Temos uma habitação celestial: 2Coríntios 5.1

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Os dez primeiros versículos do capítulo 5 procedem da discussão de Paulo sobre vasos de barro (4.7), a ressurreição (4.13-15), e o visível e o invisível (4.18). O discurso sobre a morada do crente com o Senhor é o clímax de toda essa discussão. Entretanto, isso não significa que o ponto culminante seja lúcido, breve e resumido. O oposto é verdadeiro; basta olharmos para as inúmeras interpretações destes dez versículos. Cada versículo tem problemas que exigem atenção e precisam ser discutidos.

Perguntas-chave:

Estas são algumas das perguntas que nos confrontam:

1.    É possível detectar nas cartas de Paulo (1Ts 4.13-18; 1Co 15) um desenvolvimento gradual de sua crença sobre a volta de Cristo?

2.    Há indicações de que Paulo está se opondo ao gnosticismo incipiente nos seus ensinos escatológicos?

3.    Nos seus ensinos sobre a imortalidade e a ressurreição, até que ponto Paulo reflete as crenças gregas e judaicas daqueles dias?

4.    Paulo fala do indivíduo ou da igreja quando se refere à ressurreição do corpo?

5.    Paulo ensina que há um estado intermediário entre a morte do cristão e a volta de Cristo?

6.    O cristão recebe na morte um corpo ressurreto como vestimenta para a alma?

7.    Paulo esperava que a segunda vinda de Cristo iria ocorrer durante a sua vida?

8.    Estará o cristão, imediatamente após a morte, para sempre com o Senhor ou será que a alma dorme até a ressurreição do corpo?

Levantamos essas questões para melhor entender o versículo 1, e os nove versículos que se seguem no capítulo 5, e para “manobrar” entre as diversas interpretações destes versículos. Embora estudiosos encontrem vários problemas em cada um desses versículos, o crente procura neles conforto e esperança quando perde um ente querido. E mesmo que as palavras de Paulo pareçam concisas e incompletas, elas têm sido e continuam sendo uma fonte de força espiritual para aqueles que sofrem. Os pastores geralmente lêem 2 Coríntios 5.1-10 nos funerais a fim de confortar os enlutados.

Ainda assim, perguntas sobre o significado desses versículos persistem. Pretendemos respondê-las na discussão do versículo 1, ainda que não necessariamente na mesma sequência enumerada acima. Examinaremos o texto e tentaremos explicar o seu significado o mais claramente possível. Analisaremos o significado de cada palavra no texto e tentaremos compreender sua relação com outras palavras do versículo e do contexto.

Texto e interpretação

5.1 Sabemos que, se for destruída a temporária habitação terrena em que vivemos, temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna no céu, não construída por mãos humanas.

Paulo começa esse versículo com a palavra sabemos (veja 1.7; 4.14; 5.11). À luz dos versículos anteriores (4.16-18), que falam da pessoa exterior e interior e da percepção do que não se vê, Paulo relembra seus leitores do seu ensino sobre a ressurreição. Ele pode dizer sabemos porque os coríntios então se lembrariam da doutrina que lhes ensinou pessoalmente e sobre a qual lhes escreveu depois. O seu ensino não apresenta diferença ou variação daquilo que ele ensinou em 1Tessalonicenses 4 e 1Coríntios 15. Nada nos primeiros escritos paulinos entra em conflito com o seu presente discurso, nem podemos detectar qualquer desenvolvimento gradual na doutrina da ressurreição. Esse capítulo não fornece qualquer evidência de que ele precisou corrigir ou mudar o seu ensino inicial.1

O conhecimento da vida do além não se origina nas nossas mentes humanas. É pelo Espírito Santo que Deus nos dá convicção de nossa própria imortalidade, para que possamos ir ao encontro da morte com alegria.2 Mas o que nós sabemos? Paulo responde confiantemente, “temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna no céu, não construída por mãos humanas”. Antes de olhar mais de perto a sua resposta, temos que considerar a oração condicional que a qualifica.

Será que Paulo reflete a terminologia gnóstica nesse versículo nas palavras, “se for destruída a temporária habitação terrena em que vivemos, temos da parte de Deus um edifício”? Alguns estudiosos enfatizam que Paulo teve que se opor ao gnosticismo, o qual ensinava que a matéria é má e o espírito bom. Desta forma, o espírito se desfaz do seu revestimento na hora da morte e se liberta.3  A questão, entretanto, não é se Paulo estava se opondo ao gnosticismo incipiente e portanto usou terminologia gnóstica para ser eficaz em seu debate. Embora a filosofia grega ensinasse que esta vida terrena do corpo se comparava a habitar uma tenda, eu prefiro afirmar que aqui Paulo estava expondo um pano-de-fundo vétero-testamentário. Ele se referia à tenda da congregação de Moisés, que ficava fora do acampamento dos israelitas. Nesta tenda Deus falou com Moisés face à face (Êx 33.7-11). É esta tenda terrena que posteriormente veio a ser o tabernáculo, refletindo a presença de Deus entre o seu povo enquanto a sua glória cobria o tabernáculo (Êx 40.34). Além disso, até as vestes sacerdotais de Arão refletiam a santidade e a glória de Deus (Êx 28.29-30, 36, 41). Entretanto, tanto o tabernáculo como as vestes revelavam transitoriedade. O tabernáculo era desmontado quando os israelitas mudavam para outro lugar, e as vestes eram removidas cada vez que se encerravam as atividades sacerdotais de Arão.4

