Não é todo dia que se ouve acadêmicos de alto calibre elogiarem algo. No entanto, também não é todo dia que nos deparamos com uma obra de 1.000 páginas de profundidade ímpar.
No livro Teologia Puritana: Doutrina para a Vida (veja aqui os endossos efusivos), Joel Beeke e Mark Jones oferecem um presente substancial à igreja. Sendo “uma visão panorâmica, tanto histórica quanto sistemática, do pensamento puritano”, esta obra inovadora cobre 50 áreas da doutrina, destaca o trabalho de inúmeros teólogos e conclui com oito capítulos explorando a teologia puritana na prática. Afinal, como escrevem os autores, “a característica distintiva do puritanismo foi sua busca de uma vida reformada pela Palavra de Deus”.
Considerando que nenhum trabalho anterior teceu os fios do ensino puritano em uma tapeçaria unificada de teologia sistemática, o livro Teologia Puritana é uma conquista verdadeiramente notável.
Eu conversei com Joel Beeke, presidente do Puritan Reformed Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan, e com Mark Jones, pastor da Faith Presbyterian Church, em Vancouver, sobre os pontos em que os puritanos são mais úteis e menos úteis, pontos em que devemos ser mais modestos do que eles, se são bons modelos de pregação e assim por diante.
Em quais pontos os puritanos são mais úteis à igreja contemporânea?
O puritanismo dizia respeito essencialmente à igreja. Todos os seus esforços, seja na escrita, na pregação ou no ensino, tinham como alvo reformar a Igreja da Inglaterra de uma maneira mais consistente com a Palavra de Deus e com os princípios Reformados da adoração e da piedade.
Eis algumas áreas em que os puritanos são úteis à igreja contemporânea:
1. A Glória de Deus. Os puritanos tinham uma robusta doutrina de Deus. Muitos dos problemas na igreja de hoje resultam da perda de visão de quem Deus é. Tanto seus escritos como suas orações evidenciam uma visão de Deus que traz à mente sua majestade.
2. A Centralidade do Mediador. Os puritanos constantemente apontavam Cristo não apenas como exemplo ou como mestre, mas como sacerdote e rei. Hoje a pregação antropocêntrica é muito popular. Até mesmo a pregação expositiva pode se extraviar se ela perder Cristo de vista como centro de toda verdade bíblica e da experiência cristã.
3. A Malignidade do Pecado. Os puritanos refletiram profundamente no testemunho bíblico sobre o horror da rebelião contra um Deus amoroso e justo. Na igreja contemporânea, o pecado é tratado de maneira branda. Precisamos ouvir o chamado puritano para nos humilharmos e nos arrependermos de nossos pecados.
4. A Obediência da Adoração. Os puritanos compreenderam que a adoração é sempre um eco da Palavra criada no coração pelo Espírito. A igreja contemporânea tem ido perigosamente longe no território da adoração baseado na vontade e ideias humanas.
5. A Necessidade de Sacrifício Pessoal. Muitos puritanos fizeram grandes sacrifícios para que pudessem adorar respeitando sua consciência. Thomas Goodwin, por exemplo, desistiu da fama – ele estava ascendendo rapidamente em círculos teológicos – e se mudou para a Holanda, onde ministrou com outros puritanos em Arnhem.
Em quais pontos os puritanos são menos úteis à igreja contemporânea?
1. Escatologia. Na área da escatologia, os puritanos, em particular os milenistas, parecem ter compreendido as coisas de maneira muito errada. Sua interpretação historicista do livro de Apocalipse se mostrou incorreta, ao menos em termos calendários específicos.
2. Apologética. Os puritanos não contribuem muito com questões específicas na apologética contemporânea. Certas preocupações que surgem de maneira proeminente nos debates de hoje não eram questões controvertidas na época dos puritanos. Deste modo, eles não se manifestaram muito a respeito delas. A igreja não enfrentava os desafios do marxismo, do darwinismo ateísta e do feminismo liberal, para citar alguns exemplos. Contudo, mesmo em tais áreas, as exposições de temas bíblicos frequentemente possuem relevância.
3. Liberdade Política e Igualdade. Os conceitos de liberdade e igualdade que agora são estimados por nós no mundo ocidental, ainda não haviam sido amadurecidos durante o período puritano. Os poderes civis haviam estabelecido a igreja por mais de mil anos. A liberdade plena de consciência ainda não havia sido testada e o desestabelecimento da religião parecia temerário no contexto de heresias e seitas que se multiplicavam. A sensibilidade ao racismo e ao sexismo simplesmente não existia em qualquer forma desenvolvida na mentalidade britânica e europeia como existe hoje. Entretanto, defenderíamos que as sementes da verdade que floresceriam e dariam frutos nas liberdades contemporâneas são encontradas na teologia puritana.
