O problema do mal e do sofrimento: uma abordagem intelectual e pastoral

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Introdução
Há pouco mais de dois anos, em janeiro de 2013, um incêndio acidental na boate Kiss em Santa Maria/RS matou 242 pessoas, a maioria jovens entre 18 e 25 anos, e deixou centenas de feridos. Vivendo no mesmo estado deste trágico acontecimento, os jovens da minha igreja acompanharam os fatos em primeira mão, em meio a grande comoção.

No domingo seguinte aos acontecimentos, durante uma aula da escola dominical, começou o debate: se Deus é bom e soberano, como podemos explicar situações como esta? Não poderia Deus ter evitado este trágico acontecimento que ceifou a vida de tantos jovens que estavam apenas se divertindo e que não tinham culpa do que aconteceu? Aliás, diante de tantas tragédias, como o Tsunami que varreu a Ásia anos atrás, terremotos terríveis em vários lugares do mundo, aparentemente sem nenhuma relação com a ação e pecado humanos, como explicar que servimos a um Deus todo amoroso e todo poderoso?

Lembro que naquela aula apelei para a soberania e controle de Deus sobre toda a criação e nossa ignorância quanto a seus planos. Mas nem todos os alunos ficaram satisfeitos. Um deles sugeriu que talvez devêssemos rever a ideia de soberania total de Deus sobre os acontecimentos. Nem tudo o que acontece ele deseja, logo, ele talvez não controle tudo. Essas ideias não foram bem aceitas pela classe, mas semearam mais dúvida e confusão. Muitos jovens estavam realmente impactados com o sofrimento daquelas famílias do interior do estado que perderam seus filhos, irmãos e até pais. Como lidar com tanto sofrimento? Como lidar com o mal na sua forma mais dolorida e extrema?

Foi a partir desse momento que percebi que havia uma necessidade de trabalhar o assunto na igreja, mas de uma forma que respeitasse o conceito cristão de Deus (amor e soberania) e que não se restringisse a meras respostas teóricas, intelectuais ou mesmo moralistas, no estilo “amigos de Jó”.

Este texto, portanto, se propõe a abordar o problema do mal sem ignorar as respostas intelectuais, mas focando também em uma abordagem pastoral à questão, especialmente para aqueles que tem problemas emocionais com este tema. Uma pessoa que passa por grande sofrimento (por exemplo, perder um parente num campo de concentração ou na boate Kiss) dificilmente se conformará com uma resposta de “por que o mal existe”. Aliás, vale lembrar que, intelectualmente falando, o problema do mal já tem abordagens suficientes para a questão. De certa forma, pode-se dizer que Alvin Plantinga apresentou uma resposta definitiva ao problema no que diz respeito à compatibilidade entre o Deus do teísmo e a existência do mal,1 como veremos no tópico 1, a qual é seguida de perto por Willian Lane Craig.2 Mas faz-se necessário algo mais. É importante apresentar o problema como os escritores bíblicos fariam, ou seja, para confortar, consolar e mostrar que Deus não está ausente ou alheio ao mal.

Vivemos em uma sociedade pós-moderna onde as respostas meramente intelectuais mostram-se insuficientes. A preocupação com o indivíduo, com o subjetivo, com o sentimento é uma característica de nosso tempo que muito afetou nossas igrejas. Assim, a abordagem pastoral, no capítulo 2, terá como objetivo ajudar os que sofrem ou se sentem muito sensibilizados com o mal alheio a confiarem em Deus em meio ao sofrimento. Argumentarei a partir de uma demonstração concreta da bondade e poder de Deus. O que era uma possibilidade lógica (a existência de um Deus amoroso e poderoso e do mal ao mesmo tempo) tornou-se realidade através de Jesus Cristo. Isso não explica todas as questões relacionadas ao problema do mal no mundo, mas ajuda o cristão a encarar o problema de outra perspectiva. Fala mais à sua existência do que a seu intelecto. Vejamos, então, as diversas abordagens a este que é um dos maiores problemas enfrentados pelos teólogos.

