Deus no cinema de Ingmar Bergman

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Ernest Ingmar Bergman Äkerblön (1918-2007) nasceu em Uppsala, cidade universitária da Suécia, em 1918, filho de Erik Bergman, austero pastor luterano da paróquia de Hedwidge-Eleonora, e Karin Bergman, oriunda de uma família burguesa. Bergman figura entre os grandes cineastas de destaque que produziram ao longo da segunda metade do século XX. Sua obra é reconhecida mundialmente, em vista da capacidade de valer-se do medium cinematográfico como forma de expressar um profundo discurso existencial, psicológico e social.

Durante muito tempo a inserção da obra cinematográfica de Ingmar Bergman, no Brasil, ficou circunscrita aos cineclubes e as salas especializadas em “cinema de arte”. Entretanto, este cenário mudou nos últimos anos, quando já está disponível, no formato DVD, quase a totalidade da obra do cineasta sueco.

Entendo que dada à relevância da filmografia de Ingmar Bergman se justifica apresentá-lo aos leitores que ainda não conhecem sua obra. Também busco mostrar que o universo pessoal e o contexto sociocultural vivido pelo autor, incluindo sua formação protestante luterana, viabilizaram uma concepção particular de Deus.

Erik Bergman conduzia sua casa nos valores austeros do luteranismo. A educação rigorosa e a disciplina física que imprimia, frequentemente, aos filhos, transformavam-se em verdadeiras sessões de tortura e humilhação. Bergman relembra os momentos em que era castigado diante da severidade do pai, dizendo:

Mas o tema da humilhação é essencial. É um dos sentimentos que marcaram minha infância e dos quais me lembro mais: a humilhação, ser humilhado, fisicamente, por palavras ou numa dada situação (…) Eu falo das coisas que conheço. Eu critiquei duramente o cristianismo, em grande parte, justamente porque o tema da humilhação está muito presente nele, é quase inerente ao cristianismo. Em algum lugar, no começo do culto protestante, é dito: “eu, pobre pecador, que nasci no pecado, e que pequei cada dia da minha vida.” E, de uma forma puramente atávica, vivemos e agimos neste clima de punição. (BJÖRKMAN ET AL, 1977, p. 67-8,70).

Assim, Bergman, em suas observações sobre o viver religioso, no cristianismo protestante luterano, critica a importância dada à humilhação do cristão, que aparece nas palavras de Jesus (Lucas 14:11 e Mateus 23:12), nos escritos do apóstolo Pedro (I Pedro 5:6-7) e Paulo (Filipenses 2: 5-11), e, posteriormente, sistematizada por diversos teóricos ao longo da história do cristianismo.

Lutero (1483-1546) foi um desses teólogos da humilhação. Humilhar-se na teologia luterana implica o reconhecimento do cristão, como dependente de Deus. Lutero elaborou a teologia da cruz de Cristo, conclamando a todos os fiéis a participarem do discipulado do sofrimento, que nada mais é do que comungar do martírio da Cruz. Loewenich (1987, p. 119) frisa que a teologia do sofrimento não tem base em uma concepção metafísica do corpo, pois, se assim fosse, seria contrária à ideia de justificação pela fé, uma das bandeiras levantadas pelo Reformador alemão. Sofrer, jamais, se pode tornar uma boa obra. A compreensão do sofrimento deve ser entendida teológica e não antropologicamente, isto é, não se trata de uma abordagem da condição humana, mas da revelação de Deus na história, o qual se fez homem através de Cristo, sofrendo e morrendo numa cruz. Desta forma, conforme Lutero, o madeiro carregado por Cristo e a cruz do cristão formam uma unidade.

