Para que serve?
Existe alguma utilidade prática no Evangelho de Judas para o cristianismo? Sim, creio que não há dúvida de que esse texto ajudará os estudiosos da história do cristianismo a conhecer melhor o gnosticismo do II e III séculos. Mas mais do que isso não fará. Apesar de toda a comoção gerada com a divulgação da tradução do texto e da “revelação” do papel “positivo” de Judas Iscariotes, a tão propalada revolução no cristianismo não acontecerá.
Não é necessário despender muito esforço para se perceber que a noção básica do gnosticismo, que se tinha desde Irineu – e que foi confirmada pela descoberta de diversos textos gnósticos do III século em 1945-1946 em Nag Hamadi, também no Egito –, não sofre qualquer alteração significativa com a publicação do Evangelho de Judas . O mesmo conceito básico de que o conhecimento ( gnôsis ) superior e secreto (esotérico) das coisas relativas ao mundo espiritual é que produz a salvação e o conseqüente desprezo pela matéria (corpo) continua valendo no Evangelho de Judas . Tudo isso é consoante à fundamentação dualista oriunda do platonismo, como já foi mencionado acima.
A revista National Geographic Brasil reproduz a opinião do teólogo evangélico Craig Evans, que diz: “Não há nada no Evangelho de Judas que nos diga alguma coisa que possamos considerar historicamente confiável” (p. 53). Por que alguém daria valor histórico a um relato que está totalmente comprometido com uma agenda pré-determinada, a agenda do gnosticismo, e que é diametralmente diferente de toda a tradição cristã do cristianismo do I século e do Novo Testamento? Mais ainda: como confiar na acurácia de um manuscrito solitário, muito distante dos eventos narrados nos evangelhos canônicos, que foram escritos não muito tempo depois dos acontecimentos, e que se preocupam em ancorar o cristianismo firmemente na história?
Quanto ao caso específico de Judas Iscariotes, somente sucumbindo à lógica do próprio gnosticismo é que seria possível admitir que sua história precisa ser revisada. Essa lógica é a da emancipação absoluta do corpo mortal a fim de que o espírito ascenda ao mundo superior e invisível. Essa concepção, entretanto, não é, nunca foi e nunca será a do cristianismo bíblico. Primeiro, porque a concepção do NT opera sob a perspectiva da unidade da pessoa humana diante de Deus, e não a partir de uma ruptura absoluta entre corpo, alma e espírito. É por isso que, por exemplo, o NT dá tanta ênfase ao fato de que a vida eterna não é uma existência desencarnada ou incorpórea, mas inclui de modo essencial a ressurreição do corpo (1Co 15). Segundo, porque o Deus do cristianismo não considera inferior ou vergonhosa a possibilidade de se manifestar “na carne”, como pessoa humana, muito menos um impedimento para que a sua glória seja manifestada nessa condição: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, pleno de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai” (Jo 1.14).
Que questões o Evangelho de Judas levanta?
Uma primeira questão que a publicação do chamado Evangelho de Judas suscita diz respeito à aparente fascinação criada pela mera divulgação de que esse escrito traria novas revelações que poderiam colocar sob suspeita o cristianismo histórico. Além, é claro, de despertar amplo interesse comercial, como a venda de revistas, livros, documentários na TV, acesso à internet etc., também é evidente que existe uma grande demanda por esse tipo de coisa no mundo (pós-)moderno.
E que coisa seria essa? Refiro-me ao grande interesse pelo esoterismo, por uma religiosidade que ofereça ao ser humano a possibilidade de encontrar respostas às principais perguntas existenciais dentro de si mesmo. O esoterismo – e, por conseguinte, todo tipo de religião esotérica – está na moda. Portanto, não poderia haver nada mais pós-moderno do que o próprio gnosticismo, ainda que tenha surgido na antiguidade. Os referenciais da chamada “pós-modernidade” facilitam esse fenômeno. Os ingredientes estão disponíveis: um relativismo inconseqüente (a não-existência de verdades universais absolutas), um subjetivismo exacerbado por um individualismo de conveniência (cada um estabelece o que melhor lhe convém), além da oferta diversificada no mercado religioso (religião de acordo com o gosto do freguês). Sem falar da total incompatibilidade do gnosticismo com a idéia da redenção por meio de um sacrifício na cruz.
