Localizando a santidade na dogmática: a necessidade de uma metafísica e uma crítica à matriz evangélica

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A doutrina da santificação é por vezes tratada como uma mera pureza moral. Se pararmos para pensar, talvez grande parte dos tratados cristãos sobre santificação discursam sobre o papel que temos de nos separar do mundo.

Quando isso não ocorre, o jogo passa para estudos léxicos das palavras quadhosh ou hagios. Um dos tratados evangélicos mais usados no Brasil é o de J.C. Ryle Santidade: Sem a Qual Ninguém Verá o Senhor.[1] Nesta obra, Ryle navega o tópico de santidade incialmente falando sobre o poder do pecado, a natureza da santificação e logo em seguida, sobre os custos e dificuldades morais da santificação. Tal obra tem o empenho de incentivar o leitor a uma vida mais pura. Entretanto, é preciso notar que a doutrina da santidade cristã não é resumida apenas nas ações humanas de luta e resistência. A doutrina da santidade tem um locus sistemático. Localizar a doutrina da santidade será, então, minha tarefa neste artigo. Após localizar a santidade na dogmática, irei navegar um paradigma clássico no evangelicalismo e finalmente propor certas correções baseadas no entendimento anterior do santo em relação ao Deus do pacto.

John Webster percorre um caminho interessante e começa tratando a santidade da teologia em seu livro.[2] Ou seja, ele considera: “Uma teologia cristã da santidade é um exercício da razão sagrada.” Ele começa com uma crítica da ideia da modernidade de “razão natural” como “transcendente, ignorando os efeitos noéticos da queda”. Ele argumenta que, ao fazer teologia, este exercício da razão sagrada é fundamental:

A teologia cristã é um exemplo particular da santidade da razão. Aqui também – como em todo pensamento verdadeiro – devemos rastrear o que acontece quando a razão é transformada pela obra de julgamento, justificação e santificação do Deus Triúno. A santificação da razão, além disso, envolve uma medida de diferença: a transformação da razão anda de mãos dadas com a não conformidade. A razão sagrada é a razão escatológica, a razão que se submete ao processo de renovação de todas as coisas à medida que o pecado e a falsidade são postos de lado, a idolatria é reprovada e a nova criação é confessada com arrependimento e deleite.[3]

Webster, neste caso, aborda três aspectos da santidade nas escrituras: a santidade de Deus, da igreja e do indivíduo. Começando com a santidade de Deus, Webster a considera como sendo Triúno: Pai, Filho e Espírito, santo em todos os atributos e obras de Deus. Essa santidade é evidenciada no estabelecimento de relacionamentos santos com seu povo, redimido para ser santo por meio da iniciativa do Deus Triúno.

Ele então se dirige à igreja, descrita como sanctorum communio. Ele fundamenta a santidade da igreja na eleição, na reconciliação e na obra de aperfeiçoamento de Deus, um tema da graça de Deus na santidade do povo de Deus que percorre este livro. Essa santidade é evidente em todas as ações da igreja quando confessam o nome do Deus Triúno. Finalmente, ele discute a santidade do cristão. Também aqui, a santidade do princípio ao fim é obra da Trindade, também na eleição, reconciliação e aperfeiçoamento. Isso é por meio da fé, tanto na morte para o pecado quanto na renovação da vida expressa na liberdade, obediência e amor, em direção ao fim da comunhão com Deus.

Apesar de entender que a obra de Webster merece grande recomendação, meu propósito aqui não é apenas “re-rascunhar” ou resenhar esta obra. Mas aqui vamos localizar a santidade dentro da teologia cristã.

O que é santidade?