Primeira ilustração: a tenda

A primeira ilustração que Paulo, o fazedor de tendas, utiliza é a de uma tenda. De fato, ele usa uma série de três metáforas: tenda (v. 1), vestes (vv. 2-4) e habitação (vv. 6, 8). Ele compara o nosso corpo físico a uma morada temporária. Além disso, ele poderia ter pensado na Festa dos Tabernáculos, durante a qual os judeus moravam em abrigos provisórios por sete dias, celebrando o final da colheita e comemorando a jornada dos israelitas no deserto por quarenta anos.5 A metáfora de desmontar uma tenda aponta para o final vindouro, não só de nossos corpos físicos mas de toda a nossa existência terrena. De fato, Pedro menciona a vida “no tabernáculo deste corpo”, que em breve será abandonada (2 Pe 1.13-14; cf. Is 38.12; e Sabedoria 9.15). A palavra terrena está sendo usada em contraste com celestial, como alusão ao fato de que o primeiro homem foi tirado do pó da terra (Gn 2.7; 1 Co 15.47). Eticamente indica a terra como um lugar de pecado.6

Paulo literalmente escreve, “se a nossa casa terrena desta tenda se desfizer”. Ele descreve a casa em termos de uma tenda para enfatizar a idéia de transitoriedade. A língua grega têm duas palavras para tenda, skÁnoj (skenos) e o skhn» (skene). Em todas as suas epístolas, porém, Paulo usa a primeira somente duas vezes (5.1, 4), e nunca a segunda. A probabilidade de que esta tenda será destruída como consequência de uma única ação é real, pois a morte marca o fim do corpo terreno e da vida da pessoa. Mas Paulo não sabe quando isso vai ocorrer. Se Jesus retornasse durante a sua vida, Paulo não precisaria pensar na morte.

Antes disso Paulo escreveu que experimentou uma aflição quase mortal (1.8). Certamente este incidente o lembrou da brevidade da vida e o confrontou com a perspectiva da morte antes da volta de Cristo.7  Mas isso não nos permite deduzir que no intervalo entre o escrever de 1Coríntios e 2Coríntios Paulo mudou de ideia. É difícil aceitar que por causa de sua recente aflição, Paulo não mais esperasse a volta de Cristo durante a sua própria vida. Lucas relata que Paulo sobreviveu a uma experiência quase fatal: o apedrejamento em Listra (At 14.19). O próprio Paulo faz uma lista de aflições pelas quais foram repetidas vezes exposto à morte: açoites, golpes, apedrejamento, naufrágios e perigos constantes por parte de várias pessoas e por várias causas (11.23-29). Sabendo da brevidade da vida por experiência própria, Paulo reconheceu que o evangelho tinha que ser pregado a todas as nações antes da volta do Senhor. Ele também reconhecia que a sua tarefa missionária havia apenas começado e que permaneceria incompleta quando sua morte chegasse (cf. Rm 15.20,24, 28).

Segunda ilustração: a casa

A segunda parte de 2Coríntios 5.1 tem gerado constante debate: “temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna no céu, não construída por mãos humanas”. As palavras de Paulo são enigmáticas e algumas delas difíceis de relacionar com o contexto. Se existe um contraste entre a habitação terrena e a casa eterna no céu, por que Paulo escreve usando o presente “temos”? A resposta se acha no frequente uso do tempo presente por parte dos escritores do Novo Testamento, com um significado futuro determinado pelo contexto. Entre os muitos exemplos, destaco a narrativa no Getsêmani quando Jesus fala, antes de ser preso, “Eis que o Filho do homem está sendo entregue às mãos de pecadores” (Mt 26.45). Assim como Jesus sabia que a traição estava próxima, também Paulo tinha absoluta certeza de que uma morada celestial o esperava (cf. Jo 14.2-3).

Será que a casa eterna no céu é o corpo ressurreto no momento da morte?8 Se este for o caso, então o crente uma vez morto recebe um corpo intermediário, e devemos pensar em termos de três corpos sucessivos: um corpo terrestre, um corpo intermediário e um corpo ressurreto ou transformado. Por que, então, os mortos teriam que ser ressuscitados quando Cristo voltar se já possuíssem um corpo ressurreto? As Escrituras falam somente dos nossos corpos físicos que, ou morrem e são ressuscitados na volta de Jesus, ou se encontram com o Senhor no seu retorno e são transformados (1 Co 15.42, 51; Fp 3.20-21; 1 Ts 4.15-17). A Bíblia não apresenta detalhes sobre nossa casa eterna no céu.