A disciplina rigorosa, que Erik Bergman aplicava em casa, era bem diferente da forma afável como tratava seus paroquianos. Desde cedo, Ingmar Bergman percebeu a conduta dúbia do pai, pois para ele:

Aquilo que, na aparência, seria a imagem perfeita de uma família bem unida, era, na realidade, uma vida miserável, cheia de conflitos dolorosíssimos. Também não me resta a menor dúvida de que meu pai tinha um talento formidável para ator. Fora daquele palco em que atuava, era um homem nervoso, irascível, deprimente (…) mas nenhum de nós questionava os papéis que nos tinham sido distribuídos, nem o absurdo daquele enredo. Víamos a situação como o destino que coubera (…) no diário secreto, minha mãe, por sua vez, escreveu que queria divorciar-se e ir viver na Itália. (BERGMAN, 1988, p. 135-6).

Bergman retrata esse mundo doméstico da infância e a prática pastoral do pai no filme Fanny e Alexander (Fanny och Alexander, 1983), bem como nos roteiros dos filmes As melhores intenções (Den goda viljan, 1992) e Crianças de Domingo (Söndagsbarn,1992), respectivamente, dirigidos por Bille August e por seu filho Daniel Bergman.

Aos poucos, Bergman se deu conta de não ser possível viver mais no meio familiar norteado pela aparência conjugal e severidade disciplinar, como descreve no roteiro de Crianças de domingo. Ainda adolescente, ele rompeu com os pais para viver em Gamla Stam, reduto dos artistas de Estocolmo. Ao sair de casa levou consigo uma concepção de divindade cristã, a qual perpassa quase toda sua obra. A noção de Deus que emerge de seus filmes em nada difere da firmada na infância, que é a seguinte:

É o deus cristão assimilado a um poder destruidor, terrivelmente perigoso para o homem e que se dirige às forças destruidoras obscuras do indivíduo ao passo que é o contrário que devia produzir (BJÖRKMAN ET AL, 1977:136).

Essa é a óptica de Bergman. Qual é a percepção luterana sobre Deus? Preliminarmente, é oportuno comparar a noção bergmaniana de Deus com a teologia de Lutero.

Consoante Altmann (1994, p. 47), o reformador alemão, quando falou de Deus em suas obras, não tratou como uma questão teórica, mas, sobretudo, como uma vivência prática, a partir da relação concreta de confiança e dedicação do fiel com seu Deus.

Para Lutero, a certeza da fé reside na nova aliança estabelecida entre Deus e os homens, por meio da ação salvadora decisiva, já ocorrida e estabelecida em Jesus Cristo. Portanto, esse é o motivo último da certeza da fé e a força terminal da vida de acordo com a realidade prometida:

Aí (na humanidade de Jesus Cristo) encontras a palavra de Deus com certeza. De outro modo, certamente percorrerás todas as criaturas, tateando aqui e apalpando ali, sem, contudo jamais encontrá-la, embora ela verdadeiramente esteja logo ali à mão; mas não está aí para ti. (apud ALTMANN, 1994, p. 49).

Conforme se verifica dessa “definição” luterana de Deus e sua relação com a humanidade, a princípio, parece que Bergman só percebeu a face do Deus escondido, que não pode ser alcançado pelo homem, que, mesmo misterioso, exige adoração, que castiga os pecadores e que é temível por expressar sua verdade eterna.

Bergman, portanto, rejeita as percepções humanas de Deus, pois tanto despreza a figura de Jesus Cristo e sua tarefa vicária, como reitera seu ódio por Deus, quando diz:

Não posso reprimir minha aversão a tudo o que presencio, odeio Deus e Jesus, sobretudo este último, que repugna pelo tom em que se dirige a nós, pela patética comunhão, por seu sangue. Deus, não existe, ninguém pode provocar a sua existência. E se existe, então está provado que é um deus miserável, mesquinho, tacanho e partidário! Basta ler o velho Testamento e aí o temos em todo o seu esplendor. E esse é o tal Deus do amor que ama o Homem! (BERGMAN, 1988, p. 84).

