O sentido transcendente do sacrifício

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1991
O salmo 51 e o conceito de justiça da graça e da comunhão

Abre, Senhor, os meus lábios, e a minha boca entoará o teu louvor. Pois não desejas sacrifícios, senão eu os daria; tu não te deleitas em holocaustos. Os sacrifícios para Deus são o espírito quebrantado; a um coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus. Faze o bem a Sião, segundo a tua boa vontade; edifica os muros de Jerusalém.
Então te agradarás dos sacrifícios de justiça, dos holocaustos e das ofertas queimadas; então se oferecerão novilhos sobre o teu altar

Salmos 51.15-19

A festa da Páscoa é um ritual simbólico que nos lembra hoje mais o coelhinho e o chocolate do que o seu significado real, que é tema central do cristianismo: o sacrifício vicário de Jesus Cristo. O que ele tem a ver com o salmo 51? Muito. Na verdade, esse trecho do salmo que começa com o seu ápice representa uma declaração de Davi da gratuidade da salvação. Deus não quer os sacrifícios que outros deuses e homens demandam. Nem mesmo se contenta com os sacrifícios recomendados em Números 4.11, por exemplo. O que ele mais quer é súplica pelo perdão. E um cair de joelhos no reconhecimento de que Deus é Deus e que carecemos desesperadamente do seu Mediador para interceder por nós junto a ele. Por isso é que o salmo 51 é igualmente, como aponta Calvino, uma declaração da nossa dependência total e completa, mas esperançosa, de agradar à pessoa de Jesus Cristo.

Surgem aqui dois problemas. Primeiro: parece que Davi está negando a prática do sacrifício recomendada por Deus através dos profetas ao povo e que ainda era atual em sua época. Como Davi está contradizendo o que dizem as melhores tradições da Tora, desde Caim e Abel? Quanto a esse ponto, Kidner responde que, para Davi:

Deus não está rejeitando os próprios sacrifícios que Ele ordenou, e muito menos declara que podemos fazer nossa própria expiação …, e, sim, à gama total do culto e da adoração, que deve ser, ao invés de simbólica, uma realidade pessoal, pois a oferta pacífica …, expressa comunhão, e o holocausto, dedicação. Em tudo isso, Deus está procurando um coração que sabe quão pouco conhece, e quão grande é a sua dívida.

(Kidner, 1992, p. 215)

Em segundo lugar, Calvino também identifica a questão de que se Deus exige o nosso coração, seríamos, então, salvos pela penitência, como acreditam alguns católicos? Bem pelo contrário, nota ele, o coração do contrito está tão moído e despedaçado que rejeita qualquer mérito ou o seu perdão como justa paga pelo sacrifício humano. O compungido é o que se humilhou de verdade, sem a hipocrisia muitas vezes associada aos sacrifícios. O sacrifício do coração contrito é mais excelente e eficiente para o perdão dos pecados porque envolve um temor do Senhor que não coaduna com qualquer soberba. É o “princípio do saber”, como se diz em Provérbios (1.7). Esse inclinar dos joelhos que tremem diante da grandeza de Deus é a única forma de alcançar a sua misericórdia, o que não exclui a fé, “suplicando a sua graça com as confissões, ingênuas da nossa própria falta absoluta de recursos próprios” (Calvino, texto disponível em http://www.ccel.org/c/calvin/ , 20/3/2006).

Quando Davi se refere, em seguida, a Jerusalém e aos muros, é claro que a cidade já está firmemente construída sobre um monte – ou cadeia de montanhas, como o salmista comenta também em Salmos 87.1. Acontece que ela já havia sido por diversas vezes ameaçada de destruição, razão pela qual precisava ser fortalecida, e Davi tinha certeza de que a cidade estava longe de estar completa. Faltava-lhe o detalhe principal, que era o tão sonhado templo, que não necessariamente é representativo da igreja somente, mas ao Reino vindouro de Cristo.

Parece estranho Davi mencionar a cidade bem no meio do cântico, fazendo-nos ter a impressão de mudança radical de assunto. Mas isso acontecerá somente se deixarmos de levar em conta que a grande ameaça de retirada do Espírito de Davi estava muito relacionada também à sua missão como monarca da cidade. E as conseqüências do não atendimento da sua súplica da parte de Deus seriam simplesmente desastrosas. Calvino levanta esse ponto, do que poderia ter acontecido com a autoridade de Davi nesse caso. Mas ele reitera que essa possibilidade simplesmente não existe, precisamente pela atitude de contrição do ungido de Deus. Calvino resume esse ponto com as seguintes palavras:

Desde que consigamos obter reconciliação com Deus, podemos esperar não apenas sermos inspirados de confiança na nossa oração pela nossa própria salvação, mas também poderemos ser admitidos com intercessores da parte de outros, e até de sermos promovidos para honras ainda maiores, de recomendar às mãos de Deus a glória do Reino do Redentor.

(Calvino, texto disponível em http://www.ccel.org/c/calvin/ , 20/3/2006)

O último versículo pode aparentemente se contradizer com todo o resto, quando Davi fala dos sacrifícios de justiça, reabilitando os sacrifícios rituais. Mas se considerarmos o que é dito no salmo 4.5 – “Oferecei sacrifícios de justiça e confiai no SENHOR” –, entendemos que está se referindo a um tipo especial de sacrifício. Para Calvino, se referem aos mesmos sacrifícios e rituais de sacrifício praticados dos judeus, mas agora combinados com o coração contrito, ou seja, em frangalhos, quebrado e compungido, que significa contristado, apagado, empalidecido, constrangido a fazer algo, mas sem perspectivas de poder fazê-lo.

A nosso ver, trata-se dos mesmos sacrifícios, sim, mas agora de uma pessoa justificada, ou seja, considerada justa e regenerada. Além disso, esses sacrifícios também podem ser uma alusão, como de fato eram os sacrifícios praticados na época de Davi, ao sacrifício vicário do próprio Cristo, que é o que interessa nessa passagem. Nesse sentido, Agostinho lembra que os sacrifícios justos nos salmos são os de louvor e adoração.

Assim, por mais que o salmo falasse de culpa e pecado, como Bonhoeffer destaca, é preciso vê-lo contra o pano de fundo mais amplo dos salmos em geral, que dificilmente falam em culpa, pressupondo sempre o perdão. Nas poucas vezes em que se fala de culpa, ela está relacionada a situações específicas, a algo inesperado, que acaba levando ao arrependimento. Nunca se trata de situações insolúveis ou sem esperança. Nesse sentido, a inocência tem tanto espaço na Bíblia quanto a culpa. E ambos podem ser exagerados e tratados de forma errônea ou correta. A justiça de que trata o salmo 51 é, assim, a justiça da graça e da comunhão estabelecida na cruz de Cristo, e não da condenação, como se lê em Romanos 8.1.

Referências:

AGOSTINHO, Santo. Comentários aos salmos . São Paulo: Paulus, 1998 (“Coleção Patrística”).

BONHOEFFER, Dietrich. Orando com os salmos . Encontrão: Curitiba, 1995.

CALVINO, João. “Comentário aos salmos”, disponível em http://www.ccel.org/c/calvin/ , 2006.

GIRARD, Marc. Como ler o livro dos Salmos , 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1992.

KIDNER, Derek. Salmos 1-72 , 3ª reimpressão. São Paulo: Vida Nova, 1992.

LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples . Martins Fontes: 2005.

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