Conhecendo as Antigas Doutrinas da Graça: um recado para jovens e velhos

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Introdução

Há um renovado interesse nas Antigas Doutrinas da Graça. Contudo, essa redescoberta nem sempre é acompanhada de uma compreensão profunda do que significa, de fato, ser “reformado”. Ao longo desses anos, tenho observado debates estéreis sobre os solas da Reforma, sobre os “cinco pontos do calvinismo”, ou algum pequeno e obscuro ponto doutrinário. No entanto, os “debatedores” não mantêm uma relação saudável com a igreja. Não são membros de igrejas locais, onde podem servir com seus dons e talentos para o crescimento do reino.

Como nos alerta Joel Beeke e Mark Jones, muitos pastores, obreiros cristãos e jovens piedosos ao redor do mundo estão buscando viver uma fé bíblica e reformada de maneira que glorifique a Deus e edifique a sociedade. Contudo, há também aqueles que abraçam apenas parte da teologia reformada, afirmando a soteriologia calvinista, mas mantendo um estilo de vida que não reflete a santidade e a piedade exigidas pelas Escrituras. Essa desconexão entre doutrina e prática é evidenciada em formas de adoração e entretenimento que entram em conflito com a lei moral de Deus. É crucial advertir que a verdadeira salvação pela graça deve ser acompanhada de uma vida piedosa e uma busca contínua pela santidade, sem cair no legalismo, enquanto as Doutrinas da Graça, corretamente entendidas, se opõem à indiferença moral e ao mundanismo (BEEKE; JONES, 2016: 1191-1192).

Um pouco da minha caminhada

Abracei as Doutrinas da Graça em 1991. Desde então, tive a oportunidade de acompanhar de perto a publicação de vários livros, a fundação e revitalização de igrejas, a realização de inúmeras conferências e o início do ministério de pregadores que hoje são amplamente reconhecidos. Essas experiências não apenas solidificaram minha fé, mas também me permitiram observar o impacto profundo dessas doutrinas na vida cristã.

No final dos anos 90 e início dos anos 2000, com a chegada da internet, tive a oportunidade de acessar uma vasta gama de materiais e recursos que antes só conhecia por meio de citações e referências dispersas em livros e artigos impressos. Nesse período, participei da famosa Lista dos Cristãos Reformados, que contava com membros como Franklin Ferreira, Felipe Sabino, Solano Portela, Juan de Paula, Vinicius Musselman Pimentel, Guilherme Carvalho e Fernando de Almeida, entre outros que hoje são bastante conhecidos.

Também acompanhei algumas controvérsias significativas, como a demissão dos professores do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper e a mudança editorial da revista Fides Reformata, que na época apelidamos de “Fides Liberata” devido à sua guinada para uma perspectiva mais liberal. Também testemunhei outra controvérsia envolvendo a Convenção Batista Fluminense, que recebeu, em 01 de abril de 2005, uma resposta formal intitulada Et Illuminatio Fides, criticando o posicionamento da convenção às “doutrinas ou convicções calvinistas” da Primeira Igreja Batista em Volta Redonda. Além disso, acompanhei a criação da Comunhão Reformada Batista do Brasil, um marco importante para o movimento reformado no país, especialmente entre segmentos de pastores batistas da Convenção Batista Brasileira que, nesse contexto de transformação, não reconheceram o direito das igrejas de adotarem posições calvinistas.

O Rev. Juan de Paula Siqueira, aqui na Revista Teologia Brasileira, também analisou crescimento da teologia reformada no Brasil (SIQUEIRA, 2018). Recomendo a leitura.

 Caminhos confusos

Ao longo dos anos, observo um padrão recorrente entre os novos adeptos das doutrinas reformadas. Ao adquirir um conhecimento superficial através das redes sociais, rapidamente se consideram guardiães da Reta Doutrina. Assumem o papel de críticos inflexíveis, formando uma espécie de “Supremo Tribunal Confessional” onde julgam e condenam aqueles que, em sua opinião, se desviam das interpretações corretas. Essa transição para a teologia reformada, muitas vezes, ocorre de maneira reativa, resultando em uma vitalidade potencial, mas que corre o risco de ser sufocada pela imaturidade e falta de orientação pastoral adequada. Por isso, precisamos de sabedoria. Lloyd-Jones, nas Conferências Puritanas ocorridas na Capela Westminster, afirmou: “E enquanto o coração de um homem estiver certo, embora sua cabeça esteja errada, sejamos pacientes com ele, procuremos ajudá-lo. Não passemos o tempo apenas provando que estamos certos e que todos os outros estão errados” (LOYD-JONES, 1993, 54).

Simultaneamente, é desolador constatar que muitos veteranos na fé, outrora firmes em suas convicções, têm abandonado essas crenças em busca de sucesso e pragmatismo. Eles criticam a postura agressiva dos novos reformados, muitas vezes ressentidos pelo sucesso desses jovens em mobilizar pessoas e fazer crescer suas igrejas. Esse ressentimento levou alguns a desviarem-se para o misticismo e soluções mais populares, abandonando as convicções reformadas em favor de caminhos mais fáceis. O fenômeno é uma triste ironia: enquanto os jovens imaturos correm o risco de sufocar a verdadeira reforma com sua rigidez, os mais velhos se afastam dela em busca de estratégias mais fáceis, mas espiritualmente vazias. Por isso, é importante nos atentarmos ao alerta de Carl Trueman, “não é simplesmente salvar a Reforma de seus difamadores; ela necessita ser salva de alguns de seus amigos” (TRUEMAN, 2013, 16).

