Mangá Messias e os novos suportes para a tradução do texto sagrado

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Nos anos 70 e 80 do século xx, houve um “boom”1  na produção da literatura para crianças e jovens. Esse momento foi marcado tanto por transformações internas como externas. Em termos históricos, surgiram novas formas e suportes de leitura que, se comparados, revelam uma transformação no estatuto do leitor. Alguns teóricos2  costumam classificar essa transformação do leitor, valendo-se dos termos: leitor contemplativo, leitor movente e leitor imersivo3.

Dessa forma, o livro passou a ser considerado como um ponto de encontro de códigos de outras linguagens, caracterizados pela troca de elementos e pela pluralidade de suportes. Esses fatores confluentes no livro (enquanto objeto) faz com que este se apresente com um novo formato, ou seja, como um objeto novo.

A terminologia objeto novo, cunhada por Lúcia Pimentel Góes, diz respeito à pluralidade que a literatura para crianças e jovens demanda. Essa pluralidade fala aos sentidos e faz uso da linguagem da percepção e, além disso, articula elementos como o imaginário, o visual, os diferentes tipos de materiais para a confecção, cores, tipos de letras, diferentes tipos de papel, diagramação, etc.

Dessa forma, o objeto novo exige do leitor um novo horizonte na formação da leitura: “[…] objeto novo é a denominação por nós sugerida para os livros que apresentam uma concentração de linguagens de natureza vária e variada. Para lê-lo em fruição plena é preciso um olhar de descoberta”4. (grifo do autor)

Essa leitura, pelo olhar de descoberta, desperta no leitor o seu repertório, promovendo integração (por meio das sensações), associação (ativada pela percepção) e produção (que gera significações). Assim, no dizer de Góes, o leitor: “Conhece o texto como prática textual e intersemiótica, reconhece a inter-relação e a dialética da linguagem em movimentos circulares de renovação-revolução”5.

Além disso, destacamos que a literatura destinada aos jovens no Brasil, há tempos, já se configurou como um sistema literário6: existem autores que se dedicam à produção de obras para um público leitor específico. Esse tripé autor-obra-público confirma que não se tratam de manifestações literárias isoladas. Muito pelo contrário, principalmente a partir dos anos 70 no Brasil, houve um “modo industrial de produção de cultura”7 . Esse fator fez com que a Literatura para Crianças e Jovens assumisse um “esforço renovador”.

Do mesmo modo, no contexto cristão, percebe-se também o uso de estratégias discursivas para se produzir uma literatura que se identifique com essa renovação. Nesse caso, não podemos deixar de citar a obra Mangá Messias, que não apenas carrega em si marcas dessa renovação como também serve de instrumento para a transmissão da mensagem bíblica a esse público leitor contemporâneo.

Os aspectos literários de Mangá Messias
Mas, afinal, o que significa mangá? Mangá é o nome dado às histórias em quadrinhos japonesas, também conhecidas como arte sequencial. Em termos gerais, essa arte se distingue pela reprodução da ação, recorrendo a enquadramentos ousados e explorando os movimentos da cena. Além disso, um traço bem distintivo do mangá pode ser visto na caracterização das personagens: os olhos geralmente são grandes, definidos, redondos e brilhantes — o que confere emoção à personagem; os cabelos podem assumir diversas formas e cores; o corpo é composto de diversos detalhes.

Foi a partir dos anos 1990 que o mundo inteiro se surpreendeu com a “invasão” dos mangás no mercado editorial ocidental. A difusão dessa arte oriental no ocidente expressa a troca cultural que, entre outras coisas, o mundo globalizado proporciona: “[…] da mesma forma que os japoneses assimilaram a técnica ocidental no final do século XIX, o estilo mangá está sendo absorvido e adaptado para conteúdos ocidentais (e brasileiros no caso) tornando-se uma nova forma de expressão da arte sequencial […].” 8  Em vista disso, o mangá, com seu estilo dinâmico e inovador, tem atraído, de forma excepcional, crianças e jovens não só do oriente como também do ocidente.

A obra Mangá Messias, cuja proposta é narrar a vida de Jesus por meio dessa arte sequencial, foi publicada por Edições Vida Nova em 2008. Trata-se de uma tradução do original Manga Messiah, que, em sua produção, contou com uma equipe composta de profissionais habilitados tanto no aspecto literário como gráfico (roteirista, responsável pela arte visual, assistente de arte, diretor de arte, supervisor e coordenador).

Mangá Messias resguarda as características dessa arte seqüencial preservando e transmitindo a mensagem bíblica. Por isso, nossa proposta é analisar como a mensagem do evangelho se configura nesse novo suporte literário.

