O papel dos líderes da sociedade na luta contra a corrupção e o estímulo ao exercício da cidadania

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Artigo escrito para a revista Teologia Brasileira, que agradeço pelo convite para discutir o estímulo à cidadania, inclusive no ambiente cristão. As opiniões externadas aqui são pessoais e não se confundem com posições oficiais ou do Ministério Público. A força tarefa da operação Lava Jato é composta por procuradores e servidores com diferentes visões de mundo e sua atuação se guia pela Constituição e pelas leis do país.

No 14º andar do prédio da procuradoria da República em Curitiba, em 10 de setembro de 2008, com 28 anos, tomado de revolta, sentei-me à frente do computador. Algo precisava ser dito. “Quando se trata de perseguir criminosos de colarinho branco, estamos em todo o tempo lutando contra o sistema.” As palavras fluíram como numa enxurrada, cobrindo rapidamente mais de cinco páginas.

Eu me sentia, como procurador e como cidadão, indignado. Uma grande operação havia sido anulada por um tribunal superior, enterrando numerosos crimes comprovados, inclusive de corrupção. A decisão contrariava os precedentes do próprio tribunal. Tinha virado noites e fins de semana trabalhando por justiça e, mais uma vez, a impunidade reinaria.

Redigi então um manifesto. Nele, destaquei os danos que os crimes de colarinho branco causam: “o Estado se vê privado de recursos com que poderiam ser salvas vidas”, melhorando a saúde, a segurança pública, a seguridade social e a assistência básica. Segui escrevendo: enquanto o crime de homicídio, muito grave, ceifa uma vida, os crimes de colarinho branco ceifam milhares.

1. Um rastro de sofrimento humano

De fato, o que motiva a luta contra a corrupção não é colocar pessoas na cadeia. É reduzir o sofrimento humano que ela causa. Lutar contra a corrupção é uma questão de amor ao próximo, de compaixão, de serviço à sociedade e de realização de direitos humanos. É uma causa em favor dos direitos civis, como foi a luta contra a escravidão e aquela contra a discriminação racial, que tiveram dentre seus protagonistas nomes cristãos como Martin Luther King Jr. e Willam Wilberforce.

A corrupção política gera prejuízos à sociedade de diferentes maneiras, dentre as quais destaco quatro: pela subtração de dinheiro de serviços essenciais; pela ineficiência no emprego dos recursos públicos; pela deterioração da democracia e das instituições; e pela tendência de retroalimentação, alavancando a permanência de políticos corruptos no poder.

Primeiro, a corrupção drena recursos públicos de serviços públicos básicos. Segundo dados do Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União (CGU), a maior parte dos desvios acontecem na saúde e educação. Numa análise que fiz em 2017[1], apontei que os 200 bilhões desviados anualmente no Brasil permitiriam triplicar o investimento federal em qualquer dessas duas áreas.

O valor mencionado é uma estimativa. É difícil dar uma cifra para a corrupção. Se aplicarmos ao Brasil uma estimativa da ONU e do Fórum Econômico Mundial sobre quanto dinheiro público é desviado no mundo, de 5% da riqueza gerada, o prejuízo seria de 340 bilhões[2]. Já uma estimativa da FIESP[3] aponta um percentual menor: 2,3% do PIB, em torno de 150 bilhões. Tenho utilizado para referência o valor de 200 bilhões, o que corresponde a cerca de 10% do total arrecadado anualmente em tributos na nação.

A carga tributária no país chegou a 35% neste ano de 2019[4], superior àquelas registradas em 2016 nos Estados Unidos (26%), Suíça (27,8%), Reino Unido (33,2%) e Canadá (á (31,7%) e próxima às da Alemanha (37,6%) e Noruega (38%)[5]. Por outro lado, os indicadores brasileiros de educação, saúde e segurança estão muito distantes daqueles dos países desenvolvidos.

De fato, o Brasil tem 38 milhões de analfabetos funcionais acima de 15 anos[6]. Mais de metade dos brasileiros acima de 25 anos não concluíram o ensino médio, um dos maiores percentuais dentre 46 países avaliados pela OCDE em 2018[7]. No Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) de 2015, o país ocupou a 63ª posição em ciências, 59ª em leitura e 66ª em matemática dentre 70 países[8].

A saúde também vai mal. Um sintoma são as longas filas em hospitais. Em Porto Alegre, 88 mil pacientes aguardavam consulta com especialista e 14 mil, agenda para exames, em 2017[9]. Muitas doenças são causadas por falta de saneamento básico. Por aqui, 57 milhões de residências não têm acesso à rede de esgoto e 24 milhões, à água encanada[10]. Sendo assim, os 200 bilhões desviados permitiriam universalizar em dois anos e meio os quatro serviços de saneamento: água encanada, coleta de esgoto, processamento de resíduos e drenagem[11].

A segurança é outra área desamparada. O Brasil teve 57 mil mortes violentas em 2018[12], número desproporcional quando comparado a outros países com população semelhante ou até superior: Estados Unidos, com 322 milhões de habitantes, teve 15 mil homicídios em 2015; a Europa inteira, com população de 743 milhões de pessoas, 22 mil em 2017; a Indonésia, com 253 milhões de habitantes, 1,2 mil em 2014; e na Rússia, habitada por 143 milhões de pessoas, houve 16,2 mil em 2015[13]. Com R$ 200 bilhões, seria possível quadruplicar todo o investimento público feito em 2014 em segurança[14].

A corrupção mata e, por vezes, é possível traçar uma ligação direta entre esse ela e as mortes. A operação Lava Jato apontou que, só no Paraná, mais de 700 quilômetros de estradas deixaram de ser duplicados em concessões regadas a propinas. Nos cinco anos anteriores à revelação, 403 mortes ocorreram naquelas estradas em colisões frontais em trechos de pista simples[15]. Os subornos deixaram um rastro de mortes e sangue nas estradas.

Estudos mostram que há uma correlação inversa entre níveis de corrupção e índice de desenvolvimento humano, que avalia renda per capita, longevidade e educação. Do mesmo modo, quanto menor a corrupção, maior é a efetividade do governo: menos lento, menos burocrático, mais técnico, melhor presta serviços. Menos corrupção significa também maior competitividade das empresas no mercado global[16].

Quando o vencedor é quem paga propina, criam-se incentivos econômicos adversos. Sem verdadeira competição, não há estímulo para inovação tecnológica operacional. Há, sim, incentivo para arquitetar setores de pagamento de propinas, como aqueles encontrados pelas investigações em empreiteiras.

A corrupção tem impacto na baixa qualidade do serviço público brasileiro, mas não é a única culpada. Há também ineficiência. Contudo, vale observar que a ineficiência decorre não só de incompetência, mas tem íntima relação com a própria corrupção. A Lava Jato apontou, em diversos casos, que o objetivo de arrecadar propinas pode ser a causa de investimentos desastrosos e gastos desnecessários.

