Sacrificar a Moloque ou desestatizar? A encruzilhada das instituições cristãs de saúde na Irlanda

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No capítulo 20 do livro de Levítico, a Bíblia condena a prática do sacrifício de bebês ao deus pagão Moloque. Como esse é um capítulo que trata da ética sexual do povo de Israel, a ligação entre o culto a Moloque e a prática do aborto tem sido feita ao longo da história cristã. Agora que a cultura ocidental tem abandonado seu legado cristão, a prática do aborto tem sido defendida como normal e até mesmo necessária na implementação de políticas públicas de saúde.

Isso apresenta um dilema para os hospitais e demais instituições cristãs de saúde que se veem debaixo de marco regulatório. Muitas dessas organizações contam com alguma ajuda governamental e deverão repensar essa situação caso desejem continuar atuando. O caso irlandês ilustra muito bem esse dilema, que poderá eventualmente ser também vivenciado na América Latina, onde políticas pró-aborto têm entrado em pauta.

Em maio, a população irlandesa decidiu anular uma emenda constitucional que restringe a legalidade do aborto somente aos casos em que a vida da mãe estivesse em risco. A Irlanda estuda, agora, uma mudança na lei que permitiria a indução do aborto por qualquer motivo dentro de um prazo de até 12 semanas.

A notícia foi um choque por conta da predominância de uma população nominalmente católica naquele país. Por meio de documentos oficiais, a igreja de Roma tem se manifestado historicamente contrária à prática do aborto. Inclusive o próprio Papa Francisco, considerado por muitos um progressista, chegou a comparar o aborto à eugenia praticada pelos nazistas.

Poucos dias se passaram desde o referendo irlandês, mas o Primeiro-Ministro Leo Varadkar já tem anunciado algumas medidas de implementação. Ele deixou claro que nenhuma instituição médica que receba fundos do governo terá a prerrogativa de se recusar a fazer abortos. Mesmo os hospitais cristãos – que, naquele país, são numerosos – terão que praticar o aborto caso ele seja requisitado por uma paciente dentro dos parâmetros da nova lei.

No longo prazo, será insustentável para uma instituição religiosa manter-se fiel aos seus princípios que contrariam a implementação dessa política pública. Embora médicos e outros profissionais de saúde tenham o direito de dizer não para qualquer pedido que viole sua consciência, as instituições como um todo serão provavelmente multadas ou perderão o direito de funcionar ao exercerem a desobediência civil.

O assunto é extremamente delicado e mostra um lado sombrio e contraditório da mudança cultural recente e das tendências políticas atuais.

Por um lado, essa exceção admitida pelo governo irlandês atribui ao indivíduo a liberdade de atender ou não à demanda pelo aborto. Parece reafirmar a bastante tradicional inviolabilidade da consciência individual, o que ainda garante um espaço para pessoas de fé continuarem no setor de saúde irlandês sem temer demissão por justa causa.

Só que nem essa garantia é vista como absoluta, e fatos recentes mostram por quê. Não foi há muito que soubemos da decisão da Suprema Corte norte-americana de garantir a liberdade de consciência e religião a um confeiteiro que não quis criar um bolo para uma festa celebrando o casamento entre dois homens. A decisão causou polêmica porque a opinião pública tem passado a relativizar a liberdade de consciência em prol do avanço da agenda progressista. Do ponto de vista político, nada parece indicar com firmeza que esse direito continuará sendo visto como um pilar da democracia ocidental.

Por outro lado, estamos assistindo ao princípio do fim das instituições confessionais de sociedade civil. É justamente a âncora religiosa da missão de um hospital (ou orfanato, ou escola) que a diferencia das instituições não-confessionais no mesmo setor. Em um futuro próximo, veremos essa missão ser reformulada com uma linguagem secular, até que a imposição governamental de contradizer na prática a fé abraçada pela instituição deixe de ser aparente.

Uma saída que eu particularmente acharia viável seria a instituição em questão se recusar a receber qualquer financiamento público, o que lhe traria maior autonomia e proteção. Só que pouquíssimas entidades teriam condições de sobreviver heroicamente assim.