Bergman tenta negar a existência de Deus, mas não conseguia desvencilhar-se da presença da religião em sua vida, pois sua obra está repleta de uma divindade transcendente, que deixa os homens à mercê das forças da natureza e que se mantém oculta e em silêncio, mesmo quando os fiéis a buscam desesperadamente (GIBSON, 1969). Podemos verificar isso em filmes como O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), Morangos silvestres (Smultronstället, 1957), O rosto (Ansiktet, 1958), A fonte da donzela, Persona (Persona, 1966), Fanny e Alexander, além dos que compõem a chamada Trilogia do Silêncio de Deus1 : Através de um espelho (Sasom i em spegel, 1961), Luz de inverno (Nattvardsgästerna, 1962) e O silêncio (Tystnaden, 1963).

Para Lutero, segundo Wahl (1962, p. 43-44) existir é sentir-se pecador perante Deus, e buscá-lo, mesmo que esteja em silêncio, é uma necessidade interior. Para Bergman, porém, o homem padece de infortúnios, como solidão, angústia, desespero e morte sob os olhares de um Deus transcendente e silencioso, que dada a sua impotência se converte num mero boneco de marionete em Fanny e Alexander, cuja vida é dada pelo movimento dos fios ou como uma figura monstruosa, em Através de um espelho, na qual Deus é apresentado como uma aranha.

Referências bibliográficas
ALTMANN, Walter. Lutero e libertação. São Paulo: Ática, 1994.
BERGMAN, Ingmar. Lanterna mágica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
BJÖRKMAN, Stig et al. O cinema segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
GIBSON, Arthur. The silence of God: Creative response to the films of Ingmar Bergman. New York: Haper & Row, 1969.
KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães, 1990.
LOEWENICH, Walther von. A teologia da cruz de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1987.
MODICA, Giuseppe. Fede liberta peccato: figure ed esiti della “prova” in Kierkegaard. Palermo: Palumbo, 1992.
WAHL, Jean. As Filosofias da Existência. Lisboa: Europa-América, 1962.

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  1Na discussão da temática do silêncio de Deus, Bergman é tributário da reflexão filosófica de Sören Kierkegaard, notadamente, no que diz respeito à angústia que o homem sofre diante de um Deus silencioso. Os dois exemplos bíblicos paradigmáticos que aparecem nos trabalhos de Kierkegaard (1990) são Abraão e Jó. Conforme Modica (1992, p. 12), diante do silêncio de Deus, Abraão demonstra sua fé pela prova, enquanto Jó percorre o percurso inverso, pois é provado para aumentar a fé.

4 COMENTÁRIOS

  1. Conheci os filmes de Bergman desde de garoto, contudo só fui compreende-lo depois de adulto ecom formação em filosofia e teologia. Bergman como muitos filhos de pastores reformados nunca se perdoou pela vida pobre e limitada que teve com seus pais e então Deus se torna culpado por sua vida de filho de pastor. Contudo ele não eliminar Deus de sua vida, pois passou a vida toda brigando com alguem que ele diz não existir,pobre homem

  2. Ao Sr. Edilson Baltazar Barreira Junior
    Como fazer para compartilhar no meu facebook este excelente texto seu Deus no cinema de Ingmar Bergman? Conheço muitos admiradores de Bergman que adorariam conhecer este texto. Ao querer compartilhar no face, est  abrindo uma p gina Vida Nova e nada mais consegui.
    Agradeço sua atenção e orientação. Cordialmente.

    • Estimado Ribamar, desculpe-me só agora vi seu comentário ao meu texto. Publiquei vários trabalhos sobre Ingmar Bergman, com o foco na temática religiosa. Alguns estão disponíveis na internet. O texto publicado em teologia Brasileira é uma breve síntese dos artigos que publiquei sobre o grande cineasta sueco. Não tenho Facebook, mas você pode entrar em contato através do e-mail: edilsonbarreira@yahoo.com.br

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