1. As respostas intelectuais ao problema do mal

No âmbito da teologia e da filosofia, a tentativa de conciliar a existência do mal no mundo com a existência de um Deus amoroso e todo poderoso é chamada de “teodicéia”.3 No entender de Pannenberg, essa é uma tentativa de justificação de Deus pelo mundo por Ele criado.4  É um problema, portanto, para as religiões teístas, ou seja, para o judaísmo, cristianismo e, até certo ponto, islamismo.

Não obstante a dificuldade de apresentar-se uma definição precisa do que seja o mal,5 bem como a impossibilidade de falar-se em mal sem um referencial absoluto que implicaria a existência de Deus,6 é indiscutível que as pessoas possuem uma noção prática do que seja o mal. Desastres naturais que ceifam vidas não podem ser considerados “bons” para quem sofre suas consequências. Da mesma forma, exterminar grupos humanos inteiros, inclusive com o uso da tortura, tampouco é aceitável aos padrões humanos. Dessa forma, pouco importa a maneira como o conceituamos, é indiscutível a presença do mal no mundo.

Convencionalmente se costuma distinguir entre mal moral, causado pelos seres humanos (pelo pecado, diriam os cristãos) e mal natural, decorrente das limitações e ações da própria natureza.7 Os dois tipos de mal são um problema para o cristianismo e de uma forma geral procuram ser justificados pelos teólogos cristãos desde, pelo menos, Clemente de Alexandria,8 passando por Agostinho9 e culminando, já na idade moderna, em Leibniz, criador do termo “teodicéia”.10

Não é meu objetivo expor exaustivamente as explicações racionais para o problema do mal. Também não me deterei no ensino bíblico sobre o assunto, que vai pressuposto na argumentação.11 Nesse sentido, vale mencionar a classificação de Sayão quanto aos diversos tipos de abordagem a essa questão, os quais se complementam e não devem ser vistos isoladamente, ainda que, em alguns casos, assim tenha ocorrido no decorrer da história do cristianismo.

a) Teodicéia do livre arbítrio
É a posição clássica e mais antiga na história do cristianismo. Defendida por Clemente de Alexandria e Santo Agostinho, afirma que o mal decorre do livre arbítrio das criaturas. Deus apenas permite o mal, pois preferiu criar criaturas livres, mesmo com possibilidade do mal, do que criar seres autômatos, incapazes de pecar. Assim, o mal existe para que se alcance um bem maior. Não podemos compreender as razões pelas quais Deus ainda tolera o mal, mas ele tem suas razões. O mal é a negação do bem, portanto, não tem uma existência a parte; ele existe em função do bem, como a ferrugem em relação ao ferro.12

Basicamente, Alvin Plantinga propõe sua argumentação sobre o problema do mal nestes termos. Usando de argumentos lógicos, ele demonstra que não há incompatibilidade entre as proposições “Deus é amor”, “Deus é todo poderoso” e “o mal existe”. Sua resposta é praticamente definitiva. Não há nenhuma incongruência lógica entre a existência do mal e do Deus do teísmo cristão. De uma perspectiva reformada, contudo, caberia a pergunta se Plantinga apresentou uma argumentação consistente com esse ramo da teologia cristã, na medida em que sua abordagem depende da admissão do livre arbítrio dos seres humanos e espirituais. A resposta passa por descobrir em que sentido e em que momento ele defende o livre arbítrio como causa do mal. Seguindo a linha de Plantinga, Willian Lane Craig argumenta nos mesmos termos, mas afirma explicitamente que o conceito de livre arbítrio não pode ser o “compatibilista”, defendido pelos reformados, mas sim o de liberdade “libertária”,13 que conferiria total liberdade ao ser humano, contrariando a visão reformada sobre o livre arbítrio e mesmo sobre a salvação totalmente por graça.

