É correto dizer que a sistematização da teologia se deu talvez mais por uma atitude reativa do que por uma questão proativa, isso é observável desde o texto bíblico. Paulo, por exemplo, ao escrever sua primeira carta aos Coríntios, dentre outras questões, escreve para corrigir um pensamento errado que havia na igreja em relação à forma como se celebrava a ceia do Senhor. De igual forma, o mesmo acontece com sua carta aos Gálatas, após passar por ali e ensinar pessoalmente, os judaizantes conseguiram adentrar às igrejas e espalhar seus conceitos heréticos, ao saber disso Paulo escreve sua carta com a intenção de corrigir o problema.
Quando se analisam os quatro primeiros Concílios ecumênicos da igreja, Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451), observamos a mesma atitude reativa impulsionando as formulações dos Concílios. Havia a doutrina correta, reconhecida historicamente pela igreja, mas de repente aparecem pensamentos incorretos, sobretudo no que se refere às questões cristológicas, trinitárias e pneumatológicas. Isso faz com que a igreja tenha uma postura apologética que vai resultar na sistematização teológica.
O historiador Justo González afirma que os concílios foram importantíssimos para estabelecer a distinção entre heresia e ortodoxia, pois “aqueles que vieram a ser considerados hereges não trabalharam fora da comunidade cristã — tais pessoas se consideravam cristãos fiéis, que tentavam explicar o evangelho de uma forma que seus contemporâneos pudessem entendê-lo”.[1] Ou seja, os hereges estavam usando a própria Escritura para fundamentar suas crenças erradas. O papel dos concílios, por tanto, foi o estabelecimento da interpretação correta daquilo que os textos realmente estavam dizendo.
Esse texto tem por objetivo apresentar alguns dos inúmeros pensamentos heréticos relacionados com a pessoa de Cristo nos primeiros séculos da igreja, e também apresentar a forma como a igreja respondeu a essas heresias.
Primeiras controvérsias
As primeiras controvérsias estão relacionadas a forma como se enxergou a pessoa de Cristo. Podemos dividir as heresias sobre Cristo em vários grupos distintos. Havia o grupo que negava a divindade de Cristo, o grupo que negava a humanidade de Cristo, o grupo que negava a união pessoal das duas naturezas de Cristo e o grupo que negava a distinção entre o Pai e o Filho.[2] Vamos focar nos dois primeiros grupos e nos temas que foram discutidos nos três primeiros séculos.
Heresias que negavam a humanidade de Jesus
Docetismo
Uma das primeiras heresias a surgir no começo da era cristã foi o docetismo. Esse termo é oriundo da palavra grega que significa parecer ou aparentar. De acordo com essa doutrina, Jesus tinha apenas aparência humana, mas não era humano de fato, sendo assim, ele apenas pareceu sofrer pelos pecados do homem.
Os docetas negavam explicitamente a realidade do corpo humano de Cristo como consequência de sua suposição de que o mal é inerente à matéria. Se a matéria é má, e Cristo é puro, logo o corpo de Jesus deveria ter simplesmente uma aparência fantasmagórica. Logo, o docetismo negava a real encarnação de Deus Filho e, consequentemente, também negava sua expiação mediante a morte na cruz, bem como sua ressurreição dos mortos. A origem do pensamento doceta não era bíblica, mas pagã, tendo em Alexandria sua principal base de apoio.[3] Gregg Allisson afirma que o docetismo se tornou uma parte fundamental do gnosticismo.
Gnosticismo
A principal característica do gnosticismo[4] era sua capacidade de sincretizar qualquer doutrina que achassem valiosas. Justo González afirma que quando os gnósticos tiveram contato com o cristianismo primitivo, logo se apossaram dos aspectos do cristianismo que mais pareciam importantes para eles. Além disso, González também afirma que o gnosticismo fazia uso do dualismo dos persas, das religiões de mistérios orientais, da astrologia babilônica, da filosofia helenística, dentre outras.