Antes de localizar santidade, precisamos entender santidade em ter­­mos dogmáticos. A tarefa da definição dogmática é muito comum em loci tradicionais como expiação, trindade e criação. Obras recentes como a de Tyler Wittman God and Creation in Theology of Karl Barth and Thomas Aquinas[4] ou de Jeremy Treat The Crucified King[5] têm engajado esses loci. Mas santidade assemelha-se a um entendimento dogmático mais robusto. Normalmente, os tratamentos de santidade localizam-se na função de duplex gratia que santidade desempenha com a justificação. Mas destaco dois tratados recentes de ordem evangélica que têm discutido o tema de santidade de maneira realmente dogmática: Sanctification[6] de Michael Allen e uma obra editada por Kelly Kapic: Sanctification.[7]

Michael Allen exemplifica o approach tomado aqui ao dizer que santidade não pode ser tratada apenas como “santidade de Deus” e “exemplarismo”, pois agir de tal maneira seria diminuir a completa ação de Deus em Cristo no evangelho. O que quer que santidade seja precisa ser visto pelos diversos prismas teológicos de Deus, criação, ordem, Cristo, aliança homem, escatologia etc. Definir santidade apenas em termos morais de luta e desafio perde a profundidade do tema.

Seria impossível em um único artigo prestar o devido tributo à santidade de maneira santa, pois não temos o tempo necessário para discutir santidade em relação a todos estes loci. O que podemos fazer minimamente aqui é tratar das bases epistemológicas e ontológicas da definição de santidade em relação à teologia. Em outras palavras: Como sabemos o que é santo e qual a natureza daquilo que é santo.

  1. Como sabemos o que é santo?

A santidade evangélica é definida pelo seu contexto canônico. Ou seja, saber o que é santo precisa ser uma atividade revelatória divina. Isso significa também que “não começamos com uma análise sociológica ou até meramente exegética das práticas eclesiais versus as praticas seculares pagãs, mas precisamos descrever a identidade teológica dessas coisas.”[8]

Deus não se relaciona com a criação ad hoc. Ele sempre inicia seu relacionamento de forma a estruturar e progredir no relacionamento com sua criação. Desta maneira, Deus corta suas alianças e estabelece segurança relacional com sua imagem na terra. Este tipo de segurança relacional é necessária, pois desloca o relacionamento divino bíblico do relacionamento divino que vemos em tratamentos helênicos. Yahweh é livre e por isso poderia fazer o que ele bem entendesse. Entretanto, ele não age caprichosamente e também garante não fazer isso por meio de reflexos básicos em sua natureza, mas garante com o pacto em iniciativa divina de se relacionar com aquilo que não é Ele.

Tal observação atenta ao modo divino de ação, que já nos traz reflexões sobre a maneira em que a santificação ocorre: Não é apenas mais um dos “momentos” de nossa salvação como se fosse subsequente temporalmente à justificação. Inicialmente, essa reflexão não parece ser tão logicamente ligada ao que falávamos anteriormente sobre pacto. Mas perceba que o que estamos dizendo é que o que garante nossa santidade não é nem a nossa persistência e nem a mera e nuda liberdade de Deus. O que garante o nosso projeto de santificação é que Deus decidiu se unir a nós como clímax do pacto escriturístico em Cristo Jesus. Brannon Ellis captura bem a ideia ao dizer que “estar em Cristo e pertencer a sua igreja são materialmente equivalentes, como formas complementares do todo em nossa participação na mesma realidade pactual.”[9] Em outras palavras, as declarações livres de Deus sobre justificação, chamado eficaz não devem ter precedência teológica e muito menos temporal sobre a nossa participação em Cristo.

Mas não nos esqueçamos de que ainda estamos apenas falando das bases epistemológicas da santidade. Não vamos nos adentrar muito profundamente na união com Cristo sem antes entender que é exatamente porque participamos em Cristo que evidenciamos nossa santidade. Não como um momento subsequente a nossa participação mística nele, do tipo: Estou em Cristo, agora sou santo. Mas como a mesma realidade observada de dois ângulos diferentes. Assim como justificação e santificação são chamados de duplex gratia ou dois lados da mesma moeda, meu argumento aqui observa essa realidade a partir da profundidade da ação pactual divina: União (ou participação) e pacto com o povo de Deus de andar com eles em novidade de vida são dois lados da mesma moeda.