As investigações apontaram que a Petrobrás, por exemplo, firmou contratos bilionários de navios-sondas sem necessidade, em negócios que renderam milhões em propinas. Como resultado, um deles ficou parado em alto-mar, ao custo de USD 500 mil por dia para a estatal. O prejuízo acumulado ultrapassou USD 100 milhões[17]. A compra de Pasadena[18] e a construção da Refinaria Abreu e Lima são outros exemplos de negócios que podem ter contribuído mais para gerar propinas do que para o interesse público. De fato, quando a corrupção grassa, grandes obras deficitárias podem ser motivadas pela perspectiva da geração de enormes subornos.

A democracia, governo “do povo, pelo povo e para o povo” sai deturpada, cedendo lugar ao governo para o benefício dos próprios governantes e comparsas. Não é à toa que John Noonan Jr. e Robert Klitgaard apontam que a corrupção é a maior doença dos governos depois da tirania[19]. A grande corrupção política brasileira ainda corrói as instituições e o estado de direito. Criam-se “donos do poder” que governam fora dos limites do poder que lhes foi delegado: roubam o povo e garantem a própria impunidade, como veremos.

2. O diagnóstico da corrupção política brasileira

Várias coisas impressionam na Lava Jato. Apenas em Curitiba, estão sendo recuperados 14 bilhões de reais. Mais de 450 pessoas foram denunciadas por corrupção, lavagem de dinheiro e outros crimes. Esses réus, por sua estatura social e política, nunca haviam sido alcançados pela Justiça. No entanto, o que mais assusta é o diagnóstico da corrupção política brasileira, que vai muito além da Petrobrás.

Em apertada síntese, a operação inicialmente descobriu um grande esquema criminoso dentro da Petrobrás. De um lado, as maiores empreiteiras brasileiras formaram um cartel. Em reuniões secretas, empresários fraudavam licitações, ajustando que empresa ganharia cada concorrência e o preço da obra. Atrás do balcão, estavam diretores e gerentes da Petrobrás indicados por partidos e políticos, com a missão de arrecadar propinas. De um a outro lado do balcão, propinas que ultrapassaram mais de 6 bilhões foram repassadas por lavadores de dinheiro profissionais.

Aqui entra uma questão chave para compreender o esquema revelado pela operação: por que altos executivos da Petrobrás que ganhavam mais de 100 mil reais por mês entre salários e bônus se corrompiam? Crença na impunidade? Ganância? Esses fatores podem contribuir, mas a razão central é que se não se corrompessem, não estariam lá. Não se tratava de um simples esquema de funcionários públicos, mas político-partidário. Partidos e políticos os colocaram lá para arrecadarem propinas.

Quando se compreende isso, fica mais fácil entender como a Lava Jato rapidamente avançou para outros entes públicos, como, por exemplo, Eletrobras, Ministério do Planejamento, Transpetro, BR Distribuidora, Caixa Econômica Federal, outros bancos que fornecem empréstimos baratos, assim como órgãos estaduais em MG, RJ, SP e PR.

A teia da corrupção revelada pela Lava Jato pode ser assim resumida: muitos partidos e políticos desonestos indicam para chefiar órgãos públicos federais, estaduais e municipais pessoas que concordam em usar seu cargo para arrecadar subornos. Uma vez nas posições, tais pessoas fraudam licitações, vendem licenças, concedem empréstimos irregulares ou criam dificuldades para vender facilidades, em troca de propinas para si e seus padrinhos políticos. Esse é o verdadeiro mecanismo da corrupção política brasileira.

Tudo isso gera muito dinheiro. Um ex-presidente da Transpetro admitiu que ao longo de pouco mais de dez anos distribuiu mais de 100 milhões de reais para caciques do partido político que o indicou. Um ex-gerente da Petrobrás tinha cerca de 100 milhões de dólares em contas suíças, que foram bloqueados e devolvidos para o tesouro brasileiro. Essa era a sua cota, menor do que aquela destinada ao mundo político. Um único ex-governador do Rio de Janeiro foi acusado de ter o mesmo valor no exterior e, há poucos meses, ao enfrentar evidências avassaladoras, reconheceu que a fortuna era sua.

Para onde vai tanto dinheiro? Uma parte é destinada ao enriquecimento e desfrute pessoal dos envolvidos, que a aplicam em obras de arte, joias luxuosas, barras de ouro, diamantes, propriedades, carros importados, iates, aviões e contas no exterior. A outra parte inunda campanhas eleitorais caríssimas, influenciando o resultado das eleições e fraudando a vontade popular.

O cientista político Jairo Nicolao[20] indica uma forte correlação entre reais investidos em campanha e a votação alcançada. Bruno Carazza, em seu livro “Dinheiro, Eleições e Poder” [21], dá um passo adiante e apresenta evidências que apontam uma relação de causalidade entre dinheiro e votos, isto é, que um maior volume de recursos indica uma probabilidade maior de um candidato se eleger.

Assim, propinas ajudam os corruptos a alcançar o poder ou nele permanecer. Na posse de seus cargos, eles mantêm ou ampliam seus esquemas, gerando mais subornos. E esses subornos, mais uma vez, ampliam as chances eleitorais suas e de seus associados. Forma-se um círculo vicioso que deturpa as eleições e, consequentemente, a democracia, condenando o país a viver eternamente no subdesenvolvimento. Em resumo, corruptos tendem a capturar o Estado. Transformam-se nos “donos do poder”.

Na Primeira República, o Estado também foi capturado. As eleições eram jogos de cartas marcadas cujo resultado era determinado pelo abuso da coação e das fraudes na apuração eleitoral. Nessa época, ficaram famosas práticas como o coronelismo, o voto de cabresto e as eleições de bico de pena. De lá para cá, a coação e a fraude foram em grande medida contidas, mas a captura do Estado – pelo menos em boa medida – continua a existir por meio de outro método: a corrupção.

Não quero dizer que todo político é corrupto nem demonizo a política. Há políticos íntegros, que devem ser valorizados. Além disso, A solução para esse problema que corrói a nossa democracia é mais democracia, é a participação política dos brasileiros. Não há atalho. Ditaduras não são caminhos aptos. Basta dar uma espiada nas ditaduras ao redor do mundo. A única passagem é a intensificação do exercício da cidadania e os líderes da sociedade têm um papel fundamental nessa trajetória.

Ao mesmo tempo em que ressalto a importância da democracia, friso aqui que a existência no Brasil de uma corrupção política sistêmica é inegável. Uma única empreiteira que colaborou com as investigações apontou, em seus relatos, 415 políticos de 26 diferentes partidos, incluindo quase um terço dos senadores e ministros de então e quase metade dos governadores[22]. A Lava Jato e as investigações decorrentes implicaram 6 presidentes do Senado e 5 da Câmara. Uma outra empresa, fora da Lava Jato, implicou 1.829 políticos eleitos[23]. Isso nos dá uma dimensão do problema que enfrentamos.