Em termos conceituais, podemos seguir a definição sobre gnosticismo que Claudio Moreschini traz em seu livro: “No sentido mais amplo, por gnose se designa qualquer movimento de pensamento segundo o qual a verdade divina de salvação está contida numa revelação acessível somente a poucos eleitos, os quais podiam obtê-la ou por meio da experiência direta da revelação ou mediante a iniciação à tradição secreta esotérica de tais revelações”.[5]
O gnosticismo partia de um pressuposto dualístico entre o material e o espiritual. Assim, sua doutrina enfatizava que o mundo material não era obra das mãos de Deus, uma vez que a matéria era má. Eles atribuíam a Criação do mundo material não a Deus, mas a um ser inferior. Seguindo nessa linha de raciocínio, o gnosticismo pregava que o corpo era uma espécie de prisão do espírito, de modo que a salvação consistia na libertação do espírito aprisionado dentro do corpo.
As consequências cristológicas do pensamento gnóstico foram terríveis. Ou seja, se a matéria é má, logo seria impossível Cristo ter encarnado. Havia então uma negação da encarnação de Cristo, bem como uma negação de seus sofrimentos e de sua morte.
Um exemplo das variações do gnosticismo se mostra no ensino de Cerinto, que foi um dos grandes expoentes do gnosticismo na virada entre o primeiro e segundo século. Ele afirmava que havia uma distinção entre Jesus e Cristo. Jesus teria sido o homem natural enquanto Cristo era o ser divino que desceu sobre Jesus na ocasião de seu batismo, tendo abandonado Jesus no momento de sua crucificação e voltado para o céu.
Eutiquianismo
Êutico, foi líder de um mosteiro em Constantinopla e ensinava que em Cristo, sua natureza divina havia suplantado a natureza humana. Sua visão é também conhecida como monofisismo, que carrega a mesma ideia da natureza divina absorvendo a natureza humana.
Heresias que negavam a divindade de Jesus
Os judaizantes
Os judaizantes foram o primeiro grupo que tentou se introduzir nos arraiais cristãos, a grande questão é que em relação aos judaizantes, temos o próprio texto bíblico que já os confrontava diretamente, uma vez que os apóstolos foram seus contemporâneos. Ainda assim, alguns resquícios judaizantes passaram pela época dos apóstolos e foram combatidos pela primeira geração pós-apostólica.
Um grupo que se destaca nessa época são os ebionitas. O termo aparece pela primeira vez na obra Contra as Heresias, de Irineu de Lyon. O termo deriva da palavra hebraica ebyon, que significa “pobre”. Para esse grupo, Jesus não era divino. Eles entendiam haver dois princípios, um do bem e outro do mal. Sendo o princípio do mal aquele que governa nossos dias. De outro lado, o princípio do bem reinará em um futuro escatológico. Até chegar esse futuro escatológico, o princípio do bem se mostra nesse mundo por meio de diversas encarnações de seu profeta representante. Tais encarnações se deram nas pessoas de Adão, Abel, Isaque e Cristo. Eles negavam o nascimento virginal do Senhor Jesus e entendiam que no ato de seu batismo ele havia recebido poder para cumprir sua missão, que não envolvia a salvação da humanidade, mas sim, um chamado à obediência à Lei de Deus.
Adocionismo
O adocionismo defendia que Jesus nasceu como um ser humano normal, mas que fora adotado por Deus como seu Filho. Como essa ideia ecoava nas sociedades pagãs, o contexto cultural contribuiu para a sua popularização. Paulo de Samósata é o nome mais associado à origem dessa doutrina. Para ele, Jesus era um homem em quem o Pai entrara e possuíra.
Atanásio sugere que Paulo entendia que Jesus havia sido concebido pelo Espírito Santo, de forma que ele era um ser humano moralmente superior aos demais, e por isso, ele era capaz de alcançar a impecabilidade de uma maneira que ninguém mais conseguiria.
Essa posição se mostrou muito atraente porque, de certa forma, oferecia uma recompensa semelhante à obtida por Jesus. Gerald Bray afirma que eles garantiam às pessoas que seus esforços levariam a uma boa vida em que nada era em vão, e que se tivessem de sofrer para isso eles receberiam uma bênção proporcional na vida porvir. Um tipo de salvação pelas obras.
