que é pessimista (e define essa condição como sendo “ruim em festas”). E afirma sua “cosmologia”: a consciência humana é um erro da evolução. Segundo nosso “true philosopher”, todos pensamos que somos “eus”, mas somos apenas seres que arrastam essa ilusão em meio a uma programação genética que nos obriga a sobreviver. Um diálogo entre o niilismo nietzschiano e o determinismo darwinista de Richard Dawkins não seria muito diferente.

De onde vem esse pessimismo que dá a esses detetives um tom maior do que meros personagens à procura de criminosos? No caso especifico de Cohle, esse pessimismo vem de uma família de origem destroçada, de uma filha morta muito jovem, de um casamento destruído devido a esta morte, de muita bebida e muita droga, de quatro anos infiltrado no narcotráfico e de uma longa investigação entre satanistas, pedófilos “cristãos” e serial killers de mulheres.4

No entanto, no percurso que faz, no lidar com o crime, no relacionamento com o colega Marty, vemos uma transformação de uma visão totalmente pessimista para uma mais otimista: “A luz está a ganhar.” Nunca pensaríamos ouvir essa fala por parte de Cohle.

Já de Marty também não esperaríamos ouvir: “Parece-me que a escuridão tem um território bem maior.” Assim, vemos uma transformação também em Marty Hart, que parece tornar-se mais pessimista, ou pelo menos, com os pés mais assentes no chão, coisa que não era verdade ao longo da série, onde víamos um homem como que alienado da vida, que se entregava irresponsavelmente aos prazeres e aos impulsos, numa perspetiva egoísta e otimista da vida.

Estas transformações nas personagens dão-se fruto da interação com histórias com as quais lidam, seja na parceria que têm um com o outro, com a investigação do crime, com as famílias, e  com outras personagens. Reparemos no que escreve Nic Pizzolato, autor da série:

Se há uma linha dominante em True Detective que interliga tudo o que está a acontecer em True Detective, e que a série te está a contar – constantemente, a série está a contar-te – é que tudo é uma história. “Cohle diz-te que o que pensas que és, a tua identidade, é a história que contas a ti mesmo continuamente.” Ele diz-te que a religião e a filosofia são histórias que contamos a nós mesmos. Cohle descreve-as como narrativas catárticas, (…) ele é tão bom em obter confissões de suspeitos porque ele dá-lhes espaço para criar uma narrativa catártica. Então, se existe um tema geral em True Detective, eu diria que é que nós, enquanto seres humanos, não somos mais do que histórias pelas quais vivemos e morremos – então é melhor teres cuidado com a história que contas a ti mesmo.5

Tudo no início da série é negro, negativo, a começar pela cena hedionda de crime, pela postura de vida dos dois detetives e, de forma geral, o ambiente daquela cidade americana. Esse quadro negro mantém-se durante a maior parte da série, na verdade, até ao último episódio, quando o assassino é morto, os dois polícias estão vivos (na verdade um deles quase morreu, Rust Cohle, experiência que o influenciou fortemente na sua mudança), e dá-se a fala final, que é uma luz ao fundo túnel escuro que foi toda a série.

Curiosamente o título do último episódio é “Sem forma e vazio”, citação direta de Gênesis 1.2: “A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.”, ideia que também está presente na última fala de Rust: “(…) Antes só havia trevas.” As últimas palavras de Rust estão altamente relacionadas com o começo do Evangelho de João: “A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.” (Jo 1.5), quando ele afirma: “A luz está a ganhar”.6

Esta é a Grande História, a grande narrativa que traz a verdadeira libertação (catarse). 

Nem a série, nem o seu autor, se afirmam como sendo cristãos, ainda que Pizzolato tenha dito que “se alguém precisa de um livro para ler ao longo da temporada 1 de “True Detective”, eu recomendaria a versão King James do Antigo Testamento.”7

Vemos em True Detective aquilo que vemos na maioria dos filmes, séries e livros, uma sede de finais felizes. Esse é o anseio interno do homem – “e viveram felizes para sempre”. O problema é que muitos não saciarão essa sede. Não a saciarão porque permanecem na mesma causa que fez criar esta sede – o orgulho, o pecado. O desejo de um final feliz é a saudade da paz e tranquilidade do Jardim do Éden onde passeávamos com Deus. Aqueles que se prostrarem diante da Cruz deste lado da existência, desfrutarão de um final feliz, viverão “felizes para sempre” ao lado da fonte inesgotável de toda a felicidade – o SENHOR. Esta é a verdadeira História que temos de contar a nós mesmos e aos que nos rodeiam – o Evangelho. Precisamos ouvi-lo constantemente e de forma saudável através de um ensino fiel das Escrituras, e precisamos anunciá-lo aos que nos rodeiam, pois é da cruz de Cristo que vem a verdadeira libertação que a humanidade anseia. Nesta História não há espaço para pessimismo, nem para um otimismo ilusório ou forçado, mas um otimismo real e verdadeiro, fruto do Evangelho e dos seus benefícios que começamos a desfrutar nesta vida e plenamente os desfrutaremos por toda a eternidade ao lado do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

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1R.C. Sproul, Filosofia para iniciantes, São Paulo, Vida Nova, 2002, p. 157.
2Nietzsche, A origem da tragédia, Lisboa,  Lisboa Editora, 2004, p. 63.
3Idem, p. 67.
4https://luizfelipeponde.wordpress.com/2014/05/12/true-philosopher-05-05-2014/
5http://www.hitfix.com/whats-alan-watching/true-detective-creator-nic-pizzolatto-looks-back-on-season-1/1
6http://www.firstthings.com/blogs/firstthoughts/2014/03/form-and-void-in-true-detectives-finale
7http://forward.com/the-assimilator/194572/theology-of-true-detective/

1 COMENTÁRIO

  1. Muito interessante sua an lise.
    Sou estudante de antropología na Universidade de Buenos Aires e uma coissa que estou buscando são literaturas cristãs que argumentam com e contra as linhas de pensamento materialista histórico e seus antecendentes teóricos. Você tem algum ponto de vista sobre as influencias e vertentes marxistas, como por exemplo Foucalt e Gramsci, que incidem em nossa cultura comtemporanea?

  2. A s‚rie ‚ muito boa, excelente. O artigo melhor ainda pois, através da graça comum, faz analogia a busca do homem que tem um vazio do tamanho de Deus.

    p.s: A segunda temporada não ‚ tão boa como a primeira (pelo menos por enquanto).

  3. Ol , gostei muito da crítica! Assisti a s‚rie e me mantive focado sempre em seu texto!
    Mesmo o texto est  sendo focado em dois personagens e na mudança entre eles. Achei interessante poder compartilhar sobre o Rei Amarelo que também influenciou Nic Pizzolato.
    Obra-prima de Robert W. Chambers, O Rei de Amarelo ‚ uma coletânea de contos de terror fant stico publicada originalmente em 1895 e considerada um marco do gênero. Influenciou diversas geraçäes de escritores, de H. P. Lovecraft a Neil Gaiman, Stephen King e, mais recentemente, o escritor, produtor e roteirista Nic Pizzolatto, criador da s‚rie True Detective, cujo mist‚rio central faz referência ao obscuro Rei de Amarelo. O título da coletânea faz alusão a um livro dentro do livro – mais precisamente, a uma peça teatral fictícia, A edição de O Rei de Amarelo trazida ao Brasil pela Intrínseca reúne, além dos contos do Rei, seis outros que alternam entre o sobrenatural e a realidade. Texto extraído da crítica editora saraiva.

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