Isso responde então à nossa pergunta inicial sobre saber o que é santo. Certamente é mais do que estar pactualmente membro de uma comunidade. Mas nunca pode ser menos que isso. Assim como a união com Cristo é a fonte pela qual recebemos todos os benefícios da salvação, nossa participação em uma comunidade (de forma pactual) é como recebemos também as bênçãos do andar em santidade.

  1. A Natureza do santo

Santidade é uma doutrina derivada. O que quero dizer com isso? Significa que ela não se encontra distribuída ao longo do corpus teológico. As chamadas doutrinas distributivas são Deus e Criação. Qualquer doutrina do resto do corpus teológico precisa fazer alguma referência, pois está naturalmente ligada a uma dessas duas doutrinas. Veja na santidade: Aquilo que é santo precisa fazer referência a Deus que é a fonte de toda santidade. Mas também precisa diferenciar aquilo que é santo de Deus. Objetos santos no AT ou a santidade de uma comunidade no NT são santidades participativas (i.e., veja a seção anterior), não autogeradoras.

A santidade de Deus é a base ontológica da santidade do cristão. É o cristão que participa na santidade de Deus. Deus por outro lado não participa de qualquer santidade, mas ele é em si santidade. Primeiro, vamos clarificar um erro comum: santidade contra alguns tratamentos recentes de ordem evangélicas não é o atributo principal ou mais importante da realidade divina.[10] Seguindo o teísmo clássico, Deus é seus atributos (Deus est ipsum esse). Ele não é um terço santo, um terço amor e um terço justiça. Deus não é composto de partes, mas ele é simples. Muito menos então Deus tem um atributo acima de todos os outros.

Como corolário desta afirmação acima, temos que entender que a igreja primitiva devotou grande consideração à doutrina da Trindade. John Webster reflete nesses valores ao entender que

A santidade de Deus é a santidade do Pai, do Filho e do Espírito, aquele que leva seu santo nome, que é santo em todas as suas obras, e que é o Santo em nosso meio, estabelecendo, mantendo e aperfeiçoando a comunhão reta com o povo santo de Deus.[11]

Vamos destrinchar essa tese:

A santidade de Deus é a santidade do Pai, Filho e Espírito. Todos os atributos de Deus são idênticos à essência de Deus; mas sua essência é seu ser e agir como Pai, Filho e Espírito Santo.

Nesta sentença, Webster está explicando e expondo um ponto de exegese patrística e escolástica com maestria. A doutrina da simplicidade é aquilo que encabeça o tratamento dele para que não caia em erro ao tratar uma doutrina. Esse erro é comum em tratamentos populares da doutrina da santidade de Deus. Mais a frente, Webster vai fundamentar a santidade de Deus como um projeto dogmático recebido e confessado. Ele faz isso em contradistinção ao projeto de Paul Tillich. Para Tillich:

Santidade é um fenômeno experimentado; está aberto à descrição fenomenológica. Portanto, é uma “porta” cognitiva muito importante para a compreensão da natureza da religião, pois é a base mais adequada que temos para compreender o divino. O sagrado e o divino devem ser entendidos correlativamente.[12]

Entretanto, se não é fenomenológico, então precisamos de uma base metafísica. Só que Webster baseia essa parte metafísica exatamente no nome de Deus. Um nome que ele não recebe, mas que trinitariamente ele revela.

O discurso teológico dos atributos divinos, portanto, não é principalmente uma questão de categorização, mas de confissão do nome divino; os atributos de Deus são glosas conceituais no nome de Deus, indicadores da identidade de Deus. É por essa razão que a tradição dogmática clássica insistia que, quando a teologia enumera uma gama de diferentes atributos de Deus, não está denotando diferentes realidades dentro do ser divino; ao contrário, cada um dos atributos designa a totalidade do ser de Deus sob algum aspecto particular. A santidade de Deus junto com seu amor, misericórdia, impassibilidade e outros, apenas colocam a realidade do fato que Deus é. Webster diz “O predicado (santo) é exaustivamente definido pelo sujeito (o Deus triúno).”[13]

O que Webster está fazendo aqui é importantíssimo, pois ele está demonstrando que santidade não é o resultado de uma ação intempestiva de Deus, mas justamente porque Deus e suas ações não podem ser separados, santidade é o próprio Deus. Isso vai trazer implicações futuras para chamadas de conformidade a santidade divina. Uma conformidade que não é reativa, mas confessional.

