Vita Brevis ou Beata Vita? – parte II

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As fortes acusações de Flória contra precisamente tudo aquilo que Agostinho mais defendia e amava – a sua concepção de felicidade ( Vita beata ) e de Deus e de sua ética – certamente merecem uma análise mais profunda. O argumento central de Flória é que Agostinho trocou uma filosofia sadia, voltada para o prazer efêmero da “vida breve”, por uma concepção ascética, que despreza o corpo e os prazeres materiais. Flória fomentaria tais prazeres em Agostinho, o que o teria levado a repudiá-la.

Contra esta argumentação, além da própria obra de Agostinho sobre o casamento ( Dos Bens do Matrimônio ), podemos citar o seu tratado contra os maniqueus, em que ele rejeita qualquer dualismo como extremamente equivocado. Isso, principalmente no que diz respeito às relações maritais e entre o corpo e a alma:

Depois que vós disserdes isto com grande eloqüência e inflamação, eu perguntarei calmamente: Não sois vós que defendeis que a geração de filhos, que confina almas na carne, é um pecado maior que a coabitação? Não sois vós que costumáveis aconselhar que observássemos o máximo possível o período em que uma mulher, depois de sua purificação, tivesse maior possibilidade de conceber, e nos abstivéssemos de coabitar neste período de forma que o espírito não se prendesse na carne? Isto prova que vós aprovais a posse de uma esposa não para a procriação, mas para a gratificação da paixão. No casamento, conforme a lei do casamento declara, o homem e a mulher se juntam para a procriação de filhos. Portanto, quem quer que faça da procriação de filhos um pecado maior que a copulação, proíbe o casamento e faz da mulher não uma esposa, mas uma amante que em troca de alguns presentes se junta ao homem para gratificar sua paixão. Onde há uma esposa, deve haver um casamento. Mas não existe casamento onde não há maternidade à vista; portanto, tampouco existe uma esposa. Desta forma, vós proibis o casamento. E vós nem podeis vos defender com sucesso desta acusação, trazida profeticamente contra vós pelo Espírito Santo muito tempo atrás. ( Diatribe Anti-maniqueu , VI, 4, cap. 18). No próprio texto Vita Beata , ou Da Vida Feliz , escrito em um período de recolhimento e reflexão com os amigos mais chegados – inclusive, Mônica, sua mãe –, Agostinho começa descrevendo o excelente café da manhã que o grupo havia tomado, mas não se demora em levantar a questão central do dia: “Será que vocês estão conscientes de que o homem é composto por corpo e alma?” Observações e atitudes como essa certamente não seriam nada coerentes com uma pessoa destacada por seu ascetismo.

A filosofia básica que Flória seguia, inspirada no próprio Agostinho de antes da sua conversão pode ser resumida nisso: “A vida é tão curta, que não temos tempo para proferir nenhum julgamento condenatório sobre o amor. Precisamos primeiro viver, Aurel, depois podemos filosofar” ( Vita Brevis , pp. 177). Daí o título da obra. Agora que Agostinho mudou de visão, ela se queixa do “seu menosprezo por esta vida e sobre o grande bem que é a morte” (idem), sugerindo que grande parte dessas idéias lhe foram incutidas pela mãe.

Ela ainda cita a conversa que Agostinho confessa ter tido com a sua mãe, em que chegou “à conclusão de que o prazer dos sentidos do corpo, por maior que seja e por mais brilhante que seja essa luz temporal, não é digno de ser comparado à felicidade daquela vida, nem mesmo é digno de ser mencionado” ( Vita Brevis , 175). Contraditoriamente, Flória observa pouco antes que Agostinho confessava que havia uma briga, sim, dentro dele, mas não entre o corpo e a alma, mas entre a “carne e o espírito”, conceitos esses que Floria infelizmente parece não compreender bem. Nas Escrituras, particularmente na carta de Paulo aos Romanos, “carne” é o nome que se dá àquele princípio do mal que nos impede de usufruir o corpo como deveríamos, de modo que ele se torna um meio para uso, mais do que um fim em si mesmo.

Agostinho procura explicar a distinção entre os prazeres do corpo e os espirituais com a metáfora da saudade da pátria: ela só será plenamente satisfeita quando efetivamente chegarmos lá. Se queremos voltar à pátria, lá onde poderemos ser felizes, havemos de usar deste mundo, mas não fruirmos dele. Por meio das coisas criadas contemplemos as invisíveis de Deus (Romanos 1.20), isto é, por meio dos bens corporais e temporais, procuremos conseguir as realidades espirituais e eternas. ( Doutrina Cristã , pp. 54)

Ao contrário do que Floria procura nos fazer crer, Agostinho prezava tanto o corpo que advertiu aqueles que tentam fazer da negação do corpo uma ponte aérea para os céus, argumentando que a necessidade do corpo bem cuidado e alimentado é universal. Desprezá-lo seria agir contra a natureza criada por Deus. Até a carne pode servir ao bem em determinadas situações como quando os “olhos interiores” das pessoas não conseguem enxergar a sabedoria de Deus: Então, “ela dignou-se também aparecer aos olhos carnais” ( Doutrina Cristã , pp. 60). Aliás, a própria encarnação e redenção segue esse princípio paradoxal, pelo qual Deus se tornou ao mesmo tempo médico e remédio homeopático da humanidade através de Cristo.