3. O capitalismo de compadrio

Em 2016, o Fórum Econômico Mundial classificou o Brasil como 4º país mais corrupto dentre 141 países[24]. No ranking mundial de percepção da corrupção da Transparência Internacional de 2018, em que países mais honestos são melhor colocados, o Brasil apareceu na 105ª posição[25], empatado com Egito, Peru, Timor Leste e Zâmbia, dentre outros. Nessa pesquisa, alguns países da América Latina estão melhor classificados – como Uruguai (23º), Chile (27º), Bahamas (29º) e República Dominicana (45º).

Por outro lado, quando se mede a corrupção exclusivamente na base da pirâmide social brasileira, a realidade é diferente. De fato, o Brasil desponta como o terceiro mais honesto dentre 18 países da América Latina quando se avalia a corrupção em serviços públicos como água e esgoto, documentos de identidade, escolas públicas, órgãos de justiça, polícia e saúde pública, segundo o Barômetro da Corrupção, outra pesquisa da Transparência Internacional[26]. Se Você precisou desses serviços recentemente, é improvável que tenha recebido um pedido de suborno.

A grande corrupção política contrasta com o nível da pequena corrupção burocrática. Realmente, quanto à última, o Barômetro aponta que apenas 11% dos brasileiros entrevistados receberam pedidos de propina nos referidos serviços públicos essenciais, ao longo do último ano. O Brasil Está atrás apenas de Barbados e Costa Rica. No Peru, o número chegou a 30% e, no México, a 34%, três vezes maior do que o brasileiro.

Como explicar a aparente contradição no fato de o Brasil aparece como relativamente honesto no Barômetro, enquanto está mal classificado no ranking de percepção da corrupção mais amplo, sendo ambas as pesquisas da Transparência Internacional?

Aqui vai uma pista: o pesquisador da corrupção Michael Johnston[27] defende que o que diferencia a corrupção nos países não é só sua quantidade, mas também sua qualidade. Ele distingue quatro espécies de corrupção: barões de poder, oligarcas e clãs, cartéis de elites e mercado de influência.

O autor enquadra a corrupção brasileira, como a italiana e a argentina, na categoria dos cartéis de elites. É exatamente o que a Lava Jato revelou: elites empresariais e políticas que se aproximam para desviar em benefício mútuo recursos da sociedade. Muitos estudiosos chamam esse fenômeno de capitalismo de compadrio: grandes empresários e políticos viram sócios informais de empreendimentos, favorecendo-se mutuamente por meio de práticas ilegais.

Os empresários ganham dos políticos segurança e rentabilidade em seus investimentos, empréstimos públicos com juros baixos, contratos direcionados com o governo, facilidades na obtenção de licenças, imunidade contra comissões parlamentares de inquérito, informações privilegiadas sobre a política econômica ou ainda mudanças favoráveis na regulação legal ou administrativa de sua atividade econômica. É a receita do sucesso, em prejuízo de competidores honestos. De outro lado, políticos ganham propinas vultosas e polpudas doações eleitorais, via caixa um ou caixa dois.

As regras do jogo político, econômico e do sistema de justiça propiciam um ambiente favorável à formação de pactos oligárquicos extrativistas, em que donos do poder e donos do dinheiro criam espécies de “clubes” fechados, de difícil acesso, engessando a política e o mercado. Conforme James A. Robinson e Daron Acemoglu explicam no seu famoso livro Por que as Nações Fracassam, essa é uma receita para o subdesenvolvimento[28].

Disso se conclui que a corrupção brasileira está distribuída na sociedade de modo assimétrico. Como o Barômetro mede a corrupção nas bases da pirâmide, o resultado é melhor do que aquele do índice mais geral de percepção do fenômeno, em que a corrupção do topo entra. A alta incidência da grande corrupção política, aliás, faz com que, dentre 137 países, o Brasil seja aquele que menos confia nos políticos[29]. É claro que há práticas reprováveis em toda a sociedade, mas o maior problema está no topo quando o assunto é corrupção. No Brasil, o mau exemplo vem de cima.

Isso ajuda a explicar a impunidade dos crimes de colarinho branco. Se há um conluio entre “donos do poder” para praticar corrupção, é evidente que também garantirão a própria impunidade. Isso vem de longa data. Padre Antonio Vieira, em meados do século XVII, já denunciava que os verdadeiros ladrões no Brasil não eram os que furtavam galinhas, mas governantes que vinham aqui buscar não o bem do povo, mas os bens do povo, e saíam impunes.

A responsabilização de poderosos em casos como Mensalão e Lava Jato é um fenômeno recente e que pode ter dificuldade para se repetir, como veremos adiante. Na década de 90, os escândalos PC Farias e dos Anões do Orçamento revelaram corrupção política de empreiteiras e personagens que vieram a ser punidos apenas na Lava Jato, mais de vinte anos depois. Como o sistema de justiça não funcionou, os esquemas foram mantidos, ampliados e aperfeiçoados.

Quando se olha para a história brasileira, a Lava Jato pode ser vista como um movimento social que, embora legal, foi disruptivo, na medida em que rompeu a regra de impunidade dos donos do poder. A lei foi usada contra aqueles que têm poder para fazer e mudar as leis. Chamo-a um movimento porque não foi uma mera ação de procuradores, policiais e juízes. A operação se tornou irrefreável pelo apoio explicitado nas ruas pela sociedade brasileira.

Para os capitalistas de compadrio, esse movimento é inaceitável. Ele cria riscos pessoais e patrimoniais inadmissíveis para suas famílias e associados. Promove ainda a instabilidade do pacto oligárquico. Como aconteceu na operação Mãos Limpas, na Itália, os donos do poder tentarão mudar as leis para conter esse movimento anticorrupção e evitar que se repita. A punição exemplar daqueles que possam ser identificados como protagonistas desse movimento faz parte da reação. É preciso intimidar quem ousou enfrentar os donos do poder.

4. Líderes: é preciso ir além da Lava Jato

Cresci num lar cristão e frequento a igreja batista desde pequeno. Estudei na escola bíblica, participei de grupos de oração, fui líder de pequeno grupo (um espaço de convívio, discipulado e crescimento cristão), de grupos de estudos e de encontros de casais. Apoiei atividades beneficentes vinculadas a instituições cristãs. Minha visão de mundo é cristã de linha batista. Naturalmente, vejo a influência de líderes como um instrumento de serviço ao próximo, o que muitas vezes colocamos no ambiente cristão como uma face da “mordomia” (no sentido de papel de mordomo e não de regalias).

