Nota sobre a leitura escrevente ou hermenêutica diegética: o caso de Velha Amizade de Stênio Marcius

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Introdução

Leitura e escrita parecem processos complementares, frequentemente colocados como par, mas entendidos o mais das vezes como separados. Este texto explora um fenômeno em que ambos se misturam, ao que dou o nome de leitura escrevente ou hermenêutica diegética. O primeiro é quase autoexplicativo. Trata-se de uma leitura que escreve, que se realiza no ato de escrever. O outro foi cunhado com o objetivo de ser mais preciso, mas, como consequência, é menos imediatamente acessível, e requer uma explicação: diegética, é um adjetivo que formo a partir do substantivo grego diégesis, que significa o ato de contar, a narração. Uma hermenêutica diegética é, pois, aquela que se realiza por meio de uma narração, que é uma interpretação de outra narração, aquela dotada de autoridade e que requer (e é digna de) um esforço interpretativo.1 

Esse tipo de interpretação é amplamente verificável ao longo da história. Então, antes de analisar o exemplo escolhido para esta exposição (a música Velha Amizade de Stênio Marcius), menciono ao menos um exemplo mais distante no tempo.

Foi preservada em grego uma série de textos judaicos que se encaixam bem na categoria de hermenêutica diegética. Um exemplo é A Vida de Adão e Eva, em que o escritor reinterpreta o relato da queda por meio de um procedimento simples que pode ser identificado como mudança de perspectiva. Para tanto, em certo ponto do texto, ele transfere a voz narrativa a Eva, que conta sua versão dos acontecimentos. Essa mudança do ponto de vista produz um discurso muito interessante, por não contradizer o texto canônico, mas, ao mesmo tempo, explora seus silêncios, acrescentando informações não conflitantes em uma narrativa mais longa, no sentido de apresentar outra possibilidade para os eventos. Nisso o autor consegue sugerir uma forma alternativa de interpretar o texto canônico, sem explicitar que está a propor uma nova interpretação. Afinal, em princípio, está simplesmente tecendo uma nova narrativa a partir de outra.2

Também em exposições dissertativas, tanto antigas quanto contemporâneas, encontramos paráfrases de episódios bíblicos sendo utilizadas como ferramentas de uma hermenêutica diegética. Quantitativamente, essa é provavelmente a forma mais comum do fenômeno. Mas é também a menos sofisticada.3  Outras formas exploram recursos poéticos mais elaborados, inclusive pela transferência da narrativa a diferentes gêneros discursivos. Na Antiguidade, temos como exemplo a tragédia Eksagogué de um certo Ezequiel. Atualmente, parece-me que a música é um gênero especialmente dinâmico e apto a se apropriar da hermenêutica diegética (assim como a narrativa audiovisual).

Velha Amizade como leitura escrevente de Stênio Marcius

Velha Amizade é obviamente composta a partir de um episódio registrado nos Evangelhos sinópticos, o da cura de um paralítico levado até Jesus por certo grupo de homens (Mt 9:1; Lc 5:17-26; Mc 2:1-12), que Marcos tem o cuidado de dizer que eram quatro (Mc 2:3). Mas se nos três Evangelhos o episódio se inicia com o foco em Jesus no ambiente em que ensina, cercado por possíveis opositores, na música o primeiro verso já revela uma mudança de perspectiva:

Era um aleijado, mas que não viva só
Tinha 4 amigos
4 corações repletos de bondade e fé
Esperança à vista
4 cordas cada uma numa ponta de uma cama
Um buraco aberto num telhado
Muita sincronia equilíbrio e pontaria
4 homens que não sabem o que é
Desistir, duvidar