Precisamos ler os puritanos tendo em conta que, embora a Reforma tivesse transformado muito o pensamento deles pelas Escrituras, eles eram, de algumas maneiras, mais como os cristãos medievais em seu ponto de vista cultural do que cristãos modernos. No entanto, eles são úteis mesmo nesta questão, uma vez que nos capacitam a sair de nossa caixa cultural moderna.
Os puritanos eram conhecidos como pessoas recatadas. Quais questões não foram enfatizadas pelos puritanos e que os evangélicos modernos parecem ter uma postura mais recatada em relação a elas?
Ironicamente, os puritanos são conhecidos por serem sexualmente recatados, mas eles eram bem saudáveis, e até entusiastas, do amor sexual. Livros como Domestical Duties, de William Gouge demonstram uma visão muito saudável do sexo entre marido e mulher. Antes da Reforma, a Inglaterra foi impregnada de visões medievais do sexo como sendo um mal necessário. O retorno dos reformadores à Bíblia moveu os puritanos a verem o sexo e a amizade romântica como coisas importantes, como deveres prazerosos, e não apenas como um meio de procriação. Eles não isolaram o sexo do relacionamento compromissado da forma como muitos fazem hoje nem fizeram do sexo um tipo de experiência fundamental. Porém, os puritanos ensinaram homens e mulheres sobre o caráter bom do decreto divino de se desfrutar um do outro sexualmente no casamento. Eles também celebraram as bênçãos do alimento, da bebida e do desfrute das belezas da natureza como presentes de Deus.
Os puritanos são comumente acusados de usarem versículos bíblicos isoladamente, sem considerarem o contexto (em inglês, proof-texting). Eles são um bom modelo para a pregação expositiva?
Quando William Perkins escreveu seu manual sobre pregação (The Art of Prophesying), ele incluiu instruções sobre a exegese cuidadosa do texto baseada na gramática e fatores contextuais. Os puritanos preocupavam-se em interpretar e aplicar as Escrituras corretamente. Entretanto, o pregador puritano frequentemente iniciava com um texto em particular, extraía uma doutrina e então passava a maior parte de seu tempo desenvolvendo-a a partir de várias passagens bíblicas e oferecendo diversas aplicações. Assim, sua pregação tinha a tendência de ser mais doutrinária e aplicativa do que expositiva. Todavia, tudo depende de quem você lê. Duvidamos muito que alguém seria levado a pensar que eles extraíam textos fora de seu contexto se lesse cuidadosamente os sermões de Thomas Manton, por exemplo.
A acusação de uso de versículos bíblicos de maneira isolada (proof-texting, ou “textos-prova”) surge tipicamente como resultado do uso de Scripture proofs encontrados nos documentos de Westminster (WCF, WLC, WSC). Os puritanos, porém, resistiram ao uso de textos-prova precisamente porque acreditavam que suas respostas eram baseadas em todo conselho de Deus. Contudo, o parlamento tinha seus métodos e os textos acabaram sendo inseridos. Naturalmente, deve-se ler também as Anotações Inglesas (editada pela primeira vez em 1645) junto com os documentos de Westminster. As Anotações são compostas de 2.400 páginas de exegese de toda a Bíblia. Uma análise superficial em documentos como esses revelam que os puritanos continuavam em uma tradição exegética desenvolvida na Reforma. Qualquer crítica de que os puritanos dependiam de textos-prova será necessariamente uma crítica da Reforma e da teologia reformada da pós-reforma.
Além disso, uma leitura cuidadosa de textos puritanos mostra que eles eram teólogos altamente sofisticados. Como protestantes escolásticos, eram treinados em muitos idiomas. Além do inglês, eles quase invariavelmente liam latim. O uso de textos-prova (proof-texting) tende a ignorar o contexto de um versículo. Entretanto, como disse Goodwin, “o contexto é a metade da interpretação”. Eles tipicamente interagiam não apenas com o grego e as Escrituras hebraicas, mas também com os targuns aramaicos (“paráfrases Chaldee”) e muitos outros idiomas (como o cóptico, por exemplo).
Charles Spurgeon talvez seja um exemplo melhor de uso de textos-prova que deu errado, não obstante sua genialidade óbvia!
De que forma devíamos pensar a respeito do fato de que os puritanos eram, em geral, teologicamente meticulosos e donos de escravos devotadamente vibrantes?