A partir desse contexto, quando saí da faculdade, sonhava com um país melhor e queria contribuir para ele. Minha opção pela carreira de procurador aconteceu quando li a lei orgânica do Ministério Público. Suas funções são uma genuína atividade de amor ao próximo e serviço às pessoas. Vejo um membro do Ministério Público como um agente de transformação social para o bem.

Quando entrei no Ministério Público, acreditava que o trabalho árduo frutificaria na responsabilização de criminosos influentes e na recuperação do dinheiro desviado. Várias vezes fui chamado de “workaholic” por colegas e amigos. Por longos períodos trabalhei mais de doze horas diárias. Participei de forças-tarefas, grupos de trabalho, frequentei cursos de aperfeiçoamento e, com a experiência alcançada, passei a dar treinamentos para colegas em temas como lavagem de dinheiro, colaboração premiada e prova indiciária.

O primeiro grande caso de corrupção em que trabalhei aconteceu em 2004, um ano depois de meu ingresso. A investigação revelou mais de setenta funcionários fantasmas na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná. Passados quinze anos, ninguém foi punido e nenhum centavo, reavido. A partir de 2005, no caso Banestado, acusamos mais de 680 pessoas por crimes graves, mas até pouco tempo o número de pessoas responsabilizadas não chegava a vinte, menos de 2%.

Em 2006, num novo caso envolvendo crimes de colarinho branco e corrupção, dois réus foram condenados a mais de 40 anos de prisão cada um, em 3 ações penais. Contudo, em 2016, dezenas de recursos depois, uma havia sido anulada e as outras duas prescreveram. Não aguentaram o percurso nos labirintos recursais das quatro instâncias da Justiça brasileira. Mais uma vez, houve completa impunidade.

A impunidade em casos como Anões do Orçamento, Marka-Fonte Cindam, Dilúvio, Boi Barrica e Castelo de Areia contribuiu para a proliferação dos crimes de colarinho branco. Se empresários e executivos flagrados em escândalos passados tivessem sido responsabilizados e os políticos, afastados da vida pública, provavelmente não teriam ressurgido na Lava Jato como prováveis autores de desvios de recursos da Petrobrás e outras entidades públicas. Investigações que deveriam inibir novos crimes, infelizmente, enviaram uma mensagem de que a corrupção compensa neste país.

O sistema e a cultura jurídica levam grande parte da culpa pela impunidade, como eu disse naquele manifesto de setembro de 2008. Foi por isso que me inscrevi para o mestrado da Universidade de Harvard, em 2011. Na minha inscrição, informei que buscava conhecimento para contribuir, em meu país, para uma Justiça criminal mais equilibrada. Era preciso equalizar os direitos fundamentais dos réus com os da sociedade, que é constantemente vítima não só da roubalheira mas também da impunidade.

Pouco tempo depois de retornar do mestrado, fui desafiado, no início de 2014, a trabalhar na operação Lava Jato. Ela era até então um caso desconhecido que apurava crimes financeiros e de lavagem de dinheiro praticados por doleiros. Ninguém imaginava aonde chegaria. Naquele momento, era certo apenas que tomaria pesadas horas de trabalho, inclusive em noites e fins de semana.

Já tinha trabalhado em vários casos e operações envolvendo doleiros antes, como Merchants, MTB, Beacon Hill, Hawala, Zapata e Curaçao. Neste último, acusamos mais de cinquenta doleiros que mantinham dezenas de contas em um banco nas ilhas Curaçao. Foram casos árduos e laboriosos. Envolveram análises de grande volume de documentos apreendidos, a elaboração de pedidos de cooperação internacional, o cruzamento de dados bancários e por aí vai. Foi essa experiência que fez com que colegas me desafiassem a coordenar a atuação de procuradores na operação.

Embora acreditasse que poderia contribuir para aquele embrião do que se tornaria a Lava Jato, minha história era parecida com a do Brasil nos sucessivos fracassos da luta contra crimes de colarinho branco. O caso provavelmente seria mais uma frustração. Além de o caso ser uma montanha de trabalho, em casa estava às voltas como nosso primeiro bebê.

Por outro lado, o sofrimento humano causado pelos crimes e o compromisso de contribuir para um país melhor me fizeram aceitar mais esse desafio. Isso me deu o privilégio de fazer parte de uma grande equipe de servidores públicos que, por meio de uma estratégia inovadora, que incluiu acordos com empresas e réus, do apoio da sociedade e de uma série de lances providenciais, alcançou resultados inéditos. A responsabilização de poderosos e a recuperação de bilhões pareciam impossíveis, mas foram alcançados.

A Lava Jato não foi trabalho de um órgão público ou de um indivíduo, mas das Instituições. O trabalho não deve, entretanto, parar aí. O sucesso da responsabilização de poderosos é uma condição necessária para a redução da corrupção política no país. Por outro lado, não é uma condição suficiente. A Lava Jato trata de um tumor, mas o sistema é cancerígeno. Ao mesmo tempo que um tumor é tratado, outros estão se desenvolvendo. É preciso manter o tratamento por meio de investigações como a Lava Jato, mas avançar para reformas sistêmicas que previnam novos desvios. Dentre as várias mudanças necessárias, destaco reformas no sistema de justiça e político.

A Lava Jato ainda é um ponto fora da curva da impunidade. Contudo, a curva continua lá. Embora tenham ocorrido, nas últimas décadas, avanços institucionais contra a corrupção e a lavagem de dinheiro, muitas brechas na lei continuam a existir. O regime jurídico das prescrições e nulidades, a possibilidade de recursos sem fim e a dúvida sobre a prisão em segunda instância geram um ambiente mais propício à corrupção.

Além disso, é preciso mudar regras do ambiente político. Várias características de nosso sistema estimulam eleições caríssimas, o que gera uma demanda de recursos. Políticos são pressionados a obter financiamento que, diversas vezes, provém de práticas corruptas. Some-se que os partidos têm donos – não há democracia interna – e podem direcionar as verbas do fundo eleitoral bilionário de modo desigual, dificultando a renovação. Além disso, embora empresas que pratiquem corrupção sejam responsabilizadas, partidos não são. Embora a Lava Jato tenha revelado corrupção de dezenas de políticos, nenhum foi afastado pelo próprio partido e pouquíssimos pelo Congresso Nacional.

Percebendo a necessidade de mudanças nas leis, no fim de 2014, mesmo sobrecarregado pelo trabalho na Lava Jato, dediquei-me a coordenar a elaboração de propostas de mudanças. Elas se concentraram em nossa área de expertise. Nunca tivemos um momento tão propício para a transformação, pois o diagnóstico da corrupção sistêmica desafiava uma resposta também sistêmica que passava pelo fim da impunidade dos donos do poder.

Muitos membros do Ministério Público e de outros órgãos contribuíram para o pacote legislativo que ficou conhecido como as 10 Medidas Contra a Corrupção. No final de cada ano, procuradores e juízes usufruem de um período de recesso forense, de cerca de duas semanas. Diversos colegas e eu trabalhamos ao longo do recesso nas propostas e em seu aperfeiçoamento.

