“Ó homem, ele te declarou o que é bom. Por acaso o Senhor exige de ti alguma coisa além disto: que pratiques a justiça, ames a misericórdia e andes em humildade com o teu Deus?” Miqueias 6.8
INTRODUÇÃO
Normalmente quando falamos sobre liturgia, nós discutimos coisas que na verdade não tocam o cerne da liturgia. Discute-se, por exemplo, sobre tipos de liturgia: mais tradicional ou mais ‘renovada’? Com cânticos ou hinos? Qual o tipo de vestuário adequado para uma liturgia? Penso que, com tais discussões, somente nadamos na superfície. Não chegamos ao foco da liturgia que agrada a Deus.
Creio que uma leitura nos profetas nos proporciona bons parâmetros de uma liturgia ou de um culto que agrada a Deus. Quando lemos textos como esse de Miqueias, bem como os de Amós, Oseias e Isaias, normalmente vêm-nos à mente uma noção de culto, qual seja, Deus abomina uma adoração desassociada de nossa vida e de nosso caráter. Veja, por exemplo, Amós 5.14,21-24. Alguém já disse que o problema do povo de Israel não era a falta de culto, mas a falta de moralidade. O povo cultuava, mas em seu cotidiano praticava a injustiça e oprimia os fracos. Mas, muito mais do que celebração, o que Deus espera é um estilo de vida condizente com a Palavra de Deus. Então somos instigados a viver uma vida íntegra; não adianta se prostrar diante de Deus, e viver uma vida corrupta; não adianta dizermos que amamos a Deus em nossos cânticos se o pecado reina em nossas vidas; não adianta batermos palma em nossos cânticos se nosso coração não pulsa pela presença de Deus todos os dias; também não adianta dizermos que temos a liturgia correta, que cantamos os hinos tradicionais com letras profundamente teológicas, se ao decorrer da semana não temos temor a Deus.
De fato, tal leitura dos profetas é interessante e instiga-nos a uma nova postura diante de Deus. Entretanto, parece-me que, com essa leitura, ainda não atingimos o foco dos profetas. Mas mediante esse texto de Miqueias podemos fazer um bom exercício de entendimento sobre qual era o culto que Deus realmente deseja.
Mas antes de analisarmos o texto de Miqueias, é preciso fazer outra observação introdutória. Por uma simples leitura do verso 8 de Mq 6, percebemos que há três declarações: ‘pratiques a justiça’, ‘ames a misericórdia’ e ‘andes humildemente com teu Deus’. Uma boa homilética requer que expliquemos as três sentenças em separado. Mas compartimentar o verso seria prejudicial à compreensão da mensagem do profeta.
Temos a mania de pensar nos valores do reino de Deus em compartimentos diferentes: amor é uma coisa, justiça é outra; andar com Deus é uma coisa, praticar a justiça é outra; liturgia é uma coisa, justiça social é outra. A meu ver, esse tipo de abordagem engessa nossa compreensão do que é realmente o culto que agrada a Deus.
A LITURGIA E A PRÁTICA DA JUSTIÇA
Vejamos o que o texto diz: “que pratiques a justiça”. Aqui está o foco. Porque achamos que culto é uma coisa, e praticar a justiça é outra? O que tem haver liturgia com serviço ou com justiça social?
Atentemos para a definição do termo ‘liturgia’:
O vocábulo “Liturgia”, em grego, formado pelas raízes leit- (de “laós”, povo) e -urgía (trabalho, ofício) significa serviço ou trabalho público. Por extensão de sentido, passou a significar também, no mundo grego, o ofício religioso, na medida em que a religião no mundo antigo tinha um carácter eminentemente público (…) No princípio, a palavra não era utilizada para designar as celebrações dos cristãos, que entendiam que Cristo inaugurara um tempo inteiramente distinto do culto do templo. Mais tarde, o vocábulo foi adaptado, com um sentido cristão. (Wikipédia)
Aqui está o ponto importante. Originalmente liturgia era serviço. A noção de liturgia, entre os antigos gregos, se traduzia em trabalho público que beneficiava o povo de forma geral. Por exemplo, quando se fazia um mutirão para se abrir uma estrada ou para se fazer qualquer benefício público, dizia-se que uma ‘liturgia’ foi realizada.
