Resenha crítica da obra Contra a idolatria do Estado

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Introdução

Contra a Idolatria do Estado – O papel do cristão na política, é uma excelente obra que une boa teologia com uma equilibrada visão política, escrito pelo pastor Franklin Ferreira. O livro é editado por Edições Vida Nova, em 2016, possuindo um número total de 280 página. Recebeu o endosso de renomados teólogos, tais como Solano Portela e Jonas Madureira, além de nomes como o da jornalista e âncora do principal telejornal do SBT, Rachel Sheherazade e do escritor e filósofo Luiz Felipe Pondé, que se denomina uma pessoa não agraciada com o dom da fé, ou seja, não é um cristão professo. Em seu endosso, Pondé escreve o seguinte: “O livro do Franklin Ferreira é exemplo de como a teologia pode dialogar com o pensamento político sem ter vergonha de dizer quem é, coisa rara hoje em dia”.

O livro apresenta a seguinte estrutura: Agradecimentos, Introdução e 8 capítulos divididos em 4 seções. Por fim, a Declaração Teológica de Barmen é colocada como apêndice. O conteúdo e o contexto histórico da declaração supracitada são trabalhados dentro dos capítulos, todavia, é publicada na íntegra após o capítulo que conclui a obra. Deixando de lado a introdução e o apêndice, esta resenha – em sua abordagem – contemplará apenas a substância dos capítulos desenvolvidos por Ferreira.

Primeira parte: fundamentos bíblicos

Iniciando o livro com a história de Ester no Capítulo 1, Ferreira tenciona que a angústia do povo judeu, sob a ameaça do extermínio, e a atuação política de Ester e Mardoqueu para evitá-lo, sirva de exemplo para a atuação política dos cristãos no momento crítico de nossa conjuntura sociopolítica. Ferreira destaca a oração e a dependência a Deus como características indeléveis do cristão que anseia atuar no serviço político. Para o autor, líderes que tenham as qualidades de servo, que sejam encorajadores e visionários devem compor a equipe do político cristão para bem assessorá-lo e ajudá-lo na construção de projetos que sejam agentes de transformação social.

Ferreira também argumenta que o conhecimento de diversas disciplinas acadêmicas é de muita utilidade para que o político cristão desenvolva uma cosmovisão robusta o suficiente para identificar os pressupostos filosóficos (e também religiosos) e assim, responder satisfatoriamente a sociedade, sem deixar de lado a sua base cristã. O autor parece endossar o conceito habersiano1da tradução cooperativa dos termos religiosos. Em suma, trata-se de tornar acessível os argumentos que mesmo oriundos de um credo, seriam transmitidos a uma sociedade plural através de uma linguagem desvinculada da terminologia religiosa. Ferreira nos lembra de que o livro de Ester não cita em nenhum momento o nome de Deus e sugere, a partir de uma explicação secundária, que a ausência nos remete a ideia de que a linguagem da fé não precisa e nem deve estar presente no âmbito das esferas políticas2.

No segundo capítulo, há uma interpretação política da Carta aos Romanos, interpretação que sofre uma influência direta do teólogo alemão Karl Barth. É um capítulo muito rico que demonstra o quanto que a mensagem do Evangelho confronta o culto à personalidade política. Nele somos informados que em nenhum momento o termo “poder” é usado para designar as autoridades governamentais. Apenas Cristo é o detentor do poder e, por isso, toda e qualquer autoridade política está debaixo do seu senhorio. Para Ferreira, embasado em outros comentaristas, o conteúdo da epístola paulina traz em seu bojo uma teologia subversiva, negando aos imperadores de Roma a deificação. A mensagem da carta é, em resumo, um encorajamento para que os crentes romanos mantenham a sua devoção exclusivamente à pessoa de Cristo e sejam leais ao evangelho.

É ainda no segundo capítulo que a passagem de Romanos 13.1-7 é analisada. Esta passagem foi e é vista por muitos como uma orientação conformista, pois, indica que os cristãos devem obedecer as autoridades, que são designadas por Deus. Acontece – como Ferreira bem demonstra – que a obediência é um dever desde que a autoridade seja legítima. O cristão fica desobrigado a obedecer a um governo que desconsiderou a designação divina da sua função. Quando uma ordem governamental entra em conflito com uma ordem de Deus, ou quando não exerce sua autoridade para cumprir o propósito de punir o mal e recompensar os que fazem o bem (Rm 13.3), cumpre ao cristão desobedecer tal governo. Assim sendo, diante do contexto em que a carta foi escrita, em que havia o culto ao Imperador, os verdadeiros cristãos foram martirizados por não sacramentar o poder de César e não reconhecer outro Senhor que não fosse Cristo Jesus. O conceito de autoridade derivada é esclarecedor:

O ponto central da passagem é que o único absoluto não são as autoridades instituídas, e sim Deus, que as estabelece. Observe o seguinte: mesmo que Paulo lembre o cristão de seu dever de honrar o Estado, ele relativiza o “poder” deste. Se o Estado é a autoridade constituída, isso ocorre porque as autoridade é derivada de Deus, que é a autoridade máxima e a única fonte de autoridade (p.73).