No início de 2015, levei as propostas ao procurador-geral da República, que as encampou. As 10 Medidas se tornaram o primeiro grande pacote anticorrupção brasileiro e algo inédito na história do Ministério Público. O pacote tinha três eixos centrais: prevenir a corrupção, reduzir a impunidade e recuperar o dinheiro desviado.

Somando-me a um movimento da sociedade civil e de colegas em favor das 10 Medidas, fiz mais de uma centena de apresentações públicas para divulgá-las, entre 2015 e 2016. Muitos pastores e igrejas se uniram a todo tipo de entidade da sociedade civil na coleta de mais de 2 milhões de assinaturas em apoio às propostas.

Depois de as 10 Medidas terem sido desfiguradas pelo Congresso, no fim de 2016, contribuí junto com mais de duzentos especialistas, em 2017, para a formulação e divulgação das Novas Medidas Contra a Corrupção, um pacote de 70 propostas desenvolvidas pela sociedade civil, sob a liderança da Transparência Internacional e da Fundação Getúlio Vargas.

Dentre as propostas, estavam o fim do foro privilegiado, mudanças no sistema político-eleitoral, o fortalecimento do controle social, a inserção do tema anticorrupção nas escolas, a desburocratização, a expansão da lei da ficha limpa para todos os servidores públicos (hoje só alcança políticos), melhorias na investigação, a criminalização da corrupção privada, a ampliação das penas e a recuperação do dinheiro desviado.

Em 2018, houve uma grande campanha cívica, chamada “Unidos Contra a Corrupção”, que objetivava incentivar brasileiros a votar em quem tivesse um passado limpo, defendesse a democracia e apoiasse esse novo pacote anticorrupção. Nesse ano, tirei férias para trabalhar. Fiz uma série de viagens e encontros para estimular o voto consciente em apoio à pauta anticorrupção, unindo-me a pessoas e entidades que acreditam nessa causa. Mais uma vez, muitas igrejas também se somaram à campanha cívica da sociedade civil. Cerca de 45 parlamentares federais que apoiaram a campanha foram eleitos.

Em 2019, houve um novo pacote anticorrupção, que é parte da agenda do Pacote Anticrime, uma iniciativa do ex-juiz federal Sergio Moro. Há ali muitas propostas extremamente importantes para aperfeiçoar o sistema de justiça, a fim de mudar a regra de impunidade dos colarinhos brancos.

Tudo isso aconteceu porque diversos líderes decidiram usar seu conhecimento, experiência e influência para servir a sociedade e o país. Contudo, decorridos cinco anos do início da Lava Jato, não houve uma resposta do Congresso Nacional ao problema da macrocorrupção política brasileira.

As 10 Medidas foram desfiguradas numa madrugada e conduziram à aprovação de uma lei contra supostos abusos de autoridade, que na verdade amarram investigações legítimas contra poderosos, ameaçando as Instituições. As Novas Medidas não avançaram no Congresso. O Pacote Anticrime vem sendo esvaziado nas discussões do parlamento.

É difícil avançar propostas contra a corrupção quando muitos líderes do Congresso são investigados e se beneficiam das regras existentes. As mudanças podem ameaçar sua liberdade, patrimônio ou poder. Por isso, se a sociedade quer avanços contra a corrupção, há muito trabalho pela frente. Essa injustiça histórica e arraigada não será vencida da noite para o dia, exigirá o envolvimento e a perseverança de líderes da sociedade ao longo de anos.

Neste ano de 2019, aliás, há mais ameaças do que boas perspectivas. Há projetos que podem minar o combate à corrupção e impedir que se repitam resultados semelhantes àqueles que a Lava Jato alcançou. Busca-se, por exemplo, impedir colaborações premiadas de presos e que a Receita comunique crimes ao Ministério Público. Tramita ainda proposta que garante a poderosos o foro privilegiado para todas as cautelares, o que na prática dificulta investigações.

Importantes políticos do Congresso são alvos de investigações e processos. É natural que entrem num “modo de autoproteção”, buscando impedir o avanço de investigações e processos ou esvaziar seus resultados. Além disso, recém passadas as eleições de 2018, os parlamentares só estarão sujeitos à responsabilização pelo voto daqui a quatro anos. Contam com o esquecimento do brasileiro nesse interregno.

O momento é favorável a uma reação semelhante àquela que ocorreu na Itália contra a operação Mãos Limpas. Ocorrida na década de 90, a investigação expôs a grande corrupção política italiana. Após ter alcançado resultados inéditos e reformas legislativas boas serem propostas, houve uma reação. A pauta anticorrupção foi substituída por uma contra supostos abusos de autoridade. Leis passaram não para combater a corrupção, mas para esvaziar investigações, processos e punições. No fim, a corrupção na Itália seguiu igual, se não pior[30].

Foi minha perspectiva cristã do meu papel na sociedade, de serviço ao próximo, que me levou ao Ministério Público e a contribuir para reformas anticorrupção. É ela ainda que, ao longo da vida, leva-me a perseverar, mesmo quando as circunstâncias são desfavoráveis.

O propósito de reduzir o sofrimento humano e de contribuir para um país melhor, junto com minha fé em Deus, é uma estrela que ilumina o caminho e me dá forças para seguir em frente. Continuarei fazendo o meu melhor, como procurador e como cidadão, para que as mudanças aconteçam.

Agora, sou apenas uma pessoa que atua como um dos procuradores de uma das grandes investigações brasileiras. Minha eventual ação no campo da cidadania é bastante limitada. A mudança dependerá do envolvimento de líderes da sociedade, para que haja um novo espírito no parlamento. Já há diversos congressistas comprometidos com a pauta anticorrupção e lutando por mudanças, cujos esforços merecem ser apoiados, mas ainda são minoria. O que podemos fazer?

5. O estímulo ao exercício da cidadania na Igreja

Ao longo dos últimos anos, tive encontros sobre o combate à corrupção com entidades públicas e privadas, incluindo órgãos públicos, escolas e universidades, clubes Rotary, associações comerciais e industriais e entidades de diferentes religiões. O esforço contra a corrupção é suprapartidário e cidadão. Por todo lugar, estimulei o fortalecimento da cidadania e o esforço contra a corrupção.

Embora a luta contra a corrupção não seja especificamente religiosa, ela tem tudo a ver com a cosmovisão cristã de que compartilho, com ser sal da terra e luz do mundo e com integridade, justiça, compaixão e amor ao próximo.

É interessante que o único episódio que retrata a ira de Jesus externada por meio de ações físicas é o dos vendilhões do templo. Enquanto faltava misericórdia e justiça social para com viúvas, órfãos e outros necessitados, o templo, um espaço dos governantes, havia se tornado um “covil de ladrões”.

