Um comunista à antiga

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Provavelmente é exagero meu, mas fico com a ideia que os comunistas noutro tempo eram mais sinceros. E, se assim for, Slavoj Zizek é um homem de outro tempo, tempo esse em que um comunista podia ter orgulho do seu comunismo. Zizek escreve “Problemas no Paraíso” (um título fantástico!) e tem a coragem de terminá-lo dizendo: “Não estivemos já todos nesta situação nas últimas décadas, esquecendo-nos do nome “comunismo” para designar o derradeiro horizonte das nossas lutas emancipatórias? Chegou a altura de nos recordarmos totalmente desta palavra.” Os comunistas que, varridos por aquilo que eles mesmos provocaram, acabaram a fazer das palavras uma matéria nada estável, deviam como Zizek voltar a acreditar no que dizem – e deviam voltar a dizer aquilo em que acreditam. Um dos méritos de “Problemas no Paraíso” é essa vontade de clareza no seu comunismo, ainda que clareza dificilmente possa ser um termo para descrever a maneira de Zizek escrever.

Zizek aplica-se explicando que o comunismo não é só um lugar político onde se quer chegar, o comunismo é também a maneira de chegar a esse lugar. Diria que, nesta relação entre produto final e processo, se é complicado olhar para o comunismo como o sítio porreiro no fim da viagem, mais complicado é ainda perceber como é que o comunismo nos transporta até ele. E, no entanto, é a este jogo de “onde temos de chegar é ali!” e “a maneira de chegar ali é esta!” que Zizek tem dedicado a sua carreira. Acrescentaria que, em termos palpáveis, as respostas dadas por Zizek são bastante inconvincentes, mas não há como negar que isso não tem detido a sua popularidade. O que nos ensina o grau lucrativo de um negócio improvável: o futuro dos comunistas é uma espécie de turismo espacial em que se reconhece que ainda não há hotéis em Marte mas se garante que eles são muito melhores que os da Terra.

Para que o comunismo mantenha este precioso equilíbrio entre abrir o apetite sem saber cozinhar é preciso, claro está, denegrir o monopólio da digestão. Comer para existir? Isso é para neandertais. Por isso, o comunismo fez uma caminhada filosófica lenta mas firme, durante o Século XX, de abolir a realidade como um argumento razoável. A realidade é o último argumento das pessoas que não sabem argumentar, e por isso Zizek frequentemente torna o absurdo como a única solução possível. Mais ainda: só o absurdo pode ser a solução quando o possível foi interdito na iluminação intelectual comunista. Um exemplo mais doméstico do fenômeno são as investidas do nosso Antônio Guerreiro, agora no Público, contra a “realidade”, essa categoria burguesa.

Exemplifiquemos olhando para como Zizek fala do problema das dívidas econômicas. “Na crise corrente (…) uma das reações (…) é recorrer a uma diretriz do senso comum: «As dívidas têm de ser pagas!» (…) – e isto, claro está, é a pior escolha que se pode fazer, uma vez que deste modo, se é imediatamente apanhado numa espiral descendente. (…) No plano material direto do totalitarismo social, as dívidas são, de algum modo, irrelevantes, até mesmo inexistentes, já que a humanidade consome o que produz – por definição, não é possível consumir mais (págs. 46 e 47).” Com um esforço assinalável, Zizek, ao revelar a maquinaria arbitrária do sistemas econômicos contemporâneos, quer abolir a razoabilidade da ideia de se pagar o que se deve. Devemos conceder-lhe que, de facto, há arbitrariedades assinaláveis na economia que temos (cheias da injustiça natural de qualquer sistema “real” – perdoem-me o uso inevitável do termo), mas o que mais nos impressiona não é que Zizek seja contra injustiças econômicas, é que a pretexto de ser contra elas, acabe a destruir o próprio conceito de justiça.

Como é que o comunismo consegue este feito, de tão preocupado que está com as injustiças econômicas terminar num lugar onde o conceito de justiça foi à viola? Não sei explicar completamente, mas sei que o ódio comunista aos seus velhos inimigos participa do processo. Ainda neste campo da dívida, Zizek é certeiro a apontar a origem do problema. E este é um dos grandes méritos do bom Slavoj (e dos comunistas no geral): a insistência numa leitura permanentemente ideológica da existência. Não é raro ouvirmos vozes cândidas nos nossos debates políticos que acusam os seus opositores de terem objetivos ideológicos, como se ter objetivos ideológicos fosse uma coisa terrível em política. Os comunistas sabem, e com razão, que tudo é ideologia, desde que acordamos pela manhã e colocamos os pés no chão. Por isso, Zizek lembra na questão da dívida que a culpa está no seu mais antigo adversário chamado cristianismo. E ele tem razão. Zizek quer ultrapassar os tradicionais conceitos de justiça (como o de ser justo alguém que está a dever, pagar o que deve) atirando-se à religião da justificação.

