Este é um lado da questão, o outro é o da extensão da liberdade humana. A liberdade deve ser responsável. Afinal, segundo a teologia bíblica, fomos criados como seres responsáveis (Gn 2.16,17), então precisamos assumir responsabilidade pela nossa herança genética. Neste sentido Haering (1977, p. 187, 188) afirma que “conscientizar e educar para uma aproximação ética da responsabilidade participada pressupõe, além do pleno conhecimento de nossa liberdade, o conhecimento fundamental do interfuncionamento entre o gene e herança cultural, ou, por outros termos, entre nossa constituição genética e o poder constituinte do ambiente, na organização da descoberta das possibilidades e da responsabilidade correspondente de constituir nosso ambiente.”
Seria plenamente desejável que, antes do matrimônio, os jovens soubessem quais os riscos genéticos envolvidos na associação matrimonial. Se houver riscos conhecidos e o casal, mesmo assim, desejar se unir, uma alternativa sensata seria evitar filhos, buscando-os através da adoção. Quando for possível científica e economicamente, seria desejável e prudente o teste genético pré-matrimonial. Do ponto de vista da liberdade não é possível aceitar a adoção de medidas proibidoras de uma união. A opção é para uma ação conscientizada e responsável.
Além disso, como controlar o que acontece nos laboratórios ultra-especializados de genética? O que fazer com os aprendizes nos laboratórios? Será que eles iniciarão algum experimento sem saber como controlá-lo? Será que estão sendo criados micróbios, vírus que não poderão ser vencidos por medicamentos conhecidos? Só o futuro poderá dizer. O que será que nos espera?
Outras questões existem e existirão a respeito do assunto, inclusive teológicas e filosóficas, tais como:
– o ser clonado terá uma identidade pessoal e será consciente dessa sua identidade?
– como será a constituição afetiva, psicológica e mental de um clone?
– um clone terá direito? ou será propriedade de alguém?
– se algum ser humano for clonado, poderá ser considerado um ser humano completo? Um ser desse tipo terá também vida espiritual?
– um clone será um ser ético e responsável?
– enfim, um clone poderá pecar? ao ser criado já terá natureza pecaminosa, segundo a Teologia?
Estas últimas questões são tão complexas que talvez somente consigam ser respondidas se e quando ocorrer a clonagem humana. A especulação sobre se um ser humano clonado terá ou não vida espiritual também depende de nossa posição sobre a origem da alma ou vida espiritual. Há quem acredite que a alma de uma pessoa já existe desde a criação do mundo, antes mesmo dela nascer. É a posição pré-existencialista (Platão). Mas também outros acreditam que cada alma é criada por Deus para cada pessoa ex nihilo , isto é, Deus cria uma alma para cada corpo que é gerado. Os que assim acreditam são chamados de criacionistas (Jerônimo, Pelágio, Calvino). Há também os que acreditam que a alma é originada por propagação natural e que esta transmissão é um processo orgânico de modo que adquirimos nossa alma ao mesmo tempo, e da mesma maneira, como adquirimos nossos corpos. 4 É a posição traducianista 5 (Tertuliano, Lutero). Se você é pré-existencialista, talvez não acreditará que o ser clonado possa ter vida espiritual. Para os criacionistas e para os traducianistas poderá haver a possibilidade do ser clonado ter uma vida espiritual.
Como o leitor pode observar, as alternativas para a discussão do assunto são vastas, basta conhecimento e criatividade. Muitas respostas somente poderão ser encontradas no futuro. Por enquanto é preciso acompanhar o desenvolvimento do assunto e exigir cautela responsável dos cientistas.
Se considerarmos a concepção bíblico-teológica de que o nosso corpo é o templo do Espírito Santo (1 Coríntios 6.19,20), precisamos cuidar dele bem, procurando descobrir as suas anomalias e buscar a sua cura. O labor em melhorar a natureza humana é, em princípio, legítimo se for responsável. Mas não nos esqueçamos de que a sociedade sofre muito mais por causa de suas anomalias morais e espirituais do que por causa das enfermidades genéticas. Desta forma, de nada adianta melhorar a nossa herança genética sem melhorias ambientais, sociais, econômicas e espirituais da sociedade.
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Notas
3 É preferível esta expressão em vez de “controle da natalidade.”
4 Embora o Generacionismo reivindica que a alma também se origina por propagação natural, é distinta do Traducianismo, pois defende que esta transmissão é um processo espiritual e que adquirimos nossa alma ao mesmo tempo, mas NÃO da mesma maneira, como adquirimos nossos corpos.
5 Traducianismo talvez venha de uma referência feita por Pelágio através do latim Traduciani (d e tradux , broto de uma planta).