Escrevendo para o Catholic Herald, Matthew Schmidtz culpa o capitalismo democrático por essa situação. A ideologia da liberdade absoluta de escolha teria montado um ambiente em que seria possível relativizar até mesmo o valor da vida em relação ao da liberdade. Esse argumento não cola no caso da Irlanda, por conta principalmente de três fatores. O primeiro é que, como nota o padre Ben Johnson, a Irlanda conta com capitalismo e democracia há muito tempo e só agora resolveu dar essa guinada. O segundo é que, como mostraram as pesquisas de intenção de voto antes do referendo, a parcela mais religiosa da população mostrou uma preferência clara por manter a restrição ao aborto. É a secularização da cultura europeia em geral que tem substituído os valores tradicionais por preferências mais alinhadas com o humanismo pós-moderno que pode ser responsabilizado pela opção de voto do restante dos eleitores. A decisão do povo irlandês de trilhar a senda progressista reflete uma secularização da sua sociedade. Forçar o aborto goela abaixo às entidades religiosas reflete a ascensão de uma nova religião como no resto da Europa: a religião civil humanista. Terceiro, como nota o padre Johnson, a mídia irlandesa fez uma campanha agressiva em prol do voto que acabou vencendo.

Nessa encruzilhada, o setor de saúde irlandês que tenha vinculação religiosa deverá decidir se continuará absorvendo financiamento estatal em troca de implementar as novas políticas públicas, ou se tentará eliminar essa dependência ao governo. É um dilema entre servir a Moloque e desestatizar. Como muitas dessas instituições não são sustentáveis sem essa ajuda, elas terão que fechar as portas. Isso custará muito à sociedade irlandesa. Para evidenciar ainda mais esse custo, John Zmirak (dentre outros) defende uma “abordagem de Sansão” em sacrifício pela causa do combate à cultura de morte: os hospitais seriam não só fechados, como também dinamitados, e não vendidos para que outro grupo passe a implementar o infanticídio onde antes se promovia a vida.

Toda essa discussão deixa claro que o capitalismo certamente não deve ser culpado por essa situação dramática, e sim o convite a uma parceria, feito ao governo há muito tempo por essas instituições religiosas, para que pudessem crescer e ampliar o seu atendimento à população.

Na maioria das vezes, continuar pequeno é o preço que se paga pela autonomia, inclusive, para permanecer fiel aos princípios. Essa é uma lição que as instituições religiosas de sociedade civil na Europa e América do Norte têm aprendido às duras penas. É uma lição que os cristãos na América Latina terão que engolir em breve.

Referências bibliográficas

Johnson, Ben. “‘Satanic’ capitalismo brought abortion to Ireland: First Things editor” Acton Institute Transatlantic Blog, 8 de Junho de 2018. Disponível em: https://acton.org/publications/transatlantic/2018/06/08/satanic-capitalism-brought-abortion-ireland-first-things

Lyman, Eric J. “Pope: abortion is ‘white glove’ equivalent to Nazi crimes,” USA Today, 16 de Junho de 2018. Disponível em: https://www.usatoday.com/story/news/world/2018/06/16/pope-francis-abortion-equivalent-nazi-eugenics-crimes/707661002/

New, Michael J. “An Irish exit poll finds nuanced views about legal abortion,” National Review, 1 de Junho de 2018. Disponível em: https://www.nationalreview.com/corner/ireland-abortion-referendum-polls-show-ambivalent-voters/

Schmitz, Matthew. “St John Paul II’s chilling prophecy has been fulfilled in Ireland,” Catholic Herald, 7 de Junho de 2018. Disponível em: http://catholicherald.co.uk/issues/june-8th-2018/st-john-paul-iis-chilling-prophecy/

Zmirak, John. “What Ireland needs now: piles of rubble, where Catholic hospitals once stood,” The Stream, 15 de Junho de 2018. Disponível em: https://stream.org/ireland-needs-now-piles-rubble-catholic-hospitals-stood/

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