Pouco depois dessas explanações, Agostinho pronuncia as célebres palavras: “Usamos mal da imortalidade e isso nos fez morrer. Cristo usou bem da mortalidade e isso nos faz viver” ( Doutrina Cristã , 62).

Coerentemente com as Escrituras, Agostinho então demonstra uma visão equilibrada em relação ao corpo, colocando-o no mesmo patamar que a alma: “Isso a fé nos ensina e devemos crer como certo: nem a alma nem o corpo do homem padecerão a destruição total” ( Doutrina Cristã , 66). Sua visão era tão mais “dialética” do que dualista, e influenciou pelo menos uma geração e um período da história: a Reforma, que, como se sabe, denunciou, entre outros, o abuso praticado pela Igreja Católica da época de mutilações do próprio corpo em sinal de penitência. Diz-se que a “conversão” de Lutero aconteceu precisamente em uma dessas práticas, quando ele se deu conta do absurdo que estava cometendo.

Os historiadores admitem que Agostinho se tornou mais pessimista somente depois de ter se confrontado com os Pelagianos, que acreditavam que o ser humano era capaz de salvar a si mesmo. Contra esse pensamento, Agostinho tentou demonstrar que a tendência de julgar o mundo pela perspectiva exclusiva do ser humano é um dos piores vícios e equívocos da humanidade. Até então, ele havia defendido a idéia do livre-arbítrio contra os maniqueus e combatido o ceticismo contra os “acadêmicos”. Agora, ele sentia a necessidade de apontar para o outro lado: a tendência do ser humano para uma visão antropocêntrica e, portanto, viciosa, que nega o sobrenatural.

Uma obra muito adequada para demonstrar essa posição equilibrada de Agostinho entre os extremos dualistas é Cidade de Deus . Neste livro, o filósofo, paradoxalmente, estabelece um modelo dual : A Cidade de Deus e a cidade dos homens . Não se trata, porém de uma dicotomia inconciliável como a que seria sugerida por uma contraposição entre a Cidade de Deus e a cidade dos infernos . Na verdade, a intenção da obra é de aumentar as chances de humanizar a humanidade . Sua tese central era que “tanto quem manda quanto quem obedece deve amar e buscar a paz, a tranqüilidade na ordem, a feliz disposição de todos no todo, a justiça em todas as dimensões” (Martins, Antônio Henrique C., A fuga da babilônia , pp. 59).

Então, do ponto de vista filosófico-teológico, Agostinho certamente não aprovaria o tipo de “mistura” entre realidade e ficção ensaiada por Gaarder, que é tão comum na literatura moderna e contemporânea. Esse tipo de recurso “retórico” também é predominante nos atuais produtos da mídia, mesmo naquela que se propõe a ser pretensamente “realista”, como nos filmes sensacionalistas ou violentos ao extremo. Nisto, acreditamos que a literatura moderna e contemporânea se assemelha em muito, no seu discurso, ao dos sofistas dos tempos de Sócrates e Platão. Numa palavra, então, pode-se dizer que Agostinho, que havia sido professor de retórica, passou, depois da sua conversão ao Cristianismo, a manifestar-se contra todo o tipo de exageros, quer no campo da corporeidade, quer no da espiritualidade, pois a única máxima absoluta que admitia e defendia é “Ama e faze o que quiseres”. Se o amor maior de Agostinho foi pela alma, e não por Flória, não cabe a nós julgar. Trata-se de uma questão do livre-arbítrio de Agostinho.

Conclusões

Como comentamos no início desses dois artigos, depois de muito refletir teológica e filosoficamente sobre a literatura, nada como uma pausa de refrigério e simples deleite sobre um texto literário. Daí que não pretendamos nos delongar e aprofundar sobre as verdadeiras razões e implicações da conversão de Agostinho sobre a sua vida, muito menos a sua vida particular, da qual se tem pouco registro.

Embora aos olhos de um historiador – ou mesmo de um filósofo e menos ainda de um teólogo – Gaarder possa não ter feito jus ao pensamento de Agostinho, sem dúvida ele se mostra um hábil escritor que atinge ao menos um objetivo que interessa também à academia, que é chamar a atenção para esse autor tão importante do legado da literatura e da filosofia cristã, despertando o gosto pela leitura dos clássicos. Afinal, apesar de todo mundo sempre se referir a Agostinho como grande pensador, poucos, mesmo entre “teólogos de carteirinha”, conhecem os seus escritos originais, para os quais a obra de Gaarder ao menos desperta a nossa curiosidade.

Longe de pretendermos denunciar os equívocos cometidos em Vita Brevis , encaramo-la antes de tudo, como uma peça literária bastante agradável ao apreciador comum da literatura. E se, além disso, ela ainda nos estimula à reflexão e investigação teológica e filosófica, teremos mais uma razão para recomendá-la com a maior leveza de consciência. Assim, esse tipo de literatura torna-se um excelente meio de motivação e retro-alimentação da reflexão filosófico-teológica a partir da literatura. Com certeza, o próprio Agostinho aplaudiria essa nossa recomendação puramente intuitiva de se dar o devido valor tanto à literatura quanto à reflexão teológico-filosófica mais crítica e crítica.

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