Críticas foram feitas a esta concepção, especialmente na sua forma mais básica, defendida pelos primeiros pais da igreja. Pannenberg ressalta que ela é insuficiente para explicar a origem do mal, sendo incapaz de desonerar o Criador da responsabilidade por essa sua criação. Aliás, segundo o teólogo alemão, tentar desonerar o criador é um erro de qualquer teodicéia, na medida em que também não corresponde ao testemunho neotestamentário, o qual demonstra que Deus assumiu e carregou, pela morte na cruz de seu Filho, a responsabilidade pelo mundo criado.14

Mcgrath, por sua vez, ressalta que a origem do mal não está claramente esclarecida, pois como poderiam os seres humanos optar pelo mal, se não havia mal no mundo criado por Deus? Se dissermos, como Agostinho, que o mal já existia antes da queda por causa de Satanás, mesmo assim não teremos uma solução, pois de onde teria vindo Satanás, se o mundo foi criado sem mal? A explicação tradicionalmente dada pelos cristãos, de que Satanás era um anjo bom que por orgulho se rebelou contra Deus e levou vários outros anjos com ele, espalhando o mal pelo universo também é insuficiente, pois como um anjo bom teria se tornado mau? Como ele faria a opção pelo mal?15

Da mesma forma, esta explicação serve para o mal moral (decorrente do pecado), mas talvez não seja tão suficiente para explicar o mal natural (catástrofes naturais, por exemplo). Plantinga recorre à ideia de que seres sobrenaturais com livre arbítrio poderiam causar essas catástrofes.16 Novamente, não há nenhum problema lógico aqui. Mas a questão é: será essa explicação razoável e suficiente? Catástrofes são causadas por Deus como castigo ou por demônios por ódio à humanidade? Nesse sentido, talvez a sugestão de Pannenberg seja mais razoável, na medida em que explica o mal (incluindo o mal físico) também em virtude da natureza finita da criação (que ainda não seria um mal em si) e da rebeldia das criaturas contra essa condição de finitude (rebeldia que só é possível por causa da autonomia dada por Deus), na qual, buscando a autonomização radical, gera todo tipo de males morais e físicos.17

b) Teodicéia pedagógica
Aqui o mal é visto como um benefício indispensável para o desenvolvimento da humanidade e para que ela não permaneça eternamente na infância. O sofrimento pode desenvolver nosso caráter e compaixão. De certa forma, essa concepção se identifica com a explicação de Eliú ao sofrimento de Jó. O sofrimento e o mal, portanto, tem por objetivo nos ensinar a viver melhor, e na perspectiva cristã, nos aproximar de Deus.

Essa abordagem é unilateral e insuficiente, devendo ser conjugada com outros argumentos. Do contrário, vários problemas surgem: como explicar o mal que aparentemente não produz nenhum crescimento ou desenvolvimento, como a morte sofrida e lenta de crianças inocentes ou milhões de mortos em campos de concentração em uma guerra? Além disso, muitas vezes o sofrimento não leva ao aprendizado, mas ao ódio, retraimento e amargura. Por fim, para muitas coisas boas não é necessário prévio sofrimento para que possamos desfrutá-las.18

c) Teodicéia escatológica
Fundamental para o cristianismo é a perspectiva escatológica na teodicéia, como bem ressaltou Pannenberg:

Formulando com mais exatidão, é exclusivamente o próprio Deus que pode dar uma resposta libertadora a essa pergunta [da teodicéia], e ele o faz por meio da história de seu agir no mundo, e em especial por sua consumação pelo estabelecimento do seu reino na criação. Enquanto o mundo é visto, por um lado, isoladamente com vistas a seu presente não consumado e não redimido, e sob o ponto de vista de sua processão inicial das mãos do Criador, por outro lado, o fato do mal e da desgraça na criação permanecem um mistério e um escândalo sem saída. O mais grave defeito do tradicional tratamento que se dá ao problema da teodicéia, justamente também na forma que Leibniz lhe deu e que se tornou clássica, consiste no fato de se ter acreditado poder comprovar a justiça de Deus em suas obras exclusivamente sob o ponto de vista da origem do mundo e de sua ordem do agir criador de Deus no princípio em vez de tomar também em vista a história do agir salvífico divino e sua consumação escatológica já irrompida em Jesus Cristo.19  (grifos nossos).