Para resumir até agora: Deus, a santíssima Trindade, é conhecido em sua inflexão para nós, e, por isso, falar da santidade de Deus é falar com base em sua majestosa presença autocomunicativa e salvadora. Deus, o Santo, é o Santo em nosso meio. A consequência crucial disso para como pensamos sobre a santidade de Deus é que a ideia da santidade de Deus é um conceito relacional. Ou seja, o que ela articula é a origem, a maneira e o objetivo da relação que Deus mantém com sua criação. Isso, por fim, demonstra tanto transcendência como imanência divina presente na teologia da santidade.

Modelos de santificação

Chegamos ao ponto em que podemos discutir os modelos de santidade cristãs, pois estabelecemos a origem e o fundamento da ação santa do homem em relação ao Deus santo. Estabelecemos a santidade confessional e participativa que temos na doutrina Cristã. Todo essa prolegomenum sobre santidade de Deus em termos ontológicos e epistemológicos serviu para que possamos ter melhor clareza sobre qual modelo melhor distribui a santidade divina em seu relato.

Andy Naselli descreve que os cristãos evangélicos sustentam pelo menos cinco modelos diferentes de santificação: a visão Wesleyana, a visão da vida superior (ou Keswick), a visão pentecostal, a visão chaferiana e a visão reformada.[14] Ele termina dizendo que a Bíblia ensina a visão reformada na caracterização dele.

  1. A Visão Wesleyana

John Wesley (1703-1791) é o pai das visões que separam cronologicamente o momento em que uma pessoa se torna cristã do momento em que a santificação progressiva começa. Wesley ensinou “perfeição cristã”, que como ele qualifica, não se refere à perfeição absoluta sem pecado. A perfeição cristã é um tipo de perfeição que somente os cristãos podem experimentar – em oposição à perfeição adâmica, à perfeição angélica ou à perfeição única e absoluta de Deus. A maneira como Wesley qualifica a perfeição cristã depende de como ele define o pecado como “uma transgressão voluntária de uma lei conhecida”. Ele limita o pecado a apenas atos pecaminosos intencionais.

A essência da perfeição cristã de Wesley é amar perfeitamente a Deus com todo o seu ser e, consequentemente, amar perfeitamente seus semelhantes. A perfeição cristã ocorre em um momento depois que você já é um cristão. Wesley rotula esta segunda obra da graça não apenas como perfeição cristã, mas como salvação de todo pecado, inteira santificação, amor perfeito, santidade, pureza de intenção, salvação plena, segunda bênção, segundo descanso e dedicação de toda a sua vida a Deus.

  1. Keswick

A teologia da vida superior é outro tipo de teologia da segunda bênção. Os cristãos experimentam duas “bênçãos”. O primeiro está sendo salvo, e o segundo está ficando sério. A mudança é dramática. A teologia da vida superior se refere a essas duas categorias distintas de cristãos de várias maneiras.

Deixe ir + deixe Deus = consagração. A chave é confiar, não tentar, descansar, não lutar.

  1. Visão Pentecostal

O pentecostalismo, de acordo com a maioria dos historiadores da igreja, começou em 31 de dezembro de 1900. De acordo com o pentecostalismo, os crentes devem experimentar o batismo no Espírito após a conversão e inicialmente demonstrar isso falando em línguas.

Os pentecostais estão divididos sobre se o batismo no Espírito acontece na crise da santificação ou em um momento posterior. Assim, alguns chamam o batismo no Espírito de “a segunda bênção” e outros de “a terceira bênção”. As três bênçãos são (1) a crise da conversão para a salvação, (2) a crise da santificação para a santidade e (3) a crise do batismo no Espírito para poder no serviço.