Arianismo
Os historiadores reconhecem que não é fácil dizer especificamente no que Ário acreditava uma vez que o que chegou até nós sobre seus ensinamentos veio pelos relatos das pessoas que o combateram. Segundo Geral Bray, há também o fato de que os seguidores de Ário, que não eram poucos, modificaram suas percepções de diversas maneiras, de modo que mais tarde se considerava que o arianismo poderia ser diferente do que Ário realmente pensava. Ainda assim, segundo Bray, não resta a menor dúvida de que Ário provocou controvérsia desde o início e que, se o entendimento equivocado tivesse sido o único problema, haveria muitas oportunidades para corrigi-lo. Outro ponto interessante observado por Bray, é o fato de que a condenação do arianismo em Niceia nunca foi revertida, mesmo tendo surgido uma grande facção pró-ariana na época.
Ário era um presbítero do distrito eclesiástico de Baucale, em Alexandria. J.N.D. Kelly afirma que “a premissa fundamental de seu sistema é a afirmação da singularidade e da transcendência absolutas de Deus, a fonte não-originada (agennetos arché) de toda a realidade”.[6] Em resumo, pode-se afirmar que Ário defendia a ideia de que o Filho que se fez conhecido em Jesus Cristo era um ser divino, porém não era Deus. Era divino no sentido moral pelo fato de ser perfeitamente bom e santo, no entanto, não possuía características de Deus. Sendo assim, não foi necessário utilizar de aparições docéticas para se revelar. Ele era, ao mesmo tempo, superior a todas as coisas no mundo material e a mais elevada das criaturas espirituais. Havia uma enorme diferença entre ele e nós, mas essa diferença era de grau e não de tipo. Ele era totalmente compatível com o mundo material por ser ele mesmo uma criatura.
Atanásio, que foi o grande campeão contra o arianismo, escreveu acerca de uma correspondência entre Ário e o Bispo Alexandre, onde Ário começa com a seguinte declaração: “Nós reconhecemos um só Deus, que é o único não-gerado (agenneton, isto é, autoexistente), único eterno, único sem começo (anarchon), único verdadeiro, único detentor de imortalidade, único sábio, único bom, único soberano, único juiz de todos, etc.”. A ênfase na singularidade, transcendência e indivisibilidade do ser divino levou Ário a afirmar que o ser divino não pode ser partilhado ou comunicado. Caso Deus[7] comunicasse sua substância a algum outro ser, ele não poderia ser considerado indivisível e seria sujeito a mudanças, o que é inconcebível.
A resposta da igreja
Assim que essas visões heréticas começam a ser disseminadas, a Igreja logo tratou de refutá-las. Nesse sentido, homens como Atanásio, Tertuliano, Irineu, Hipólito de Roma dentre outros, tiveram um papel importantíssimo na defesa da fé verdadeira. Ainda assim, nada supera o papel desempenhado pelos primeiros Concílios da igreja no combate às heresias.
O primeiro Concílio acontece na cidade de Niceia entre os meses de maio a julho do ano de 325. Segundo Eusébio de Cesareia, o Concílio teve a participação de 250 bispos, além de sacerdotes, diáconos e acólitos.
Dentre os vários temas tratados, o mais complexo eram as teses de Ário que, como vimos, defendia que o Filho era uma criação inferior do Pai, o que consequentemente o legava a uma posição de subordinação eterna ao Pai. O próprio Ário expôs duas ideias junto com os seus seguidores.
O grupo contrário às teses de Ário era liderado pelo bispo Marcelo de Ancira, Eustáquio de Antioquia, Alexandre de Alexandria e Atanásio. Eles partiram do símbolo de fé da igreja de Cesareia e elaboraram o que ficou conhecido como Credo Niceno. Nesse credo, se evitou explicitamente as ideias de subordinação do Filho em relação ao Pai e obviamente, se evitou também a ideia do Filho ser uma criação do Pai. O ponto marcante do Credo nesse sentido é sua asseveração: “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, da mesma natureza do Pai” (homousion to Patri = consubstancial ao Pai).
Em 19 de junho de 325, o Concílio adotou esse novo símbolo e condenou as teses de Ário. Tanto ele quanto os dois outros bispos que votaram contra o novo símbolo foram excluídos da comunhão da igreja.
Além das teses de Ário, o conteúdo do Credo Niceno também refuta as demais heresias cristológicas surgidas nesses três primeiros séculos da igreja.