Na perspectiva escatológica, espera-se que com a consumação do Reino de Deus na criação o mal será eliminado e a justiça e injustiça receberão sua recompensa. No dizer de Sayão, “o futuro tem a resposta e a solução do que acontece no presente”.20

A crença na criação sem a esperança da superação escatológica da realidade do mal, somada à nossa finitude, não poderá dar uma resposta adequada à questão da teodicéia. Qualquer resposta só é possível se vislumbrarmos a unidade entre criação e reconciliação, que começou na cruz e aguarda a consumação. A criação, a ordem atual, encontra seu sentido na consumação, e assim podemos ver Deus como nosso aliado na luta contra o mal e o sofrimento. A consumação escatológica demonstrará definitivamente a justiça de Deus na sua divindade e no seu agir criacional.21

Ainda que a perspectiva escatológica seja fundamental, e se somada às perspectivas de livre-arbítrio e pedagógicas possa dar uma explicação melhor ao problema do mal, as dificuldades permanecem. Com efeito, por que Deus tolera o mal até o presente momento, e com tanta intensidade? Não poderia a consumação ser adiantada? Não seria possível menos mal no mundo? Não poderia o mundo ter sido criado sem sofrimento e mal?

d) Teodicéia protelada
Bastante semelhante à teodicéia escatológica, com a diferença que, neste caso, o enfoque não é tanto a retribuição do bem e do mal, mas a compreensão do porquê da existência do mal e do sofrimento aparentemente sem motivo. Enfatiza-se a necessidade de uma atitude de confiança e fé na bondade e soberania do criador e a admissão de que a compreensão plena do problema do mal aguarda uma resposta final na consumação dos tempos.22

e) Teodicéia de comunhão
O enfoque não está tanto em entender a origem ou o porque da existência do mal, mas partindo do pressuposto que ele existe, enfatiza o fato de que Deus é percebido e conhecido no sofrimento, porque ele mesmo sofreu, por meio da encarnação. Ele se compadece de nossos sofrimentos e está conosco, sendo até certo ponto, também vítima do mal. Nessa situação, há uma nova perspectiva do sofrimento, que é transcendido e permite que o homem e Deus entrem em colaboração e comunhão mais profunda. Para fins pastorais, essa é uma das mais interessantes abordagens ao problema do mal e será melhor delineada no próximo capítulo.

Essas são, portanto, as principais abordagens ao problema do mal. Como já foi mencionado, nenhuma delas, sozinha, é suficiente para uma visão mais ampla do problema do mal. Uma explicação plausível deve unir todas as perspectivas: por um lado, as más escolhas de criaturas livres ou a rebeldia contra condição de finitude, na forma de busca indevida de autonomia (usando as palavras de Pannenberg) ajudam a entender a origem do mal. O uso pedagógico do sofrimento por Deus não está descartado. Da mesma forma, a perspectiva de uma melhor compreensão e compensação futura é fundamental. O cristianismo, de qualquer forma, também apresenta uma argumentação importantíssima ao apresentar um Deus que se compadece, sofre e luta contra o mal na pessoa de seu filho Jesus, e que, portanto, não está indiferente, tampouco se omite.
    
2. Uma abordagem pastoral e cristocêntrica ao problema do mal e do sofrimento
Na primavera de 1518, em Heidelberg, Lutero conduziu um debate23  no qual apresentou teses que confrontaram a teologia e filosofia escolástica medieval. Surgia ali a chamada “teologia da cruz”, de uma profundidade e riqueza impressionante. Retomando os ensinamentos do apóstolo Paulo sobre a mensagem da cruz, o reformador alemão fundamentou seu método teológico na cruz. Duas teses, 19 e 20, apresentam a forma pela qual se pode conhecer a Deus, relacionando este conhecimento com o sofrimento:

19. Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as coisas invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que estão feitas;
20. mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus enxergando-as pelos sofrimentos e pela cruz.24

Com estas teses, Lutero rejeita o que ele chama de “teologia da glória”, uma espécie de teologia natural que se baseia na natureza e na sabedoria humana, em nome da “teologia da cruz”, a qual enxerga todas as coisas pelas lentes da cruz de Cristo. Não é a natureza ou a razão ou o “bom senso” que nos mostram quem é Deus, mas o escândalo da cruz. Um Deus que revela seu poder paradoxalmente na fraqueza, na humildade, na tolice, no sofrimento e na morte humilhante como criminoso.