Em nossa democracia, há canais legítimos e pacíficos que podem veicular uma justa indignação contra a corrupção política e conduzir à transformação. Como vimos, a redução da corrupção política depende da mudança de leis e regras. Por sua vez, a mudança de leis e regras depende da política, especialmente no Congresso Nacional.

A questão, então, é: pode ou deve a igreja se envolver com a (atividade) política? Há dois significados do termo “política”, ou “atividade política”, que devemos distinguir. O primeiro é de política como atividade político-partidária. Não vou discutir aqui se a igreja deve ou não se envolver com ela. Há diversos argumentos favoráveis e contrários em relação ao engajamento político-partidário ou a ocupação de cargos políticos por líderes cristãos.

O segundo sentido é o de “política” ou “atividade política” como exercício de cidadania. Nesse sentido, a igreja se envolve com política mesmo que não perceba. De fato, quando há um buraco na rua em frente à igreja e ela liga para a prefeitura a fim de pedir seu conserto, isso é cobrar uma melhor prestação do serviço público, é atividade política no sentido de cidadania. Do mesmo modo, quando se reclama do buraco por onde se esvai o dinheiro público, isso é política no sentido de cidadania.

A igreja deve se envolver com o exercício da cidadania porque está dentro da polis, da cidade, e deve ser mais do que observadora do sofrimento em hospitais, das péssimas condições de escolas, da falta de segurança, do atendimento inadequado da assistência social a “órfãos e viúvas” ou de outros problemas sociais relacionados à quantidade ou qualidade do serviço público. Restrinjo minha análise, aqui, ao exercício da cidadania contra a corrupção em nosso país.

A cidadania demorou para se fortalecer no nosso país. No Brasil, tradicionalmente o Estado – controlado pelos donos do poder e do dinheiro – é forte e a sociedade civil é fraca. A proclamação da independência e a da república foram rearranjos das elites e não um movimento organizado pela população. No Índice de Democracia da The Economist, as notas do Brasil são baixas nos quesitos “participação política” e “cultura política”[31] [32]. Mudanças dependem do fortalecimento da sociedade civil, por meio da cidadania.

Alguns respeitados autores cristãos têm defendido o envolvimento cristão na política. Wayne Grudem, formado em Harvard, doutor por Cambridge, ex-professor da Trinity Evangelical Divinity School e professor do Phoenix Seminary, é um deles. Ele trata do papel do cristão na política em sua obra Política Segundo a Bíblia[33].

Apresentarei em seguida alguns de seus argumentos, contudo convém recordar, novamente, que minha abordagem se restringe ao envolvimento cristão a título de cidadania e quanto à pauta anticorrupção. Não faço qualquer avaliação, a favor ou contra, o envolvimento político-partidário, tema mais controverso, ou em relação a outras pautas.

Wayne Grudem sustenta que os cristãos devem influenciar políticas públicas, embora Igreja e Estado devam ser separados (Estado laico). Para aquele autor, ao mesmo tempo em que cristãos devem zelar pela liberdade religiosa, também devem contribuir para o debate de políticas públicas de modo não raivoso ou intolerante, mas gentil, cativante, amoroso, respeitoso e persuasivo.

Grudem afirma ainda que o exercício da influência cristã não significa o alinhamento com partidos políticos ou políticos. Significa sim defender boas causas, exercer cidadania. E fazer isso não significa abandonar prioridades da igreja. Cristãos têm diferentes vocações, ministérios e papeis. O foco da igreja em evangelismo não impede seus membros de serem bons pais, profissionais e cidadãos.

Dentre seus argumentos, o professor do Phoenix Seminary expõe que a Bíblia está cheia de exemplos de pessoas de fé que influenciaram o governo quer sendo parte dele, quer aconselhando ou criticando. Dentre eles, estão Daniel, José, Moisés, Neemias, Mardoqueu e Ester, no Antigo Testamento. Podem-se computar também as críticas às autoridades e à injustiça social por parte de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Jonas e outros profetas. No Novo, João Batista admoestou Herodes Antipas por seu comportamento pecaminoso. Paulo, na prisão em Cesareia, falou com o governador romano Félix sore “a justiça, o autocontrole e o julgamento vindouro” (At 24).

Além disso, segue o teólogo, em Romanos 13 (1-7), Paulo diz que autoridades governamentais são servas de Deus para o bem, inclusive por meio da promoção da justiça. Pedro, por sua vez, afirma que as autoridades são enviadas por Deus para “punir aqueles que fazem o mal e aprovar os que fazem o bem” (1 Pedro, capítulo 2, versos 13-14). Para Grudem, esses textos revelam expectativas bíblicas quanto à atuação de autoridades e se cristãos oferecem orientação a famílias sobre como educar suas crianças e para empresários sobre como conduzir seus negócios de acordo com a Bíblia, deveriam igualmente expressar sua opinião sobre assuntos debatidos na esfera política.

Grudem reconhece que a igreja cometeu terríveis erros no passado, mas ao mesmo tempo ressalta que teve importante influência para o estabelecimento dos “direitos humanos, da liberdade individual, da igualdade debaixo da lei e da separação entre Igreja e Estado”. A Constituição dos Estados Unidos teve uma significativa influência cristã. Cristãos lutaram contra a escravidão na Inglaterra e a segregação racial nos Estados Unidos. William Wilberforce e Martin Luther King Jr. ainda nos inspiram.

Esse papel positivo ocorreu porque muitos cristãos perceberam que são responsáveis não só pelo mal praticado, mas também por sua omissão (Ti 4:17). Em sua luta contra uma injustiça histórica e arraigada, Martin Luther King Jr. afirmou que “a última tragédia não é a opressão e crueldade dos maus, mas o silêncio sobre elas pelos bons”[34].

6. O papel de líderes da sociedade

Para que haja avanços, e não retrocessos, na causa anticorrupção, é essencial apoiar propostas anticorrupção, firmar posição contra retrocessos e fiscalizar o exercício do mandato pelos parlamentares, o que pode ser feito mediante visitas, ligações, e-mails ou mensagens nas redes sociais para parlamentares. O principal palco da causa anticorrupção é o Congresso Nacional.

A Igreja ora há anos sobre a corrupção brasileira. É essencial refletir e orar, mas é igualmente importante exercer cidadania. O diagnóstico que a Lava Jato fez da macrocorrupção política abriu uma janela de oportunidade para o tratamento. A abertura da janela para tratamento e o tratamento não se confundem. O tratamento exige que líderes e a sociedade saiam da inércia, da passividade e da apatia.

Além do envolvimento com a pauta legislativa anticorrupção, sugiro abaixo, para reflexão, três outras ações de cidadania que tenho defendido há tempos, em encontros com a sociedade civil. São ações que podem ser incentivadas por líderes da sociedade e que podem contribuir não só para as reformas anticorrupção, mas também para outras reformas de que o país precisa.