  1. Visão Chaferiana

Como a teologia da vida superior, a visão chaferiana identifica três categorias de pessoas: (1) naturais (não convertidas), (2) carnais (convertidas, mas caracterizadas por um estilo de vida não convertido) e (3) espirituais (convertidas e cheias do Espírito). Ao contrário da teologia da vida superior, a visão chaferiana insiste que o batismo no Espírito ocorre na conversão para todos os cristãos. O batismo no Espírito é um ato definitivo na conversão, e o enchimento repetido do Espírito é a chave para um cristão viver como uma pessoa espiritual em vez de carnal.

  1. Visão Reformada

Naselli parte então para descrever a visão reformada de santificação. Segundo Naselli, a característica fundamental que distingue a visão Reformada é que não divide cristãos em dois grupos.

Justificação e santificação progressivas são distintas, mas inseparáveis. Só a fé justifica, mas a fé que justifica nunca está sozinha. A graça de Deus através do poder de seu Espírito garante que a mesma fé que justifica um cristão também progressivamente santifica um cristão.

Todos os cristãos são espirituais; nenhum é permanentemente carnal (1Co 2.6–3.4). Paulo descreve as pessoas como naturais, espirituais e carnais (ou “da carne”). A questão é se essas são três categorias distintas. Natural refere-se à “pessoa sem o Espírito”, e espiritual refere-se à “pessoa com o Espírito” (NVI). Todos os humanos estão em uma das duas categorias.

Transcendendo o paradigma evangélico

Certamente Naselli está correto em dizer que a visão Reformada acerta em não criar duas categorias de cristãos. Mas existem algumas nuances que são importantes de serem esquematizadas num relato mais especificamente católico-reformado.

A preferência pela nomenclatura “católico-reformado” se dá exatamente porque a visão reformada não é sui generis e muito menos surgiu num vácuo como se os reformadores fossem os primeiros a pensar sobre santificação. A realidade é que eles estavam fazendo este mesmo exercício que fizemos na primeira parte deste artigo. Estavam pensando santidade em maneira dogmática. Como ela se relaciona com as chamadas doutrinas distributivas e as distribuídas. A redescoberta da justificação pela fé somente com certeza modificou o prisma de visão. Pois realmente não podemos criar subsequência ou estágios de cristãos, visto que todos somos amados nEle (Efésios 1) e a teologia Reformada fez bem em entender esses dois conceitos como distintos, mas inseparáveis. Qual é, então, a nuance deixada de lado por Naselli?

Se lembrarmos das seções anteriores, estabelecemos que a doutrina de Deus – especificamente o Deus santo e trinitário – baseia seu relacionamento com a criatura através da aliança.

Esta tese estabelece que o tratamento sobre santificação cristã deve vir acompanhado de um fundamento trinitariano e pactual. O que todos os modelos anteriores deixaram de discutir foi como uma visão beatífica (especificamente tangente ao Deus trino), ou seja, a visão Bíblica da revelação divina informa este crescimento em contexto do pacto.

V. Fesko discute em seu artigo, “Aquinas’ view of Justification and Reformed Infused Habits”[15] que apesar de São Tomás ter praticamente mesclado justificação e santificação por explicitar que a fé que recebemos é um habito infundido, muitos reformados não rejeitaram a noção de hábitos infundidos por completo. Isso é fundamental porque o intento de uma teoria chamada de teoria habitus encontra sua razão de ser na contemplação do Deus trino. Fesko afirma neste contexto ao interagir com Michael Horton (que rejeita completamente a teoria de habitus como sendo um mediador desnecessário): “Não devemos falar meramente de ontologia, mas de uma ontologia pactual, pois Deus só se relaciona com os humanos por meio de aliança.”[16]

Concluindo: o que J. V. Fesko está explicando pode ser visto em John Owen: os hábitos infundidos não são a mesma coisa que justificação, mas falam sobre o relacionamento da alma para com o corpo num ato de recebimento de algo sobrenatural pela alma no processo de santificação relacional em união pactual com Deus no “segundo lado da moeda” como explicitado por Brannon Ellis acima. A aliança pactual em comunidade não é mera evidência da nossa união com Cristo, mas é outra forma de enxergar essa mesma união.