Admitimos que as Escrituras descrevem as pessoas na vida do além em termos das formas físicas que possuíam ao deixar essa terra. Samuel é descrito como um “ancião” (1 Sm 28.14); Lázaro no céu tem um dedo e o homem rico no inferno tem olhos e língua (Lc 16.23-24); os santos no céu têm vestes brancas e seguram palmas nas mãos (Ap 6.11; 7.9). Mas os autores das Escrituras usam linguagem antropomórfica. Ou seja, eles descrevem os mortos como seres humanos com carne e osso, pois não podem descrevê-los de outra maneira. As Escrituras afirmam claramente que os santos que já morreram são espíritos; os corpos deles voltaram ao pó da terra e os seus espíritos voltaram para Deus (Ec 12.7; Hb 12.23).9

Qual o sentido da palavra casa? A palavra é qualificada como sendo da parte de Deus, eterna, não construída por mãos humanas, no céu. Alguns estudiosos interpretam a palavra como sendo o corpo de Cristo, isto é, a Igreja. Eles indicam que o termo grego o„kodom» (oikodome, casa) se refere à Igreja e não a um corpo individual. Valem-se ainda de algumas passagens das epístolas de Paulo, especialmente 1 Coríntios 3.9 (“edifício de Deus”), Efésios 2.21 (“edifício”) e Efésios 4.12, 16 (“o corpo de Cristo”).10

Entretanto, o contexto da expressão é que determina o seu significado. Aqui o contexto da palavra casa difere das passagens que falam da Igreja. E ainda mais, toda vez que Paulo se refere à Igreja como corpo de Cristo, ele não usa um contexto futuro mas uma situação presente.11 No versículo 2, Paulo nota o nosso anseio por ser revestidos da nossa habitação celestial no tempo futuro. Esta interpretação vem a ser imprópria se já fazemos parte do corpo de Cristo (1 Co 12.13; Gl 3.27).

Outros estudiosos pensam que a casa eterna no céu é o templo de Deus que espera cada crente no momento da sua morte. Quando os cristãos entram nesse edifício, eles de fato entram no templo de Deus e estão na sua presença.12 O conceito de “não construída por mãos humanas” também aparece na descrição do grandioso e mais perfeito tabernáculo no céu. Esse lugar é a própria presença de Deus (Hb 9.11). Uma objeção a essa interpretação é que a simetria do versículo 1 sofre, porque uma habitação terrena e uma casa no céu representam não um corpo físico e o templo de Deus, mas um corpo físico e um corpo espiritual.

Talvez deveríamos pensar nessa casa no céu como um lugar que fornece uma cobertura na forma da glória divina (4.17; Rm 8.18). A glória que nos espera é de valor inestimável. E mesmo que entremos na presença de Deus onde seremos revestidos de glória, esperamos ansiosamente a redenção dos nossos corpos, ou seja, a ressurreição dos nossos corpos (Rm 8.23).

Conclusão

A conexão entre o parágrafo anterior (4.16-18) e este versículo é indisputável. Paulo falou sobre o homem exterior e interior, os problemas temporários e a glória eterna, as coisas visíveis e invisíveis. Agora, em 1 Coríntios 5.1, ele fala da habitação terrena, i.e., os nossos corpos físicos que vêm ao mundo pelo esforço humano. Ele contrasta a habitação temporária com uma casa permanente que se origina em Deus e que pertence a uma ordem totalmente diferente. A casa é a própria presença de Deus que envolve o crente nos portais do céu com glória eterna. Paulo ensina que no caso dele morrer antes de Jesus retornar, a sua alma entraria e moraria no céu sem o corpo até a ressurreição do seu corpo na consumação dos tempos.

4 COMENTÁRIOS

  1. Olá queridos irmãos. Que a graça e a paz do Senhor Jesus estejam sobre suas vidas.

    Este artigo é uma pérola. Gostaria de receber o artigo em inglês, se for possível. Estou fazendo um TCC de pós-graduação e pela Faculdade Batista Teológica de São Paulo e estou defendendo justamente essa tese, a de que o corpo glorificado é a morada celestial de João 14.2 e 23 (moné). Ficaria eternamente grato, pois é o primeiro teólogo que encontrei depois de começar a minha pesquisa. Certamente me servirá de referencial teórico.

    Desde já agradeço.
    Pr. Saul Silmar

  2. Um adendo. Não concluí a ideia da postagem primeira postagem. Quando disse que é o primeiro teólogo que encontrei, é o primeiro que encontrei depois de pesquisar mais de cinquenta comentários bíblicos expondo essa interpretação. Por gentileza, se puder me encaminhar o mais breve possível, e agradeço de coração. Apresentarei minha pesquisa no final de fevereiro de 2024.

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