Entretanto, ao decorrer do tempo, liturgia passou a significar celebração. ‘Atos litúrgicos’ foi reduzido à ordem seguida numa celebração cúltica.
Mas, na prática do serviço ao próximo estamos no cerne da liturgia. Voltamos assim à origem do termo ‘liturgia’. E a mensagem dos profetas alinha-se a essa ideia. Nos profetas (Miqueias, Amós, etc.), a prática da justiça é a própria liturgia. Mas o que significa isso, exatamente?
No Antigo Testamento, o “direito” (hebraico mixpat, “juízo”) são os suprimentos que a sociedade precisava prover aos pobres. Não era, pois, esmola. Aplicando aos nossos dias, o mixpat é o direito que os empobrecidos têm de receber da sociedade as coisas necessárias para sua existência: comida e terra. Assim, de acordo com Mq 6.8, andar humildemente com Deus implica num envolvimento em práticas sociais que possibilitem aos pobres o recebimento daquilo que lhes pertence por direito.
“O direito é o de obter da sociedade o apoio na necessidade e na crise, em meio aos parentes e à comunidade”, diz o Dr. Milton Schwantes. Este mesmo pesquisador pergunta sobre qual o significado do termo pobres, na Bíblia. Diz ele: “O termo pobre é usado no Antigo Testamento e na Bíblia de modo diferente do que nós o usamos. Nós damos aos pobres o sentido de carentes. A Bíblia o entende como quem tem o direito de reivindicar os direitos sociais garantidos. Na tradição bíblica, um pobre não pede (não é pedinte), mas exige sua parcela da sociedade.”
A PRÁTICA DA JUSTIÇA E A NOSSA ESPIRITUALIDADE
O que tem a ver, pois, nossa espiritualidade com a prática da justiça? O que tem a ver o amor com justiça social? O que tem a ver prática da justiça com nossa comunhão com Deus? Ora, tudo isso tem tudo a ver! Vejamos: “[…] Ele agiu com justiça e retidão, por isso as coisas iam bem para ele. Julgou a causa do necessitado e do pobre; e as coisas iam bem. Por acaso não é isso o que significa conhecer-me? […]” (Jr 22.15-16). Para este profeta, conhecer a Deus é praticar a justiça.
João, o ‘discípulo do amor’, afirma que a confissão de que Cristo “é justo” implica num modo de agir no mundo: “Se sabeis que ele é justo, sabeis que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele.” (1Jo 2.29). Assim, a prática da justiça é o sinal de nascimento em Deus.
Creio que com essas considerações em mente, podemos fazer uma nova leitura de Mateus 6.33. Sempre ouvi que buscar o ‘reino de Deus’ e a ‘sua justiça’ em primeiro lugar significa dar prioridade às atividades da Igreja. Mas veja que o texto não diz ‘Igreja’, mas sim ‘reino de Deus’ e ‘sua justiça’.
O Reino de Deus está onde as coisas são exatamente do jeito como Deus quer que sejam. O que é, então, buscar o reino de Deus e a sua justiça? É lutar para que o pobre tenha dignidade. Não é só contribuir para a reestruturação de um país vítima de um terremoto, como no caso do Haiti, mas é lutar para que os habitantes daquele país tenham vida digna, e, à semelhança dos profetas bíblicos, denunciar os órgãos públicos ou nações que viabilizam a pobreza daquele país. Buscar o reino de Deus e sua justiça é lutar para que as crianças de rua e em situação de risco tenham direito à vida plena. Isso, e muito mais, é buscar o reino de Deus e sua justiça!
Lembremos das palavras do Senhor: todas as obras que fazemos aos ‘pequeninos’, fazemo-las para o próprio Senhor (Mt 25.31-46)!
CONCLUSÃO
Qual é a liturgia que agrada a Deus? É aquela que ora: “venha o teu reino, faça a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). É aquela que pratica a religião verdadeira: visitar os órfãos e as viúvas (Tg 1.27). Liturgia é serviço ao próximo. A liturgia que Deus pede, diz Miqueias, é a prática da justiça social. Sem isso, é difícil dizer que andamos humildemente com Deus.