O reformador chega a afirmar que “Deus somente pode ser encontrado no sofrimento e na cruz”. Assim, cruz e sofrimento significam em primeiro plano cruz e sofrimentos de Cristo, mas também, em certo sentido, cruz e sofrimento do cristão.25

Percebe-se, portanto, que a teologia da cruz de Lutero é fundamental para a compreensão da mensagem do evangelho,26 mas também é útil para a abordagem do problema do mal em uma perspectiva pastoral, pois apresenta um Deus que não é alienado ou desinteressado em relação à sua criação, mas um Deus que sofre e que se revela por meio do sofrimento, o que aponta para o fato de que o mal pode ser transcendido por algo maior.

Nessa perspectiva, sofrimento não é somente castigo ou destruição, tampouco algo sem sentido, mas sim graça e purificação. No sofrimento Deus vem ao nosso encontro, por isso ele pode ser considerado um santuário que santifica a pessoa. Lutero chega a considerar que os sofrimentos são sinal da graça de Deus, prova de nossa filiação divina.27

Dessa forma, o sofrimento deve ser compreendido a partir do evento revelador de Deus na história, não antropologicamente. O seu significado se explica no fato de que a revelação de Deus na história se resumiu na cruz.28
O cristianismo, portanto, ensina que Deus sofreu em Cristo. Esse é o cerne da mensagem cristã. Como diz Mcgrath, “Deus sabe o que é sofrer”, o que torna o sofrimento mais tolerável para nós.29 A ideia fundamental aqui é: Deus sofreu primeiro o nosso sofrimento. Ele, por meio da encarnação e morte na cruz, entrou em nosso mundo como um salvador comprometido. Não enviou um representante, mas veio pessoalmente por meio do seu filho, experimentando pessoalmente a dor e sofrimento. Como bem ressaltou Pannenberg:

Deus também não se subtraiu a essa responsabilidade [pelo surgimento do mal na sua criação], antes a assumiu pelo envio e entrega do seu filho na cruz. Assim Deus confirma sua responsabilidade como Criador pelo mundo por ele criado. E nisso o mal é real e suficientemente oneroso não só para as criaturas, mas também para o próprio Deus. Isso o mostra a morte de seu filho na cruz. A nulidade do mal perante a vontade criadora de Deus será selada somente pela superação no evento da reconciliação e na consumação escatológica da criação.30

Deus escolheu sofrer. Não se trata de uma imperfeição ou de uma limitação de sua soberania. Tendo sofrido nossos sofrimentos, ele demonstra mais do que empatia por nós, pois ele é solidário no sentido literal do termo,31 pois sofre ao nosso lado nos piores momentos. E escolheu nos redimir por meio da cruz. Sem “bagatelizar” a presença do mal no mundo, a teologia da cruz nos apresenta um Deus que sofre conosco e que se revela pelo sofrimento, o que nos dá, portanto, outra perspectiva para a questão. Deus não nos deixou sós.32 Ele nos conduz pelo sofrimento à glória.33

Nas palavras de Peter Kreeft:

Jesus está lá, sentado ao nosso lado nos lugares mais humildes – exclamou. – Estamos partidos? Ele foi partido, como pão, por nós. Somos desprezados? Ele foi desprezado e rejeitado pelos homens. Bradamos que não aguentamos mais? Ele foi um homem de dores e experimentado no sofrimento. As pessoas nos traem? Ele mesmo foi vendido pelo traidor. Nossos relacionamentos mais caros estão partidos? Ele também amou e foi rejeitado. As pessoas se afastam de nós? Esconderam o rosto dele como o de um leproso. Desceria a todos os nossos infernos? Sim, ele o fez. Das profundezas de um campo de morte nazista, Corrie ten Boom escreveu: “não importa quão profundas sejam as nossas trevas, ele é ainda mais profundo”. Ele não somente ressurgiu dos mortos, mas mudou o significado da morte e, portanto, de todas as pequenas mortes – os sofrimentos que antecipam a morte e fazem parte dela. Ele foi morto a gás em Auschwitz. Escarnecido em Soweto. Injuriado na Irlanda do Norte. Escravizado no Sudão. É aquele que gostaríamos de odiar e que escolheu nos devolver amor. Toda lágrima que derramamos se torna uma lágrima dele. Ele pode não enxugá-las já, mas o fará.34

Conclusão
O problema do mal não permite uma resposta racional definitiva. No entanto, é dever do cristão refletir minimamente sobre esta questão para auxiliar os que tem sérias dúvidas sobre o assunto e aqueles que sofrem ou se sentem tocados profundamente pelo mal que há no mundo.