“O capitalismo atual é assombrado por um fantasma: o fantasma da dívida. (…) O cristianismo aperfeiçoou este mecanismo: o seu Deus todo-poderoso quis uma dívida que fosse infinita; ao mesmo tempo, o sentimento de culpa pelo seu não pagamento foi interiorizado. (…) A dívida, com o seu domínio sobre comportamentos passados e futuros e com o seu alcance moral, foi uma ferramenta governamental formidável. O que restou foi que fosse secularizada (págs. 63 e 65).” Zizek acerta quando por trás dos problemas econômicos encontra teorias teológicas. Enquanto cristão, confesso que esta é uma das coisas que admiro em todo o bom comunista. O bom comunista vê-me como um alvo a abater e não como alguém a tolerar. A esquerda pasteurizada que sobreviveu aos rigores dos invernos pós-muro, deixando cair o termo comunismo, perdeu esta saudável compreensão de que tudo acaba em Deus: crendo nele ou eliminando-o. Por cada socialista cristão que conheço, tenho saudades de um vermelho que me trate com o respeito mínimo de me reconheça como um inimigo. Zizek sabe que o fundamento último das questões econômicas reside na religião. Haja quem mostre respeito por Marx.

Mas também é flagrantemente neste chão que Zizek se desequilibra. Se Zizek se desembaraçasse da religião de uma vez por todas, quem o poderia acusar de incoerência? O problema está em que Zizek só a larga seletivamente. O comunismo malvadiza o capitalismo para tornar todas as pessoas moralmente inimputáveis. Como assim? O comunismo atribui ao capitalismo o pior dos defeitos mas nunca aplica a mesma lógica aos seres humanos. Os seres humanos são sempre um resultado do seu ambiente, já o capitalismo congrega todos os vícios satânicos. Quantos mais o comunismo prega puritanamente contra os pecados do sistema econômico, mais garante que nenhum ser humano pode ser avaliado em termos tão pobremente binários como os das categorias de bem e mal. Essa é a razão porque em mais de duzentas páginas se pode sentir que Zizek se irrita com os desvarios do capital, mas nem quando fala de Hitler se sente qualquer emoção palpável. Zizek, como comunista, tem uma teoria econômica espessa baseada numa finíssima antropologia – o mal está sempre nas coisas e nunca nas pessoas (precisamente o contrário do que Jesus ensinou). Fica uma religião pela metade.

Eu podia ir mais fundo nisto mas ia tornar-me ainda mais chato. Ia explicar que o comunismo desantropologiza as pessoas porque não passa de mais uma das muitas sequelas gnósticas que a história nos deu. Mas para isso tinha de vos explicar que o gnosticismo é o parasita do cristianismo, que em vez de nos ligar com Deus nos liga conosco próprios, mesmo que às custas de uma noção rarefeita de divindade, e vocês não estão para aqui virados. Tinha de vos explicar que o gnosticismo sempre nos deu a imanência como antídoto à árdua transcendência cristã, citando frases de Zizek como “o comunismo permanece o horizonte, o único horizonte, a partir do qual é possível não só julgar como analisar o que se passa na atualidade – uma espécie de medida imanente do que correu mal (pág. 43)”, mas para isso vocês iam ficar com a cabeça cheia e é aborrecido. No fundo, tinha de vos revelar que por trás de cada iluminado comunista há um velho gnóstico mal-disposto, ansioso por provar aos outros que o cristianismo, ao acreditar num mundo de espíritos e de carne, desmancha o prazer de quem gosta de desmanchar prazeres aos outros – uma definição muito pessoal e breve que tenho para comigo acerca do que é o comunismo, a partir do temperamento dos comunistas.

Depois iam ficar com a ideia errada de que eu não gosto do Zizek, o que não é verdade. Há tanta coisa divertida no Zizek que eu continuo a lê-lo, depois destes anos todos. É certo que estes “Problemas no Paraíso” padecem de um raciocínio mais ferido que o dos outros livros, porque ao menos nos outros livros o Zizek não se propunha avaliar os problemas econômicos com alguma seriedade. Por causa do contexto mais técnico deste volume, fica mais à mostra a insuficiência lógica do Slavoj; a tentativa de contar anedotas seguidas como se isso descesse uma grelha mágica para a compreensão dos fatos (isto para não falar de piadas porcas e ofensivas que pertencerem hoje a um comunista só demonstra o estado a que o comunismo pode chegar, como o velho jarreta da aldeia ansioso em apalpar meninas da escola); a frase de efeito como elástico para saltos epistemológicos; a crença na revolução como uma romântica re-humanização do mundo (é coerente que depois de ter despersonalizado as pessoas, o comunismo tente reanimá-las à custa da revolução); o desprezo indisfarçável que sente pela democracia (quem nos dera ver o mesmo nível sinceridade na nossa extrema esquerda); a constante reinterpretação do conceito de liberdade (com méritos assinaláveis na caricatura no consumidor); ou mesmo a convicção de que precisamos de “Senhores” como diretores do progresso revolucionário (o comunismo sempre precisou tanto de super-homens como o fascismo).

No entanto, prefiro terminar dizendo que continuo a achar graça ao esticar da corda do Zizek. Claro que esta é uma característica que tem sempre algum eco num cristão protestante porque os cristãos protestantes funcionam também à base de esticar a corda: não basta dizer a verdade, é preciso dizê-la como se fosse boa demais para ser verdade (e, nesse sentido, é preciso dizer a verdade como se fosse mentira). Por isso há frases de Zizek que compensam a desonestidade intelectual de todo o livro (não é por acaso que o aforista católico Chesterton continua dos autores mais citados por ele). “O verdadeiro triunfo não é a vitória sobre o inimigo; a verdadeira vitória acontece quando o próprio inimigo começa a utilizar a nossa linguagem, de modo que as nossas ideias construam a fundação de todo o campo (pág. 240).” O melhor em ler Zizek é rirmo-nos da maneira como ele fala, não é falar como ele.

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