Em relação às heresias que negavam a divindade do Senhor Jesus Cristo, o credo afirma: “Creio […] Em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai; Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial ao Pai; por quem foram feitas todas as coisas que estão no céu ou na terra”.
Em relação às heresias que negavam a humanidade de Jesus, o Credo foi enfático: “Creio em um só Senhor Jesus Cristo […] o qual por nós homens e para nossa salvação, se encarnou e se fez homem. Padeceu e ressuscitou ao terceiro dia”.
Além dessas veementes declarações, o Concílio ainda estabeleceu como sendo anátemas aqueles que defendessem posições diferentes dessas que foram estabelecidas. Ao anátema diz-se o seguinte: “E quem quer que diga que houve um tempo em que o Filho de Deus não existia, ou que antes que fosse gerado ele não existia, ou que ele foi criado daquilo que não existia, ou que ele é de uma substância ou essência diferente (do Pai), ou que ele é uma criatura, ou sujeito à mudança ou transformação, todos os que falem assim, são anatematizados pela Igreja Católica”.
É nítido que as controvérsias não acabaram ali em Niceia. Ainda assim, é inegável o papel que esse Concílio tem para estabelecer as bases da fé ortodoxa. Alguns críticos da igreja afirmam, falsamente, que Niceia inventou a Bíblia, criou a forma como se deve crer, dentre outras coisas totalmente falsas. Niceia apenas condenou o pensamento equivocado que surgiu no meio do bom andamento teológico da igreja. O papel de Niceia foi de correção e explanação, não de fundamentação da fé. A questão foi condenar o pensamento errado, o pensamento correto já existia desde os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos.
Hoje, tem-se mostrado necessário enfatizarmos novamente o que foi feito em Niceia. Em nossos dias, é muito comum ver pessoas influenciadas por um cristianismo liberal angariando milhares de seguidores afirmando a natureza divina de Cristo como mito, como invenção da igreja, como resultado da mente perturbada dos discípulos após a morte de Cristo, nada mais falso. O Cristo real, o Cristo bíblico é aquele que nossos irmãos em Niceia contemplaram e descreveram em seu símbolo: “O Filho de Deus, gerado unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai; Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial ao Pai; por quem foram feitas todas as coisas que estão no céu ou na terra”.
Assim cremos e assim confessamos!
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Referências bibliográficas:
[1]Justo L. Gonzáles, Uma história do pensamento cristão, p. 115 [publicado por Cultura Cristã em três volumes].
[2]Franklin Ferreira e Alan Myatt propuseram essa distinção em sua Teologia Sistemática [publicado por Vida Nova sob o título Teologia sistemática].
[3]M. D. McD., “DOCETISMO”, Novo dicionário de teologia, p. 306 [publicado por Hagnos].
[4]Além de um certo protognosticismo que vem desde o período dos apóstolos, J.N.D. Kelly afirma que: “Alguns documentos do Novo Testamento também combatem o que parece ser influência gnóstica. Portanto, é mais satisfatório considerar o gnosticismo como um movimento ou, mais precisamente, como uma tendência mais ampla e mais antiga do que o cristianismo”.
[5]Claudio Moreschini, História da filosofia patrística, p. 43 [publicado por Edições Loyola].
[6]J. N. D. Kelly, Patrística: origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã, p. 172 [publicado por Vida Nova].
[7]Com “Deus” ele se refere ao Pai.
Chamar Gonzáles de Historiador chega a soar estranho dentro de um estudo na área histórica sobre Identidade e Formação de Pensamento. Dentro dessa perspectiva Judith Margaret Lieu teria um encaixe melhor. Qualquer debate sobre Heresia dentro duma perspectiva pós segundo século perde seu valor de referência dentro duma estrutura judaica cristã do primeiro século. Os historiadores realmente tem chamado a atenção para esse ponto, como Martin Goodman. No Brasil a USP tem muito contribuído em seu portfólio para consulta de uma análise mais profunda produzida por historiadores. Tal artigo acima é sim de suma importância para o debate, mas nós como historiadores não podemos deixar de focar em uma análise crítica para um melhor referencial da Identidade do Primeiro Século.
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-21112016-151911/pt-br.php