Uma segunda questão tem a ver com a interpretação da Bíblia: a alegoria. Há hoje em dia uma predileção cada vez maior pela interpretação alegórica do texto bíblico. O Evangelho de Judas está cheio disso. Começa pela risada de Jesus na cena inicial, quando ele debocha dos discípulos por agradecerem a Deus pelo alimento que iriam comer, dizendo que estavam enganados e que deveriam perceber o “deus (platônico) que está além de Deus (do Judaísmo)”. Mais tarde, Jesus interpreta com “profundas alegorias” as visões que os próprios discípulos têm. Ou seja, tudo está para além da realidade dos fatos e da história observável. Tudo deve ser interpretado alegoricamente.
Não admira que o manuscrito do Evangelho de Judas tenha sido encontrado no Egito; um texto assim dificilmente seria escrito na Judéia ou Galiléia. O berço da alegoria é Alexandria no Egito. Foi ali que o judeu Fílon releu o Antigo Testamento sob a perspectiva platônica. Foi ali que a escola de interpretação alegórica do cristianismo também se formou, primeiro com Clemente, depois com Orígenes. Assim, não há nada de novo no horizonte quando se percebe que uma interpretação sectária do cristianismo, como o gnosticismo, nasce exatamente num ambiente impregnado por essa tendência platônica/alegórica.
Uma terceira questão se relaciona com a definição do que são os textos canônicos do NT e todo o processo de reconhecimento deles. Muitas pessoas começaram a perguntar sobre os critérios de aceitação para os livros reconhecidos como divinamente inspirados; afinal, o texto é chamado “evangelho” de Judas. A resposta que alguns dão a essa questão é que houve um critério ideológico que validou certos livros, que concordavam com as doutrinas previamente estabelecidas, enquanto outros foram rejeitados por não atenderem esse critério – dentre eles o Evangelho de Judas . Para demonstrar sua tese, argumentam que outros “evangelhos” também foram rejeitados, como o de Tomé e o de Maria (Madalena), também gnósticos.
Sim, é verdade. Houve o reconhecimento daqueles livros que concordavam essencialmente com a doutrina dos apóstolos. Houve um critério bastante claro e inegociável. O mais interessante disso tudo é que o processo aconteceu de modo informal, levando praticamente três séculos e meio até ser concluído. E por que isso é importante? É importante porque não foi algo feito às pressas, deixando de considerar algum livro que talvez pudesse ter sido também inspirado. Alguns livros passaram um bom tempo na geladeira antes de finalmente serem aceitos como inspirados por Deus ou não. Isso, por si só, já é algo extremamente importante, pois mostra a boa-vontade do cristianismo incipiente em examinar todas as coisas e ficar com o que é bom (1Ts 5.21). Quando o concílio de Cartago (norte da África) reuniu-se em 397 d.C. não decidiu ou determinou quais eram os livros inspirados no NT, mas apenas referendou aquilo que era aceito como ensino apostólico por todo o mundo mediterrâneo, ao redor do qual as igrejas cristãs tinham se espalhado.
Um fato curioso é que foi um proto-gnóstico, Márcion, que deu o impulso inicial ao processo de reconhecimento do cânon do NT. Em 144 d.C., Márcion propôs uma coleção de escritos cristãos que excluía todo o AT, só aceitava uma versão editada por ele mesmo do Evangelho de Lucas e dez cartas de Paulo.
Alguém poderia tentar fazer sua devocional no evangelho de Judas, mas creio que desistiria imediatamente. Embora seja útil para que se conheça melhor o pensamento gnóstico, jamais poderia ser fonte de reflexão de uma mensagem genuinamente cristã. Esta se encontra nos quatro evangelhos que fazem parte do repertório do NT que as igrejas reconhecem há quase 2 mil anos como “soprados por Deus”. Esses eram os evangelhos lidos por aqueles que foram perseguidos, exilados, espoliados e martirizados em nome de Cristo, não o de Judas.