Diante da realidade do mal,  nos resta confiar na bondade de Deus testemunhada nas Escrituras por meio do relato da criação e reconciliação. Também podemos ter a certeza de que não há incompatibilidade lógica entre a existência do mal e a bondade e soberania essenciais do Criador.

Tão importante quanto essa certeza e aquela esperança é compreender que Deus não se exime da responsabilidade pelo mal que existe na criação, tanto que assumiu essa responsabilidade por meio da encarnação e da cruz. A teologia da cruz coloca o problema do mal em um outro patamar. O sofrimento e morte do Filho revelam um Deus que não é indiferente à realidade do mal, mas que se importa conosco, está conosco no sofrimento, querendo ser encontrado ali, e que derrotou o mal na sua aparente derrota e aniquilação. Com ele podemos transcender o mal, que não é a resposta final para o mundo por ele criado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática. 1a Ed. Revisada. São Paulo: Vida Nova, 2008, 1218 p.
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática atual e exaustiva.. São Paulo: Vida Nova, 1999, 1046 p.
LOEWENICH, Walther. A Teologia da Cruz de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1988, 183 p.
LUTERO, Martinho. Martinho Lutero: obras selecionadas, vol. 1, 2. ed.  São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, Canoas: Ulbra, 2004, 470 p.
MCGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica. São Paulo: Shedd publicações, 2005, 659 p.
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PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática, vol. II. Santo André, São Paulo: Editora Academia Cristã, Paulus, 2009, 685 p.
PLANTINGA, Alvin. Deus, a Liberdade e o Mal. São Paulo: Vida Nova, 2012, 140 p.
ROMERO, Paulo. Decepcionados com a Graça. São Paulo: Mundo Cristão, 2005, 250 p.
SAYÃO, Luiz. O Problema do Mal no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2012, 160 p.
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STROBEL, Lee. Em Defesa da Fé. São Paulo: Editora Vida, 2002, 363 p.
VAN TIL, Cornelius. Apologética Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, 160 p.