O aleijado não surge na narrativa e desencadeia uma discussão e uma cena de cura. A cena é construída a partir dele. Além de operar essa mudança de perspectiva, que certamente possibilitará a exploração de detalhes silenciados no texto canônico, o primeiro verso introduz um dado novo: o fato de o aleijado não viver só. E esse fato é introduzido por uma conjunção adversativa, como se o esperado fosse o contrário. Essa formulação da frase já introduz uma interpretação contextual, que deduz que os descapacitados costumavam viver isolados, sem apoio dos demais, o que se infere a partir de outras narrativas evangélicas, como a do cego Bartimeu (Mc 10:46-52) e a do coxo do tanque chamado Betesda (Jo 5:2-9). Além disso, como Marcos, Stênio numera os homens que levam o personagem central de sua música, e acrescenta o fato de serem amigos, que não é explicitado em nenhum dos Evangelhos, mas que é resultado de uma interpretação elementar do narrado. São quatro, são amigos por estarem juntos na ação, e estão cheios de bondade e fé. Ao menos a presença da fé é uma transposição importante de um dado presente nos três textos canônicos, uma vez que Jesus se dirige ao paralítico justamente ao perceber a fé daqueles homens (idòn… tèn pístin autôn – Mc 2:5; Mt 9:2; Lc 5:20). Esse dado parece especialmente importante para a narrativa, de modo que os três evangelistas concordam lexicalmente em sua apresentação. Nosso compositor o valoriza também, ao inserir o verso seguinte como consequência direta dos anteriores: o fato de ter esses amigos com bondade e fé é o que torna a esperança uma possibilidade real. Em seguida, uma série de imagens rapidamente evocadas nos mostra a cena e a ação. As cordas e a perícia dos quatro homens não são descritas nos Evangelhos, mas os versos tornam o episódio mais visível ao explicitar o procedimento. O texto vira música, e a música cria imagens na mente do ouvinte. Também o interior dos personagens é retomado ao fim da estrofe, e novamente características relacionadas a uma fé notável são evocadas. Seguimos à segunda estrofe:

Desce aquela cama bem no meio do lugar
Onde estava Cristo
O que é mais difícil? Quem irá me responder?
Perdoar ou curar?
Sai andando o aleijado carregando o seu leito
Como é livre alguém que é perdoado
No telhado 4 homens abraçados, lágrimas e risos
Me responda o que é difícil pra Deus operar

Só agora Jesus Cristo aparece, embora estivesse já presente no intento dos quatro homens. Três perguntas feitas por Jesus são justapostas, reproduzindo de modo condensado um diálogo tenso que se inicia, nos Evangelhos, a partir de questionamentos feitos em pensamentos por escribas e fariseus. É como se os versos fossem escutados por alguém que está no ambiente e acompanha com seus ouvidos uma parte da discussão. Lembremos que o foco narrativo na canção não é Cristo com seu conhecimento privilegiado. Logo, a cura em si não é cantada, mas seu resultado é visualizado exatamente como nos relatos canônicos. O paralítico cumpre a ordem de Jesus e sai carregando seu leito. Os três versos seguintes são comentários e acréscimos. A liberdade do ex-aleijado é atrelada ao perdão recebido; os quatro homens voltam ao foco da narrativa e suas reações são observadas; e o narrador faz um questionamento que serve como conclusão interpretativa: nem perdoar, nem curar é algo difícil para Deus, algo que os interlocutores de Jesus não entendiam, mas que lhes é explicado pela ação miraculosa e pelas palavras que se encontram no narrado. A questão central da autoridade de Cristo para perdoar não fica explicada na música, mas é referida ao menos tangencialmente.

A estrofe final é um acréscimo composto a partir de uma continuidade imaginada:

Olhas os 5 amigos até parecem com os guris do lugar
Sobe na figueira, pula ribanceira, banho de cachoeira com lama e poeira
Travessuras mil pra fazer
Como foi há tempos atrás
Chega de sofrer, chega de lembrar, bobo é quem por último chegar

Nos Evangelhos, como o foco é Jesus, a narrativa logo deixa o curado (indo para sua casa com a cama) e retoma seu curso. Na música, um momento posterior é marcado pela reunião dos quatro amigos cheios de fé com o homem curado. Aqueles homens adultos (ándres, Lc 5:18) parecem meninos. Suas ações são narradas de modo ligeiro. Comparativamente, o segundo verso apresenta um andamento muito mais rápido que aquele com o qual a música começou. Se antes havia esperança, mas também tensão e expectativa, agora há uma explosão de felicidade e dinamicidade, resultado da intervenção do poder (dýnamis) do Salvador. Por contraste, as simples ações repletas de alegria explicitam a mudança de vida resultante do encontro com Jesus. Se os Evangelhos ressaltam o embate com os opositores e a questão da autoridade, Velha Amizade destaca o exemplo, e propicia a leitura do texto como um paradigma do encontro do humano com o Deus-homem: o encontro é motivado por fé, opera-se uma intervenção, e logo se tem uma mudança ampla e feliz (que é lida-escrita pela sensibilidade do poeta-hermeneuta).