Um de nós escreveu sobre este assunto. Apenas reforçamos e acrescentamos, a partir disto, que há várias questões que devem ser respondidas em relação a esta questão específica. Devemos receber com bons olhos a ideia de que não devemos colocar nossos heróis espirituais em pedestais. No entanto, o ponto histórico é menos sustentável do que algumas pessoas pensam. Após analisar o trabalho dos melhores historiadores sobre puritanos de ambos os lados do Atlântico, parece não haver registro de um puritano inglês que tenha sido proprietário de algum escravo. Richard Baxter, por exemplo, viu a diferença entre escravidão devido à dívida ou conquista (independentemente de raça) e escravidão da maneira como pensamos hoje. Não que quaisquer dos exemplos anteriores sejam louváveis. No entanto, Baxter denunciou categoricamente o comércio de escravos e ele era um puritano, diferentemente de alguns dos nomes que são citados como evidência de que os puritanos eram donos de escravos.
Condenar os puritanos como donos de escravos, então, é uma atitude amplamente anacronista historicamente falando (embora, é claro, existam exceções). Infelizmente, muitos calvinistas que vieram depois manipularam a Bíblia para validar e promover a escravidão, mas eles não eram puritanos. É no calvinismo pós-reforma, principalmente, que encontramos donos de escravos e abolicionistas.
É também importante notar que, diferentemente da sugestão popular, Jonathan Edwards não era tecnicamente um puritano (mesmo que ele fosse profundamente receptivo à teologia deles e, por isso, algumas vezes incluído em tal categoria). Há debates sobre quando o puritanismo acabou, com alguns argumentando ter sido em 1662 com o Ato de Conformidade e a Grande Ejeção. Poucos, porém, negam que a transição do Puritanismo para a Divisão ocorre tipicamente por volta de 1689 com o Ato de Tolerância. Após 1689, normalmente falamos da Não-conformidade Protestante. Jonathan Edwards sequer havia nascido ainda na época.
Estes pontos são importantes, pois há uma diferença considerável entre puritanos como John Owen e teólogos reformados neo-ingleses do século 18 como Edwards. Devemos notar que a ascensão do puritanismo começou em algum momento por volta dos anos 1570. Em outras palavras, deslocar-se para o século 18 na Nova Inglaterra e ainda usar o termo “puritano” é altamente problemático. Deste modo, sugerir que muitos puritanos eram donos de escravos compromete gerações de homens que nada tinham a ver com a escravidão.
Quais obras puritanas mais lhes influenciaram e por quê?
Mark Jones: Três obras me influenciaram muito. Em primeiro lugar, o volume 4 das obras de Thomas Goodwin, que inclui “The Heart of Christ in Heaven Towards Sinners on Earth” (veja a reimpressão), influenciou enormemente como entendi a pessoa de Cristo. Em segundo lugar, a obra de John Owen sobre o Espírito Santo (volume 3 de suas obras) discute o papel do Espírito em relação a Cristo. Esta é a obra mais brilhante sobre Cristologia que já li. O que Goodwin fez pelo meu coração, Owen fez pela minha mente! Por fim, a obra The Existence and Attributes of God, de Stephen Charnock, deu a mim um senso muito maior do ser essencial de Deus que qualquer outro livro que li sobre o assunto.
Joel Beeke: Eu cresci em uma família em que meu pai lia “O Peregrino”, de John Bunyan, todas as tardes de domingo. Na minha adolescência, literalmente fiz centenas de perguntas ao meu pai sobre o trabalho salvador do Espírito em relação a dezenas de personagens desse clássico. Quando eu tinha 17 anos de idade, bebi profundamente da obra Christ Our Mediator, de Thomas Goodwin. Aprendi mais sobre meu Salvador com este livro que qualquer outro que já li. O livro Spiritual Refining, de Anthony Burgess, principalmente a primeira parte referente à doutrina da segurança da salvação, tem ministrado à minha mente e alma recentemente. Atualmente estou trabalhando em uma versão popular da seção de seu livro sobre a segurança da fé.
Para aqueles que estão interessados em recorrer aos escritos puritanos, qual seria o melhor lugar para começar?
Alguns livros pequenos, práticos e agradáveis têm sido publicados em inglês contemporâneo na série “Puritan Treasures for Today”, tais como The Fading of the Flesh and Flourishing of Faith, de George Swinnock, Triumphing over Sinful Fear, de John Flavel, e Stop Loving the World , de William Greenhill.
Muitas outras obras estão disponíveis na série Puritan Paperback. Recomendaríamos especialmente o livro The Rare Jewel of Christian Contentment , de Jeremiah Burroughs.
Finalmente, se alguém deseja obter um “corpo de divindade”(termo que usavam para se referir à teologia sistemática), um bom lugar para começar seria o livro A Body of Divinity, de Thomas Watson.
Traduzido e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: Scholars Gush Over Inaugural Puritan Systematic Theology. The Gospel Coalition.
Que sejamos mais puritanos, verdadeiros santos. J encomendei o meu, quero me deliciar nessa obra magnifica que com certeza abrir minha mente e serei um verdadeiro servo(remador de 3ø classe) quero beber de balde