Isso significa não que nos tornamos versões melhores de nós mesmos por meio de habituação extemporânea. Owen explica este trabalhar salvífico em termos da aliança: “O método de Deus proceder conosco em sua aliança é que ele primeiro nos lava e purifica nossas naturezas, tira o Coração de Pedra, dá um Coração de Carne, escreve sua Lei em nossos Corações, põe seu Espírito em nós, em que como será evidenciada a Graça da Regeneração consiste”. Tomando emprestado da parábola de Cristo, Owen argumenta que Deus primeiro muda as raízes da árvore para que ela produza bons frutos (Lucas 6.43). Para Owen e os reformados ortodoxos, o conceito de hábitos infundidos fornece a metafísica e arquitetura para delinear a habilidade natural caída do trabalho sobrenatural do Espírito Santo. Essa estrutura fornece as distinções necessárias para duas funções importantes sobre a doutrina da santificação: (1) para delinear entre habilidades naturais e sobrenaturais e (2) para poder falar sobre uma teologia de virtudes.[17]

Uma teologia de virtudes fornece o aparato conceitual (e metafísico) para que a descrição de Andy Naselli seja estável sem que tenha que apelar somente para uma ação divina divorciada de guardas pactuais e ao mesmo tempo sem negligenciar agência humana no progresso santificador. Uma teologia de virtudes que se baseia em hábitos infundidos sabe que esses hábitos foram de certa medida sobrenaturalmente infundidos em nós pelo Deus triúno que pactualmente nos promete comunicar sua graça. Nessa mesma graça crescemos em caráter, sem obliterar totalmente a ação humana.

Espero que com essa reflexão possamos fugir daquele velho debate: justificação é um ato monergístico e santificação é sinergístico. Estabelecemos alguns parâmetros que iluminam nosso caminho. Primeiro, a santidade é derivativa e localizada em dois âmbitos teológicos: Deus e criação. Segundo, a comunicação desta santidade é feita em termos pactuais. O que significa que Deus cria em nós algo novo por meio sobrenatural e nos comunica isso por meio de seu Espírito com promessas que nunca podem ser desfeitas. Finalmente, ele usa a estrutura da aliança em termos de promessa e cumprimento para sobrenaturalmente criar raízes em nossas almas.

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[1] John Charles Ryle, Santidade: Sem a Qual Ninguém Verá o Senhor (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2016).

[2] John Webster, Santidade (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2021).

[3] Ibid., p. 11-12.

[4] Tyler Wittman, God and Creation in the Theology of Thomas Aquinas and Karl Barth (Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press, 2019).

[5] Jeremy R. Treat and Michael Horton, The Crucified King: Atonement and Kingdom in Biblical and Systematic Theology (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2014).

[6] Michael Allen, Sanctification, ed. Scott R. Swain (Grand Rapids: Zondervan, 2017).

[7] Kelly M. Kapic, ed., Sanctification: Explorations in Theology and Practice (IVP Academic, 2014).

[8] Allen, Sanctification, p. 35.

[9] Brannon Ellis, p. 81.

[10] R. C. Sproul, A Santidade de Deus, 1a edição (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2019).

[11] Webster, Santidade, p. 46.

[12] Ibid., p. 48.

[13] Wesbter, Santidade, p. 46

[14] Andy Naselli, “Models of Sanctification,” The Gospel Coalition, accessed March 7, 2022, https://www.thegospelcoalition.org/essay/models-of-sanctification/. As próximas 5 descrições são traduções livres e adaptações do que se encontra no ensaio proposto no site do TGC.

[15] Manfred Svensson and David VanDrunen, eds., Aquinas Among the Protestants, 1 edition (Hoboken: Wiley-Blackwell, 2017).

[16] Fesko, “Aquinas’ view of Justification and Reformed Infused Habits” in Aquinas Among the Protestants, 257.

[17] Fesko, “Aquinas’ view of Justification and Reformed Infused Habits”, 260.

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