Brincando de Deus – Parte 1

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1882
Um ensaio sobre questões éticas e teológicas da engenharia genética e da clonagem

O avanço das pesquisas e descobertas no campo da engenharia genética e da clonagem de seres chegou a um nível de sofisticação admirável. Ainda que seja interessante o brilho da tecnologia, os seus avanços também trazem complexas alterações nas decisões humanas. Se o ser humano for clonado, seria ele eticamente responsável, por exemplo? Este ensaio 1 descreve, de forma resumida, questões éticas e teológicas sobre a engenharia genética e a clonagem de seres humanos a partir do texto bíblico.

Há pouco tempo, o mundo ficou agitado com a notícia da possibilidade da clonagem de um ser humano pelo médico italiano Severino Antinori, ao mesmo tempo preocupado com a morte prematura da ovelha Dolly, o primeiro animal clonado a partir de uma célula adulta. Os recentes avanços da ciência chamada Engenharia Genética não apenas trazem inúmeros benefícios às pessoas, mas também preocupações de natureza ética, na mesma proporção. O manuseio laboratorial chega a tanta sofisticação que o cientista genético começa a parecer um pequeno deus brincando com as suas descobertas e associações, especialmente agora com a busca decisiva pela clonagem humana, isto é, a construção do homem num laboratório.

Em geral, pensamos que a Engenharia Genética é uma ciência moderna. Contudo ela parece existir desde a criação do mundo. “O Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre o homem, e este adormeceu; tomou, então, uma de suas costelas, e fechou a carne em seu lugar. Então da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou a mulher” (Gênesis 2.21).

Deus fez Adão dormir e lhe tirou uma costela, transformando-a em Eva. O texto bíblico menciona uma experiência genética de magna grandeza e esperada pelos geneticistas: a construção de um ser humano a partir de células de outro. Isso ocorrera quando da formação da mulher a partir do homem. No ato divino temos a clonagem humana, o clímax da Engenharia Genética que os cientistas almejam e ainda não conseguiram conquistar. Até o momento temos notícias da clonagem de vegetais e de seres biologicamente menos complexos que o humano.

Como vimos, o manuseio genético teve até direito a anestesia, com o sono pesado aplicado por Deus a Adão. Assim, de um material biológico de Adão – a sua costela ( tsela , no hebraico) – Deus fez uma espécie de clonagem surgindo Eva, um ser diferente de Adão, mas essencialmente humano. Ainda que a clonagem seja considerada a reprodução de um ser idêntico, na realidade, nesse processo genético Deus promoveu muito mais, pois além da reprodução de um outro ser humano, alterou as características genéticas originais e clonou um outro ser essencialmente igual, mas com diferenças fundamentais. Poderemos até olhar o texto bíblico com certo grau de dúvida e ceticismo quando desejamos nele buscar algum referencial teológico para compreender as implicações éticas da Engenharia Genética e da clonagem de seres humanos, mas a narrativa bíblica demonstra uma forma de manipulação genética.

Na Engenharia Genética não se almeja apenas a clonagem. Há esforços para a descoberta e a aplicação de terapias genéticas que se destinam a curar doenças de causa genética e aperfeiçoar características da raça humana. O mais propagado projeto atual da Engenharia Genética é chamado Projeto do Genoma Humano, aprovado em 1988 nos Estados Unidos, com o valor de US$ 3 bilhões e duração de 15 anos, que visa mapear todo o código genético humano.

Os avanços recentes da Engenharia Genética têm o seu início nos resultados do trabalho do monge austríaco de origem checa Gregor Mendel (1822-1884) que realizou pesquisas com ervilhas de sua horta na segunda metade do século 19 e publicou em 1865 o livro Experiências sobre híbridos das plantas . As suas descobertas só foram reconhecidas no início do século 20, e se tornaram leis gerais da hereditariedade. As descobertas de Mendel correspondem à pré-história da Engenharia Genética contemporânea.

O período corrente da Engenharia Genética se identifica com a descoberta da estrutura molecular do DNA  (ácido desoxirribonucléico), onde reside a nossa herança genética, com a identificação dos genes humanos e como são transmitidos. Os primeiros pesquisadores que marcaram esse período foram James Watson e Francis Crick, em 1953, época em que publicaram na revista britânica Nature um artigo mostrando a estrutura do DNA em forma de dupla hélice, semelhante a uma escada espiral, utilizada até hoje nos livros e artigos sobre o assunto. Naquele artigo os dois já anteviam a revolução que isso provocaria. Esses dados lançaram luzes sobre a compreensão de como era possível haver a duplicação e modificação do DNA – nada menos do que a forma como a vida se reproduz.