Segunda parte: questões conceituais

Esta seção é polêmica por questionar alguns conceitos repetidos alhures pela opinião pública. Uma das principais polêmicas é traçar um comparativo entre o nazismo e o comunismo, pois, para muitos o nazismo é conceituado como sendo conservador e de direita. Ferreira vai de encontro a esta concepção afirmando que os regimes totalitários sob a tutela de Stalin e Hitler, que respectivamente governavam a extinta União Soviética e a Alemanha, tratam-se de “irmãos gêmeos heterozigotos”. O autor se baseia em autores como João Pereira Coutinho e Hannah Aredent, citando apenas duas de um variado leque de outras fontes, para fundamentar o seu argumento. Este é o mote do excelente terceiro capítulo.

Tratando da divisão esquerda-direita, o capítulo seguinte traz uma apologia clara ao modelo político que tem por base a democracia e uma economia liberal, ideologia que ainda não é popular no Brasil, visto que – com a exceção do partido Novo, recém-criado -, todas as outras legendas partidárias são de esquerda ou centro, isto é, em maior ou menor grau pregam uma regulamentação Estatal. Ferreira classifica a esquerda como sendo um modelo onde o Estado se agiganta, transcendendo a esfera que lhe é de direito governar. Ele continua demonstrando que a ideologia esquerdista e a sua aplicação nos regimes comunistas são de pouca ou nenhuma liberdade individual. Incluindo uma espécie de cerceamento de opinião, onde a crítica ao esquerdismo é abafada pelos engenheiros sociais defensores deste espectro ideológico.

(…) outro aspecto do esquerdismo é somente tolerar crítica ao partido-Estado em dois casos: se elas vierem de seus quadros ou se alvejarem igualmente o “outro lado”, ou seja, a direita – de representação inexistente no Brasil. Essa seria uma prova de suposta “neutralidade” política, uma noção epistemológica profundamente ingênua e moralmente errada. Essa “isenção” no debate é apenas um jeito de ficar do lado do dono do muro (p.117).

Analisando o contexto político brasileiro, Ferreira conclui que está arraigado no pensamento brasileiro um antiliberalismo, visto que todos os governos desde a proclamação da república adotaram medidas protecionistas e um Estado regulador. Aqui temos a idolatria estatal que é rechaçada logo no título da obra, pois, é na ideologia esquerdista que o Estado adquire contornos messiânicos. Ferreira salienta que a lealdade do cristão, assim como a sua esperança, não pode ser colocada em nenhum sistema de governo ou ideologia política. Nossa esperança e lealdade devem ser depositadas exclusivamente em Jesus Cristo.

Nas Escrituras não há um único texto que apoie a ideia de que o cristão deve depositar a esperança no poder do Estado ou ser subserviente a um governo autoritário ou totalitário. A mensagem poderosa do evangelho (Rm 1.16), que tem o poder de produzir mudança social profunda, não depende do poder ou do controle do Estado (p. 121).

Terceira parte: direções teológicas

O capítulo 5, que dá início a terceira parte do livro, é uma recapitulação da “disputa pela igreja”, como ficou conhecido o embate entre os líderes da Igreja Alemã, que estavam cedendo aos postulados nazistas e a tutela estatal dentro das igrejas, e os teólogos e pastores que resistiram a esta interferência e fundaram o que veio a ser chamado de Igreja Confessante. Dois nomes se destacam entre os que resistiram, são eles o de Barth e o de Bonhoeffer, o primeiro exilado e o segundo sentenciado a morte. Relatando nuances da disputa e pinçando trechos da Declaração de Barmen que denunciou e repudiou a síntese entre o evangelho e a ideologia nazista, o objetivo do autor neste capítulo é demonstrar que a integridade do conteúdo da fé cristã é inegociável. Nem mesmo a unidade da igreja pode ser dada como desculpa para tolerar a falsa doutrina. Os pastores que aderiram a Igreja Confessante foram acusados de causar divisão na igreja alemã, mas como Ferreira observa, às vezes, é desta forma que a Igreja é purificada, através da perseguição. O capítulo é encerrado com um trecho da Declaração de Culpa de Stuttgart, em que os líderes da reconstruída Igreja da Alemanha reconhecem que erraram por não terem sido mais combativos contra o regime de Adolf Hitler.

Já o capítulo 6 endossa a perspectiva reformada da Soberania das Esferas, conceito desenvolvido pelo teólogo, jornalista e político holandês Abraham Kuyper. Após analisar criticamente a visão dos “Dois Reinos”, comum entre os luteranos, e a perspectiva dispensacionalista, Ferreira passa a tratar da concepção reformada que pode ser esboçada através do seguinte gráfico:

Como pode ser visto, Deus transcende toda instituição terrena, que tem a sua autoridade subsidiada nEle. Não há nenhuma esfera que teve o seu poder derivado de outra. Todas derivam de Deus e tem uma área de influência delimitada, apesar de serem interligadas, elas não estão submissas a nenhuma outra, são autônomas entre si. A soberania derradeira que abarca todas as esferas pertence somente a Deus.