Acredito firmemente que o que precisamos é de um equilíbrio saudável. Precisamos de jovens ponderados e de velhos radicais. Para os jovens, o remédio é o mesmo desde sempre: Maturidade: Jovens, envelheçam. Permitam que suas certezas, radicalismos e arrogâncias sejam suavizados e refinados pelo tempo e pela experiência. A maturidade espiritual não pode ser apressada, mas é cultivada através da paciência, do estudo diligente e da vida em comunidade. Quanto aos veteranos, é crucial que firmem seus passos e não abandonem suas convicções. Velhos, permaneçam fiéis. Não se deixem levar pelo desânimo ou pela inveja. Em vez disso, tomem a iniciativa de orientar e apoiar os mais jovens. A igreja necessita da sabedoria acumulada ao longo dos anos, e é responsabilidade dos mais velhos passá-la adiante com graça e humildade.

O caminho proposto

Existem momentos na história em que as circunstâncias e desafios demandam dos seguidores de Cristo uma postura ainda mais firme e resoluta. Creio firmemente que estamos vivendo exatamente um desses momentos. Hoje, mais do que nunca, a igreja é chamada a ser uma testemunha fiel em meio a uma cultura que questiona a verdade absoluta, rejeita a autoridade das Escrituras e celebra valores que estão em total desacordo com os ensinamentos de Cristo. Essa não é uma era para concessões; é um tempo que exige coragem espiritual, clareza doutrinária e uma convicção inabalável naquilo que cremos. Assim como os cristãos do passado enfrentaram desafios que exigiram deles uma postura firme — seja diante da perseguição, da heresia ou da pressão cultural — nós, hoje, somos chamados a fazer o mesmo.

O caminho proposto é sempre o mesmo. Sustentar a verdade e defendê-la com amor. Não se trata apenas de uma tarefa intelectual. Nas palavras de R. Albert Mohler Jr. “crentes confessionais amam a verdade e refutam o erro, não com espírito soberbo e vingativo, mas num espírito de humildade e fidelidade” (BOICE; SASSE, 2021. 16). A fé reformada não pode ser vivida em isolamento, nem pode ser reduzida a meras discussões teológicas. Ela deve ser nutrida e aplicada no contexto da igreja local, onde a doutrina encontra sua expressão na prática da vida cristã, na adoração corporativa, no serviço abnegado, e na missão evangelística.

Além disso, a fé reformada exige uma convicção profunda na inspiração, infalibilidade, inerrância e suficiência da Palavra de Deus. São fundamentos que devem moldar cada aspecto da vida cristã. Francis Schaeffer, refletindo sobre a condição da igreja no final dos anos 1970, levantou uma advertência que permanece incrivelmente relevante para os dias de hoje. Ele afirmou: “A negligência dos evangélicos em assumir uma posição nitidamente bíblica acerca das questões críticas da nossa época deve ser considerada uma negligência em viver sob a autoridade plena da Palavra de Deus em todos os aspectos da vida” (SCHAEFFER, 2010, 346). Schaeffer via claramente que quando a igreja se afasta do compromisso com a autoridade das Escrituras, ela corre o risco de perder seu impacto e testemunho em uma cultura cada vez mais secularizada.

Portanto, ao buscarmos resgatar as antigas Doutrinas da Graça, devemos fazê-lo com sabedoria e discernimento. O mundo evangélico de hoje está em risco de perder sua fidelidade bíblica, sua bússola moral e seu zelo missionário, características que outrora foram os pilares da fé reformada. Devemos reconhecer e nos arrepender do mundanismo que tem se infiltrado em nossas vidas e igrejas, desviando-nos da verdadeira essência do evangelho. Temos sido influenciados por “evangelhos” propagados por nossa cultura secular, que, na realidade, não são evangelhos. É vital que voltemos às raízes da fé reformada, reafirmando nosso compromisso com a Palavra de Deus, a santidade de vida e a missão de proclamar o verdadeiro evangelho ao mundo.

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Referências bibliográficas

Beeke, J. R.; Jones, M. Teologia puritana: doutrina para vida (São Paulo: Vida Nova, 2016).

Boice, J. M.; Sasse, B. Reforma hoje (São Paulo: Cultura Cristã, 2021)

Loyd-Jones, D. M. Os puritanos: suas origens e seus sucessores (São Paulo: PES, 1993).

Schaeffer, F. A. A igreja no século 21 (São Paulo: Cultura Cristã, 2010).

Siqueira, J. de P. Tupiniquins para a glória de Deus: a redescoberta e o crescimento da fé Reformada no Brasil. Teologia Brasileira, [s. l.], n. 53, 2018. Disponível em: https://teologiabrasileira.com.br/tupiniquins-para-a-gloria-de-deus-a-redescoberta-e-o-crescimento-da-fe-reformada-no-brasil/.

Trueman, C. R. Reforma: ontem, hoje e amanhã (Recife: Os Puritanos/Clire, 2013).

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