Um dos primeiros aspectos a serem levados em consideração é a interação entre a linguagem verbal e a linguagem visual. Na obra em questão, toda a narrativa da vida de Jesus é ilustrada no estilo oriental. E esse código visual presente na obra não pode ser, de forma alguma, menosprezado, pois: “o design gráfico do livro […] envolve o conjunto de elementos gráficos que, dispostos harmoniosamente, influenciam a recepção da narrativa e contribuem para a formação do olhar estético.”9

É por meio da linguagem visual que o leitor percebe o dinamismo do enredo. Todo o texto visual de Mangá Messias é estilizado de forma a acentuar a movimentação das personagens bem como do espaço em que a narrativa se circunscreve. Soma-se a isso a presença de onomatopeias (representação dos sons) que na obra se apresentam fora dos balões (“hyuuuuu…”, p. 7; “vapt”, p. 8; “fupt”, p. 9). Assim, é por meio da seleção de imagens que o leitor ativa a percepção para os sons e movimentação da narrativa.

Em relação à linguagem, a narrativa por se enquadrar no suporte livresco mangá, prioriza a estrutura da língua falada e não da escrita. Dessa forma, percebe-se que balões de diálogo são mais recorrentes do que os de pensamento. Essa característica da linguagem somada ao aspecto visual faz com que o enredo seja dinâmico e o leitor construa uma leitura fluente.

Outro aspecto que merece destaque é a interatividade. A obra termina com um desafio ao leitor: “Agora é com você… Tudo isso foi escrito para que você creia que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. Se crer nele, você terá a vida eterna, como ele prometeu.” (p. 280) Esse desafio ao leitor se dá de maneira sutil uma vez que a relação personagens-espaço-tempo mostra a movimentação que Jesus fez no mundo. Porém, essa revolução pode sair da narrativa e se fazer presente na vida do leitor! É por meio da leitura que o leitor pode se ver na história e perceber a continuidade da história em sua própria vida.

Com isso, finalizamos nossa breve abordagem recomendando a obra a todos os leitores de todas as idades, afinal literatura não tem destinatário. O bom livro fala à criança e ao adulto. A obra em questão é literatura porque é arte da palavra carregada de significação que desperta a percepção do leitor e aponta para o desafio da eternidade.

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Notas:
1COELHO, Nelly Novaes.  Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil. Das Origens Indo-Europeias ao Brasil Contemporâneo  4.ed., São Paulo: Ática, 1991, p. 264s.
  2SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço. o perfil do leitor imersivo. São Paulo: 2.ed., Paulus: São Paulo, 2007.
  3O leitor contemplativo é aquele que se dedica a ”[…] uma leitura individual, solitária, de foro privado, silenciosa, leitura de numerosos textos, lidos em uma relação de intimidade, silenciosa e individualmente […]” O leitor movente “[…] é o leitor que foi se ajustando a novos ritmos da atenção, ritmos que passam com igual velocidade de um estado fixo para um móvel[…]” O leitor imersivo é “[…] um leitor que navega numa tela, programando leituras, num universo de signos evanescentes e eternamente disponíveis […]”
  4GÓES, Lúcia Pimentel. Op. Cit., p. 19.
  5GÓES, Lúcia Pimentel. Op. Cit., p. 24.
  6De acordo com Antonio Cândido, um sistema literário pressupõe autores nacionais, as obras por eles produzidas e um público leitor. Assim “[…] todo o processo de comunicação pressupõe um comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando, que é o público a que se dirige; graças a isso define-se o quarto elemento do processo, isto é, o seu efeito.”
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 11.ed., Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2010. p. 31
 7LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina.  Literatura Infantil Brasileira. História e Histórias  6.ed., São Paulo: Ática, 2006, p. 160.
 8 LUYTEN, Sonia M. B. Mangá produzido no Brasil: pioneirismo, experimentação e produção. Anais: XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.
 9 LIMA, Graça. Lendo imagens. In: Nos caminhos da literatura. São Paulo: Peirópolis, 2008, p. 37.
      

REFERÊNCIAS BÍBLIOGRÁFICAS
COELHO, Nelly Novaes.  Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Ed. Peirópolis, 2000.
______.  Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil. Das Origens Indo-Européias ao Brasil Contemporâneo. São Paulo: Ática, 1991.
LIMA, Graça. Lendo imagens. In: Nos caminhos da literatura. São Paulo: Peirópolis, 2008.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina.  Literatura Infantil Brasileira. História e Histórias. São Paulo: Ática, 2006.
SANTAELLA, Lucia.  Navegar no Ciberespaço. o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2007.
Mangá Messias. São Paulo: Edições Vida Nova, 2008.

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