Concluída a exposição do conceito kuyperiano da Soberania das Esferas, Ferreira diz que os valores republicanos estão historicamente vinculados aos cristãos, que os defendem por ver neles concordância com o ethos do cristianismo. Esta conclusão é obtida através de inferências da Escritura.

Quarta parte: aplicações práticas

Chegando aos dois capítulos que encerram a obra, lemos sobre a ineficiência estatal, sobretudo do governo petista em zelar pela segurança dos cidadãos brasileiros. Ferreira nos mostra números alarmantes do aumento da violência. Ele critica os altos impostos que não são revertidos para a segurança e nem para o deleite da sociedade. Outra questão bastante criticada é a ideologização promovida pela esquerda no debate sobre a violência. Ao dizer que o bandido é vítima da sociedade, esta ideologia vitimiza o criminoso ao invés de puni-lo. Ferreira expõe a deficiência do sistema prisional brasileiro e a instrumentalização dos Direitos Humanos pela intelligentsia a serviço do Estado.

E qual seria a atuação da igreja frente ao aumento da violência? Ferreira sugere que ela ore e que permaneça fiel a pregação expositiva das Escrituras, pois esta gera vida e é marca da igreja verdadeira. O livro é finalizado com dez pontos elencados a respeito de uma agenda cristã para um voto consciente.

Considerações finais

Contra a Idolatria do Estado é leitura que deveria ser cobrada a todo pastor. O livro deveria ser endossado nos seminários, pois, temos uma carência no segmento cristão evangélico brasileiro referente a uma visão política que esteja embasada numa cosmovisão escriturística. A obra é bíblica, mas não apenas isso, ela é riquíssima em matéria de referencial teórico. Ferreira se apoia em diversos autores e fontes, colocando a teologia no cerne da esfera pública. São 19 páginas de bibliografia, demonstrando a profundidade da pesquisa realizada pelo autor.

A obra também se destaca por não ter equivalentes. Até então, nenhum teólogo brasileiro havia se lançado a escrever um livro sobre política tecendo críticas pontuais direcionadas a um governo ainda vigente e defendendo um modelo político-econômico que fosse liberal[3]. Embora existam alguns artigos em periódicos e na blogosfera, nada que se compare a proposta da obra de Ferreira, que preenche uma lacuna de nossa literatura teológica. É importante que mais teólogos lancem luz a este tema, produzindo outros escritos que sirvam de referência para a construção de uma cosmovisão cristã no âmbito político.4

Àqueles que não têm familiaridade com obras políticas podem ler Contra a Idolatria do Estado, fazendo desta obra uma introdução ao assunto. Embora existam conceituações que possam parecer estranhas ao leitor primário, Ferreira preocupou-se em estruturar o livro de uma maneira bem didática, permitindo aos iniciantes nos estudos da política adquirirem uma compreensão geral de seu argumento basilar.

Em outubro, o país vivenciará sua primeira eleição presidencial após a queda do Governo Dilma. É importante que o eleitorado vá até as urnas cientes do que os candidatos tem a oferecer, sobretudo os cristãos precisam estar atentos e não se deixarem ludibriar por promessas vãs, que escondem uma agenda que vai de encontro ao que a Bíblia apregoa. Portanto, Contra a Idolatria do Estado, sendo lido e bem explanado, virá a ser um ótimo instrumento para auxiliar o eleitorado cristão a não sofrer com a esquizofrenia política, mas, ao invés disso, votar de acordo com os princípios bíblicos que lhe norteia.

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1Termo derivado do nome do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, que dedicou a sua vida a estudar a democracia e desenvolveu em suas obras o conceito de “Esfera Pública”.
2A explicação primária para a ausência do nome de Deus no livro de Ester seria o nível de assimilação cultural. Ester e Mardoqueu representam uma parte dos judeus que preferiram continuar vivendo no centro da Pérsia ao invés de regressar a Jerusalém nos tempos de Ciro II, que era avô do rei Xerxes, o governante que desposou Ester.
3É preciso entender que liberal neste caso significa a posição que defende as liberdades individuais e o mínimo de interferência estatal, não tendo nenhuma relação com o liberalismo teológico e nem se referindo à frouxidão dos padrões morais bíblicos.
4Também gostaria de recomendar a obra Analisando a Crítica Marxista – de Prometeus a Proteu. Uma abordagem bíblica e filosófica feita com a competência que só um dos grandes pensadores que temos na atualidade poderia desenvolver. O livro é breve, mas seu conteúdo é riquíssimo e a primeira leitura não é suficiente. Livro que precisa ser relido por mais de uma vez. A crítica ao pensamento de Marx é feita em cima do conceito do autoengano, conceito este que o próprio Marx fez uso para criticar a religião. Mas na obra vemos o Dr. Davi Charles Gomes usar com maestria tal conceituação contra o próprio Marx. Foi lançado em 2017 pela Editora Mackenzie.

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