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1PLANTINGA, Alvin. Deus, a Liberdade e o Mal. São Paulo: Vida Nova, 2012.
2CRAIG, William Lane. Apologética para questões difíceis da vida. São Paulo: Vida Nova, 2010.
3SAYÃO, Luiz. O Problema do Mal no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 26.
4PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática, vol. II. Santo André, São Paulo: Editora Academia Cristã, Paulus, 2009 p. 243.
5Sobre isso, vide as observações de SAYÃO, 2010, p. 23-25.
6Nesse sentido, Willian Lane Craig entende que a existência do mal é uma prova da existência de Deus, pois só podemos saber o que é o mal se houver valores morais objetivos para julgamento entre o que é “bom” e “mal”, e estes valores seriam estabelecidos pelo próprio Deus. Se temos noção de bem e mal, portanto, é porque algo nos foi dado para discernir entre uma coisa e outra. CRAIG, 2010, p. 116.
7PLANTINGA, 2012, p. 20.
8PANNENBERG, 2009, p. 245 e 248.
9MCGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica. São Paulo: Shedd publicações, 2005, p. 345, 346.
10SAYÃO, 2012, p. 26.
11Um bom resumo do ensino bíblico sobre o problema do mal pode ser encontrado em GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática, p. 254-260. O autor sintetiza suas conclusões sobre os diversos textos bíblicos nos seguintes pontos: a)  Deus usa todas as coisas para cumprir os seus desígnios e usa até o mal para a sua glória e para o nosso bem; b) Porém, Deus jamais faz o mal e jamais deve ser culpado pelo mal; c) Deus culpa e julga justamente as criaturas morais pelo mal que fazem; d) O mal é real, não é ilusão, e jamais devemos fazer o mal, pois ele sempre prejudicará a nós mesmos e os outros; e) Apesar de todas as afirmações anteriores, chega um ponto em que nós nos vemos obrigados a confessar que não compreendemos como Deus pode ordenar que executemos atos maus e depois nos responsabilizar por eles, sem que o próprio Deus tenha culpa.
12SAYÃO, p. 28.
13CRAIG, Willian Lane. Em Guarda: defenda a fé cristã com razão e precisão. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 174: a noção de liberdade que está sendo discutida aqui é conhecida como liberdade libertária… Uma análise indiscutivelmente melhor da liberdade libertária vê sua essência na ausência de determinação causal da escolha de uma pessoa, independente da própria atividade causal da pessoa. Isso equivale dizer que causas outras que não a própria pessoa não determinam a forma como essa pessoa faz suas escolhas em determinadas circunstâncias; fica a critério da pessoa a forma como ela faz suas escolhas.
14PANNENBERG, 2009, p., 246. Também na página 250: a responsabilidade pelo surgimento do mal na criação recai inevitavelmente sobre o Deus presciente e permissivo, embora o agir das criaturas constitua a causa direta. Mais adiante: Entrementes pode ser esclarecido que ambos, o mal e a desgraça, não podem ser objeto positivo da vontade criadora divina. Não obstante, Deus é co-responsável por seu surgimento por meio de sua admissão “previdente”, respondendo por isso com a morte do Filho na cruz.
15
MCGRATH, 2005, p. 346.
16PLANTINGA, 2012, p. 76-79.
17PANNENBERG, 2009, p. 251-253.
18SAYÃO, 2012, p. 29.
19PANNENBERG, 2009, p. 244.
20SAYÃO, 2012, p. 30.
21PANNENBERG, 2009, p. 255. O teólogo alemão também afirma ousadamente que uma teologia cristã deveria compreender esse juízo de Deus a respeito de sua criação [Gn 1 – a criação era “boa”] como antecipação de sua consumação escatológica depois de sua reconciliação e redenção. Somente assim o juízo de que a criação é boa se torna plausível, apesar de seu estado atual”, p. 249.
22SAYÃO, 2012, p. 30.
23Sobre o debate de Heidelberg, vide a introdução de Martin N. Dreher em LUTERO, Martinho. Martinho Lutero: obras selecionadas, vol. 1, 2. ed.  São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, Canoas: Ulbra, 2004, p. 35-37.
24LUTERO, 2004, p. 39.
25LOEWENICH, Walther. A Teologia da Cruz de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1988,  p. 17, 18.
26Séculos mais tarde, outro teólogo alemão, porém da tradição reformada, refletiu com muita ousadia sobre a teologia da cruz, concluindo também que a cruz é o centro da fé cristã: Jürgen Moltmann, especialmente no seu aclamado livro “O Deus crucificado”. Paulo Romero extrai das diversas obras de Moltmann aplicações úteis à questão do sofrimento, semelhantes às que são apresentadas neste capítulo, no seu livro Decepcionados com a Graça, p. 181-201.
27LOEWENICH, 1988, p. 118, 119.
28LOEWENICH, 1988, p. 119.
29MCGRATH, Alister E. Apologética pura e simples. São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 168.
30PANNENBERG, 2009, p. 250.
31MCGRATH, 2013, p. 169
32STROBEL, Lee. Em Defesa da Fé. São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 68.
33MCGRATH, 2013, p. 180.
34STROBEL, 2002, p. 68.

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente artigo, Rodrigo! O problema do mal nunca deixar  de ser explorado como um argumento contra a bondade e soberania de Deus. Num mundo cada vez mais dominado pelo discurso sentimentalista, hedonista e narcisista, falar sobre o mal ‚ politicamente incorreto, pois atinge frontalmente essa cultura da felicidade a qualquer custo. Mas Graças a Deus por Jesus Cristo que sofreu a humilhação de se tornar como qualquer um de nós (humanos), recebendo em sua carne todo o mal que cabia aos desobedientes e rebeldes, como eu. Ele sofreu o mal para que tiv‚ssemos vida! Um fraterno abraço!!

  2. parabéns querido irmão pelo cuidado ortodoxo em retratar um assunto tão contemporâneo e polêmico numa clareza e com excelentes e rica bibliografia.

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