Tais ações constituem práticas saudáveis para fortalecer nossa democracia e a sociedade, as quais devem ser incentivadas de modo geral, não se referindo a um ou outro candidato. Trata-se de uma postura de vida construtiva e cidadã a ser mantida em todas as eleições. É ainda uma pauta cidadã que merece ser encampada nos diferentes setores, independentemente de visão ideológica ou partidária.

Em primeiro lugar, se o leitor já ouviu alguém afirmar que o brasileiro vota mal, ou se o próprio leitor disse isso, quero deixar um desafio: da próxima vez que acontecer, questione o que a pessoa fez para difundir informações a fim de que aqueles de sua área de influência votem melhor. É preciso parar de colocar a culpa no outro e assumir a responsabilidade pela mudança que queremos ver.

Não se trata de dizer em quem votar, mas de difundir informações relevantes ou websites apartidários que sejam fonte de informação confiável. Muitas pessoas hoje não sabem o que faz um senador ou deputado. Não sabem ainda como checar a vida pregressa de seu candidato e verificar se há suspeitas ou provas de ter se envolvido em corrupção. Não entendem ainda o sistema proporcional e que o voto é computado para o partido de seu candidato e que outro candidato pode ser beneficiado. Pior, muitos eleitores não investem meia hora para escolher seu candidato, quando é nas mãos deles que estarão os rumos e oportunidades das nossas vidas e de nossos filhos.

Em segundo lugar, é preciso que os políticos e suas equipes estejam preparados para os cargos que exercerão, que conheçam os problemas do país que podem tratar e saibam das principais propostas de solução, ainda que se reconheça que há funções públicas que podem ser exercidas sem conhecimento técnico específico.

De fato, dificilmente escolheríamos para uma cirurgia em nosso corpo uma pessoa que nunca estudou medicina. Por outro lado, o parlamento está cheio de pessoas que nunca estudaram políticas públicas sobre as quais votarão e que não equiparam seus gabinetes com pessoas que as conheçam. Essa preparação pode impactar a qualidade das leis e da fiscalização do Congresso sobre a administração pública.

No Paraná, um grupo de pesquisadores vinculados a uma importante entidade tentou agendar encontros com deputados para falar sobre os principais problemas e um plano de ação para o desenvolvimento do Estado em seus variados eixos. Previamente, dados foram levantados, projeções econômicas foram feitas e soluções foram documentadas em extenso trabalho. Contudo, de modo geral, o grupo sequer conseguiu ser recebido por políticos.

Não é exigível que um dado político domine as diferentes áreas sobre as quais legislará. Por isso, é recomendável que sua equipe inclua assessores capacitados para orientá-lo na legislação ou regulação temas-chaves para o país, ou ainda na fiscalização de políticas públicas do Estado. Cargos não podem ser uma mera contraprestação pelo trabalho de cabo eleitoral. Alguns poucos políticos já têm realizado processos seletivos públicos com testes e análise de currículo – medida que deve ser valorizada e incentivada.

Não se trata de necessariamente exigir que o candidato ou sua equipe tenha diploma ou formação acadêmica. Hoje, há cursos de preparação política que selecionam potenciais candidatos de diferentes perfis ideológicos e partidários e lhes oferece aulas com especialistas em políticas públicas debatidas no Congresso e informações relevantes para o exercício do mandato.

Agora, o preparo do candidato e sua equipe só ocorrerá se os eleitores exigirem isso dos candidatos. Além disso, o eleitor deve ser capaz de verificar na internet, de forma prática, qual o seu preparo e posicionamento sobre temas relevantes. Aplicativos de “matching eleitoral” têm contribuído para isso. Contudo, ainda há escassez de vídeos curtos de candidatos ao parlamento em que exponham seu ponto de vista sobre problemas sociais, políticas públicas e quem formará suas equipes. Entidades apartidárias respeitadas podem, por exemplo, gravá-los e disponibilizá-los online.

Em terceiro lugar, é preciso estimular a boa prática da pequena doação eleitoral, de cinquenta ou cem reais, ao candidato de preferência do eleitor, independentemente do partido ou ideologia. A doação eleitoral é um modo saudável de exercer a cidadania, mas no Brasil não é uma prática difundida.

Essa prática se torna ainda mais importante no contexto brasileiro atual, porque muitos candidatos com passado limpo e preparados são completamente desconhecidos da massa de eleitores e competirão com outros que receberão pequenas fortunas do fundo eleitoral para investir em sua campanha.

Convém neste ponto recordar, como dito acima, que há uma relação entre reais investidos na campanha e votos recebidos, e que o dinheiro eleitoral é distribuído de modo desigual pelos caciques partidários. Por isso, muitos bons candidatos precisaram nas últimas eleições e precisarão nas próximas de fontes de financiamento. Não se trata aqui de candidato A ou B, mas de qualquer que seja o candidato de preferência do eleitor.

Além disso, a realização da doação, por si só, pode incentivar o doador a investir mais tempo para escolher o candidato que receberá o investimento. Pode ainda estimular o doador a fiscalizar o exercício do mandato pelo político.

Em resumo, é saudável que líderes da sociedade promovam a cidadania por meio do voto consciente, da cobrança do preparo do candidato e sua equipe e do cultivo da boa prática da pequena doação eleitoral, independentemente do partido ou ideologia.

Por fim, é preciso refletir sobre estratégias para tornar tudo isso real nas variadas entidades da sociedade civil. Nas igrejas, um possível caminho é a criação de um grupo de cidadania ou de ação cidadã, que possa estimular a igreja a refletir, orar e agir, de modo apartidário, contra a corrupção e os principais problemas em serviços públicos sofridos pela comunidade ao redor.

Atualmente, a causa anticorrupção precisa de todos. Não sei quais são as suas desculpas para não se envolver. Sei quais eram as minhas. Poderia ter recusado ingressar na Lava Jato desde seu início, quando aquela investigação desconhecida representava apenas uma montanha de trabalho e a perspectiva de resultados era pequena. Poderia ter ficado omisso diante da necessidade de reformas legislativas mais amplas, pois propor novas leis exigiria esforço e traria exposição e riscos.

Desde os primeiros anos da Lava Jato, tenho enfrentado ameaças, ataques morais, riscos para a segurança minha e da família, perda de privacidade e ações e processos na Justiça e em conselhos. Não sei quais são as suas desculpas, mas existem momentos que exigem um sacrifício cívico maior de cada um de nós, e este é um desses momentos.

Por vezes, tive vontade de desistir. Procuradores e juízes são impotentes diante dos corruptos poderosos que enfrentam. Então, lembro que é por amor e compaixão. Que é uma luta por direitos e pela construção de um país melhor. Viver com senso de propósito faz tudo valer a pena: o cansaço, os riscos e os sacrifícios. Seguirei em frente com fé, servindo a sociedade e buscando reduzir a corrupção e o sofrimento humano que causa.