Stênio compõe sem se desprender dos textos canônicos, mas não simplesmente versifica esses textos. Ele os lê no que escreve, e escreve a canção no que os lê. Assim, faz uma hermenêutica diegética em uma poesia dotada de profundidade, de visualidade e harmonia (nos mais diversos sentidos). Nesse caso, a criatividade peculiar do leitor está a serviço de uma leitura escrevente notável, tanto como leitura quanto como obra poética.

Conclusão

Apesar da brevidade dessa exposição, o estudo apresentado é suficiente para demonstrar provisoriamente as múltiplas possibilidades desse tipo de leitura. Mas uma característica final deve ser observada, também a partir da experiência do contato com a música de Stênio: a hermenêutica diegética tem o peculiar poder de, inadvertidamente, mudar nossa compreensão e recepção do texto canônico. Depois de escutar Velha Amizade, a leitura do trecho correspondente nos Evangelhos se verá alterada por essa leitura específica. Isso revela uma faceta perigosa desse tipo de hermenêutica. Como ela é sutil e apresentada de modo discreto, se for mal feita ou intencionalmente deturpada, pode mudar a percepção de seu receptor de modo nefasto, sem que ele se dê conta disso.

Referências bibliográficas

BORGEN, Peder. Philo of Alexandria: an exegete for his time. Supplements to Novum Testamentum, v. 86. (Originally published: Leiden: Brill, 1997) Atlanta: Society of Biblical Literature, 2005.

RICOEUR, Paul. Interpretive Narrative. In: Figuring the Sacred: Religion, Narrative and Imagination. Translated by David Pellauer. Minneapolis: Fortress Press, 1995. p. 181-199.

RIOS, C. M. A versão de Eva: perspectiva, narrativa e interpretação em A vida de Adão e Eva. In: Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. v. 3, n. 5. Belo Horizonte: NEJ – Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, 2010. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/1694/1779. Acesso em 07 de março de 2014.

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1Certamente, não sou o primeiro a perceber o fenômeno. Minha própria reflexão sobre o tema, que proporciona a formação da proposta desse novo nome, começou a partir de um escrito de Paul Ricoeur (RICOEUR, 1995).
2Sobre A vida de Adão e Eva e essa proposta de leitura, sugiro RIOS, 2010. Diversos outros textos aparentemente judaicos também preservados em grego parecem explorar recursos semelhantes. É o caso do Testamento de Jó. Logo no início, por exemplo, Jó encontra uma forma de resolver a questão sobre sua localização cronológica na história dos hebreus: ele diz que seu nome era originalmente Jobabe (Iobab), antes de ser mudado para Jó (Iob) pelo Senhor. Assim, estabelece uma relação com o Jobabe mencionado no capítulo 36 do Gênesis, que enumera as gerações de Esaú (cf. Gn 36:33). E esse Jó narrador conta justamente que é dos filhos de Esaú (ek tôn huiôn Esau) e, por isso, afirma o pertencimento de seus filhos ao povo de Israel afirmando que por parte de mãe são da descendência de Jacó (ek spérmatos Iakob). Com uma simples narrativa colocada na boca de Jó, o escritor resolve uma questão hermenêutica considerável. Caso um pouco diferente é o de José e Assenete, pois, embora o autor opere a partir dos vazios da narrativa canônica, e proponha uma série de elementos novos, seu intento não me parece ser o de estabelecer uma interpretação, mas sim o de criar um tipo de romance (comparável aos romances gregos como Quéreas e Calírroe ou Dáfnis e Cloé) a partir de um personagem tradicional, ainda que seja possível vislumbrar algo além: como uma reflexão a respeito da conversão e das fronteiras da religião. Digo isso para esclarecer que não quero reconhecer toda e qualquer escrita narrativa que se apoia no texto bíblico como hermenêutica diegética. Há narrativas longas de Fílon de Alexandria, por exemplo, que podem ser caracterizadas como re-escrita da Bíblia (BORGEN, 2005, p. 46ss). Embora contenham trechos em que lançam mão do que chamo de hermenêutica diegética, constituem-se como um projeto literário mais amplo e desprendido do texto canônico.
3Em nossos dias, é já formular a introdução desse tipo de interpretação por parte dos pregadores com uma expressão como “o texto não diz, mas posso imaginar…”.

1 COMENTÁRIO

  1. A partir da poesia Steniana, Cesar Motta Rios nos faz sentir o prazer de se resgatar a teologia devolvendo-a ao seu quintal, ou melhor dizendo, ao seu Eden, enquanto hermenêutica dieg‚tica. Obrigado.

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