Em 1959 um gene foi isolado pela primeira vez. Em 1970 o pesquisador indiano Gobind Khorana sintetizou um gene que foi copiado de uma bactéria que vive normalmente no intestino humano, a Escherichia coli . Em 1988 nasceu a primeira criatura transgênica, o “camundongo de Harvard”. As pesquisas foram prosseguindo e acumulando conquistas, tais como a da ovelha Dolly, fabricada a partir de uma célula adulta.

Cada ser humano é formado por uma grande quantidade de células. Dentro de cada uma delas há 46 cromossomos ou blocos de informação. Cada cromossomo é formado por uma molécula longuíssima que contém de 5 mil a 10 mil genes, que são a unidade de informação genética da pessoa. As informações contidas nos genes formam como que uma biblioteca de dados que determinam as características de um indivíduo, como o seu tipo sangüíneo, cor dos olhos e dos cabelos etc.

Descobriu-se que o DNA é a mesma substância tanto no ser humano quanto noutro ser vivo, como num micróbio. Desta forma, é possível utilizar as próprias bactérias como que fábricas de pedaços de DNA modificados e combinados com DNA humano ou de outros seres vivos. É como se tivéssemos uma fita de papel contendo um programa fonte para computadores. Em seguida essa fita seria cortada em determinadas partes e receberia, nesses cortes, emendas de outra fita, introduzindo outros comandos que originalmente não possuía. Quando introduzidos em bactérias, os genes modificados se reproduzem em abundância. Essa técnica é o que muitos chamam Engenharia Genética. A técnica de recombinar genes foi patenteada em 1973. O resultado dessa técnica tem sido também chamado Biotecnologia.

Reprogramação

Atualmente a manipulação genética é uma tarefa corriqueira nos laboratórios. A Biotecnologia já fabrica insulina artificial para uso humano, ratos com sua estrutura molecular alterados para adquirir câncer, facilitando seu estudo em laboratório, porcos, vacas, ovelhas, peixes. Em alguns casos os animais estão sendo modificados para produzir mais carne ou leite e ser mais resistentes a doenças. Em outros, foi possível inserir genes humanos para que os animais crescessem rapidamente.

O articulista Ulisses Capozoli afirma que “o temor dos ecologistas, filósofos, religiosos, entre outros, é que essa reprogramação se estenda ao homem, produzindo criaturas seriadas e especializadas, como previu Aldous Huxley em seu livro Admirável mundo novo . Em tese, esse projeto é possível, diz o geneticista Jorge Kalil, do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração em São Paulo e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 2

Aliada à Engenharia Genética temos a Eugenia, cujas bases foram lançadas pelo naturalista inglês Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin. A Eugenia trabalha com a possibilidade de se melhorar a espécie humana pelo emprego da seleção genética. Adolf Hitler desejou criar uma raça perfeita, e a História tem cruéis registros desta época. Ainda hoje há grupos que defendem a idéia de impedir a sobrevida de pessoas portadoras de distúrbios genéticos para que não comprometam o desenvolvimento da espécie, deixando de consumir recursos, quer sejam governamentais, quer sejam privados, para a sua subsistência.

As possibilidades e alternativas são variadas e infinitas. Por exemplo, já se pensa na possibilidade de promover a reprogramação humana a ponto de se retardar a velhice. Uma conquista nessa alternativa aparece num artigo publicado na revista científica Science descrevendo uma investigação que envolveu moscas. Spinsanti (1990, p. 50) afirma que “dominar a chave do mecanismo pelo qual são transmitidos os caracteres hereditários significa poder desmontar a cadeia do DNA e guiar sua reconstrução à vontade”.

Bibliografia:

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TEIXEIRA, Mônica.  (2000)  O projeto Genoma Humano .  São Paulo: Folha de São Paulo.

Notas

1 Artigo publicado em Último andar – Caderno de pesquisas em Ciências da Religião do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), (8), 2003, ISSN 14-15-899X.

2 “Não brincamos de Deus, queremos dominá-lo”, 13 de junho de 1993, O Estado de São Paulo , caderno especial, p. 6.

3 É preferível esta expressão em vez de “controle da natalidade.”

4 Embora o Generacionismo reivindica que a alma também se origina por propagação natural, é distinta do Traducianismo, pois defende que esta transmissão é um processo espiritual e que adquirimos nossa alma ao mesmo tempo, mas NÃO da mesma maneira, como adquirimos nossos corpos.

5 Traducianismo talvez venha de uma referência feita por Pelágio através do latim Traduciani (d e tradux , broto de uma planta).

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