E você, o que fará?

____________________________

[1] DALLAGNOL, Deltan. A luta contra a corrupção. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa, 2017, p. 42.

[2] Cf., p. ex., a seguinte matéria: http://mais.uol.com.br/view/99at89ajv6h1/corruptos-desviam-r-200-bi-por-ano-no-brasil-segundo-a-onu-04028C9B3768D4A13326?types=A&. Acesso em: 17 jul. 2016. A matéria, de novembro de 2012, afirma ainda que os desvios da corrupção correspondem, segundo a PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), a 5% do PIB global, o que somava naquele ano 2 trilhões e 600 bilhões de reais.

[3] FIESP. Corrupção: custos econômicos e propostas de combate. Março de 2010. Disponível em: <http://www.fiesp.com.br/indices-pesquisas-e-publicacoes/relatorio-corrupcao-custos-economicos-e-propostas-de-combate/>. Acesso em 17 jul. 2016.

[4] Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,carga-tributaria-bate-recorde-de-35-07-do-pib-mesmo-com-a-economia-fraca,70002944416. Acesso em: 22 set. 2019.

[5] Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/12/03/carga-tributaria-sobe-para-324-do-pib-em-2017-a-maior-em-4-anos.ghtml. Acesso em: 22 set. 2019.

[6] Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2018/08/epoca-negocios-tres-em-cada-10-sao-analfabetos-funcionais-no-pais-aponta-estudo.html. Acesso em 22 set. 2019.

[7] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45470956. Acesso em 22 set. 2019.

[8] Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/brasil-cai-em-ranking-mundial-de-educacao-em-ciencias-leitura-e-matematica.ghtml. Acesso em 22 set. 2019.

[9] Disponível em: http://www.simers.org.br/noticia/na-fila-de-espera-realidade-enfrentada-pela-populacao-que-busca-atendimento. Acesso em: 22 set. 2019.

[10] Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-fim-da-mp-868-e-o-futuro-do-saneamento/. Acesso em: 22 set. 2019.

[11] O custo da universalização é de R$ 508 bilhões (http://www.tratabrasil.org.br/saneamento-no-brasil).

[12] Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/02/27/numero-de-mortes-violentas-cai-mais-de-10-no-brasil-em-2018.ghtml. Acesso em: 22 set. 2019.

[13] Disponível em: https://super.abril.com.br/blog/contaoutra/o-brasil-tem-mais-assassinatos-do-que-todos-estes-paises-somados/. Acesso em: 22 set. 2019.

[14] O gasto total anual, em 2014, foi de R$ 67 bilhões, segundo anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/9o-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica. Acesso em: 17 jul. 2016.

[15] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/procuradores-da-forca-tarefa-lava-jato-e-de-ponta-grossa-paranavai-e-apucarana-denunciam-beto-richa-pepe-richa-e-outras-31-pessoas-por-corrupcao-ativa-e-passiva-lavagem-de-dinheiro-e-pertencimento-a-organizacao-criminosa. Acesso em: 22 set. 2019.

[16] FIESP. Corrupção: custos econômicos e propostas de combate. Março de 2010. Disponível em: <http://www.fiesp.com.br/indices-pesquisas-e-publicacoes/relatorio-corrupcao-custos-economicos-e-propostas-de-combate/>. Acesso em 17 jul. 2016.

[17] V. ação penal 5061578-51.2015.4.04.7000 (denúncia disponível em: https://www.prpr.mpf.gov.br/pdfs/2015-1/lava-jato-1/denuncia_bumlai.pdf). Veja-se ainda, em anexo a essa denúncia, o relatório de auditoria R-02.E.003/2015. Ver ainda autos 5039475-50.2015.404.7000.

[18] Cf. pedido de busca e apreensão formulado pelo Ministério Público nos autos 50528770420154047000 e documentos anexos.

[19] NOONAN Jr., John T. Bribes. Nova Iorque e Londres: Macmillan Publishing Company e Collier Macmillan Publishers, 1984, p. 700; KLITGAARD, Robert. A corrupção sob controle. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 16..

[20] NICOLAO, Jairo. “Gastos dos candidatos a deputado federal em 2014”. Disponível em: https://rpubs.com/jaironicolau/304472. Acesso em: 12 ago. 2018.

[21] CARAZZA, Bruno. Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 103.

[22] Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,415-politicos-de-26-partidos-sao-citados,70001739925. Acesso em: 23 set. 2019.

[23] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1885698-delator-da-jbs-diz-ter-pago-propina-a-1829-politicos-eleitos.shtml. Acesso em: 23 set. 2019.

[24] Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/forum-economico-mundial-aponta-brasil-como-4-nacao-mais-corrupta-do-mundo-20238846.html. Acesso em: 23 set. 2019.

[25] Disponível em: https://www.transparency.org/cpi2018. Acesso em: 23 set. 2019.

[26] Disponível em: https://www.transparency.org/files/content/pages/2019_GCB_LatinAmerica_Caribbean_Full_Report.pdf, p. 16-17. Acesso em 23 set. 2019.

[27] JOHNSTON, Michael. Corruption, contention and reform – the power of deep democratization. Cambridge University Press. 2014.

[28] ACEMOGLU, Daron. ROBINSON, James A. Why Nations Fail: the Origins of Power, Prosperity and Poverty. Set. 2013.

[29] Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-esta-em-ultimo-em-ranking-que-mede-confianca-em-politicos/. Acesso em: 23 set. 2019.

[30] VANUCCI, Alberto. The controversial legacy of “Mani Pulite”: a critical analysis of Italian corruption and anti-corruption policies. In: Bulletin of Italian Politics, v. 1, n. 2, 2009, p. 233-264.

[31] Disponível em: http://www.eiu.com/Handlers/WhitepaperHandler.ashx?fi=Democracy_Index_2018.pdf&mode=wp&campaignid=Democracy2018. Acesso em: 02 out. 2019.

[32] Além disso, dentre 139 países avaliados pelo World Giving Index, o Brasil aparece na 63ª colocação no voluntariado e na 85ª quanto à doação filantrópica, que são formas de participação na comunidade (Disponível em: https://idis.org.br/wp-content/uploads/2017/09/relatorio-World-Giving-Index-2017.pdf. Acesso em: 02 out. 2019). Menos de 5% da população brasileira realizou trabalho voluntário em 2017, segundo dados do IBGE (Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/12/05/voluntariado-no-brasil-cresceu-13-em-2017-mostra-pesquisa-do-ibge.ghtml. Acesso em: 02 out. 2019).

[33] GRUDEM, Wayne. Política segundo a Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2014.

[34] KING JR., Martin Luther. The autobiography of Martin Luther King Jr. Ed. Clayborne Carson. New York: Grand Central Publishing, 1998.

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